Abrindo a porta.

Pessoas minimamente decentes não tem problema algum em manter amizades com pessoas homossexuais, porém, isso pode ficar meio confuso quando esse amigo ou amiga dá toda pinta, mas não se assume. Sally e Somir discordam sobre como lidar com uma amizade próxima nessa situação, os impopulares se revelam.

Tema de hoje: você acredita que um amigo ou amiga é homossexual, mas não se deu conta disso; você levanta essa possibilidade para a pessoa?

SOMIR

Não. Eu acho que as pessoas têm o seu tempo para perceber as coisas, e mesmo que eventualmente seja papel do amigo levantar possibilidades, discutir a sexualidade da pessoa sem ela te dar a abertura é avançar um pouco o sinal. É importante estabelecer a condição deste texto: a pessoa não está te falando sobre o assunto, não está te trazendo para essa discussão, é uma percepção sua sobre ela.

Se um amigo meu resolve me dizer que está em dúvida, que está começando a sentir algo nesse sentido, é completamente diferente. Ele me chamou para a conversa. Aí eu posso dizer para ele largar de ser viado e ir transar com homem se quiser. Eu talvez fosse um pouco menos tosco com uma amiga mulher, mas a ideia é a mesma: se a pessoa traz o assunto pra mim, eu me sinto confortável para participar dele.

Agora, se é uma desconfiança minha, algo que eu acho que a pessoa está reprimindo, não me parece saudável ir cutucar. Não é que eu ache que amigos não podem participar de conversas tão íntimas, podem e devem, mas todo mundo tem seu tempo para lidar com as coisas. A sexualidade de uma pessoa é uma coisa muito íntima, muito pessoal. Eu acredito que cada um possa escolher a hora de falar disso.

Como eu não tenho amarras religiosas e tenho família e amigos sem nenhum problema com isso, pra mim parece algo super natural se assumir gay ou bi se for o caso, mas eu sei que essa não é a realidade de todo mundo. As coisas vão muito além da gente, o amigo ou amiga tem suas vidas pra viver também, e nessas vidas longe da gente, talvez tenha algo reprimindo que ela ainda não esteja pronta para enfrentar.

O que é uma pena, mas eu tendo a não presumir que o que é fácil pra mim é fácil para o outro. Às vezes ser amigo é estar do lado da pessoa enquanto ela junta forças para fazer o que precisa, mesmo que você fique frustrado por ela não fazer logo. Aliás, pode ser que você até seja parte do processo ao não pressionar ela nesse sentido: sendo um porto seguro sem julgamento. Porque se você está desconfiando que a pessoa é gay, com certeza tem mais gente desconfiando também.

Talvez alguém que seja gay entenda melhor disso, mas como eu não sou, tento não presumir se é melhor ou não ir apertar a pessoa para revelar essa parte dela, até porque, se pararmos para pensar mesmo, a sexualidade de uma pessoa é só um pedacinho dela. Quem disse que é esse que ela quer dividir com você? Como eu fico puto se tentam me forçar a falar sobre algo que não quero, entendo que outras pessoas possam pensar parecido.

Se eu achasse que uma namorada estava me usando para fingir que não era gay, evidente que pressionaria para ter uma resposta: sexualidade é parte integrante desse tipo de relação. Não dá para ser feliz ignorando isso. Mas amigo ou amiga? Oras, eu não preciso de uma definição de com quem a pessoa faz sexo para manter a amizade. Não faz muita diferença. Seja lá o que a pessoa faz ou não faz dentro do quarto com outro adulto em consentimento pouco ou nada muda a nossa relação.

Portanto, se não é algo essencial para aquela amizade e a pessoa por algum motivo não se interessa em entrar no assunto, faz mais sentido deixar a coisa rolar naturalmente. O que eu faria na prática é puxar assuntos relacionados só para deixar claro que teria zero impacto no quanto eu gosto da pessoa. Gosto de acreditar que todo mundo que me conhece sabe que eu não encho o saco por nada além de veganismo e crentismo. Mas se não souber, eu deixo algumas dicas no ar só para deixar a pessoa tranquila comigo caso queira sair do armário.

Mas tem outra questão além de respeitar o espaço alheio: quem disse que eu acertei que a pessoa é gay? Talvez seja o jeito dela que dá essa impressão, talvez seja algum preconceito meu agindo. Muitas vezes nem a pessoa que está no assento do motorista sabe qual é a sua sexualidade, quem dirá eu que vejo o carro na rua? Eu acredito que orientação sexual é um gradiente, não linhas específicas numa régua. A gente diz hetero, gay e bi por praticidade, não para ter uma definição exata do que é cada pessoa.

Se um homem faz sexo com mulheres e transexuais e diz que é hetero, quem sou eu para ficar discutindo? Se é o que ela acha que é, eu não tenho poder decisório nessa questão. Se é uma mulher que acha divertido ter experiências lésbicas mas só se sente atraída por parceiros fixos homens, sou eu que vou falar pra ela se assumir lésbica de vez? Nem faz sentido. O ser humano é complexo. Você pode ter sua opinião, ela pode ser diferente da do seu amigo ou amiga, mas não muda o fato de que quem decide o que é ou que não é são as pessoas que vivem a vida na prática.

Não só é sagrado direito da pessoa ficar no armário se ela achar que precisa disso, como também é sagrado direito dela se definir de uma forma que não faça o menor sentido para você. Porque nos final das contas, não muda nada na sua vida. A bunda não é minha!

E digo mais, pode nem ser uma questão de gradientes de orientação sexual, a pessoa realmente é heterossexual exclusiva e você que está cismando à toa. Dizem que perguntar não ofende, mas como toda regra, existem exceções: algumas perguntas podem deixar a pessoa insegura ou complexada. Se alguém que nunca sequer se imaginou gay escuta um amigo perguntando se ele é gay, isso pode criar confusão na cabeça da pessoa. Não sobre ser gay, mas sobre a imagem que projeta. Aí, você deixa de ser o amigo normal e passa a ser o amigo que acha que ele é gay.

Tem gente que não vai estar nem aí, mas tem gente que vai ficar chateada ou ofendida com essa presunção. Sabe-se lá o que se passa na cabeça do outro… não precisa criar um clima estranho por algo desse tipo. Se você for consistente em demonstrar que não vai agir de forma bizarra caso a pessoa saia do armário para você, ela vai sair quando for a hora dela.

Ou não vai sair, porque nem tinha armário na história. Se você realmente não liga se seus amigos são heteros, gays ou bissexuais, é só deixar as coisas acontecerem naturalmente. Vão te falar se for importante. E se não falarem, você provavelmente errou na presunção… nada mais normal do que estar errado.

Para dizer que não fala pra não ouvir que tem que falar pronomes diferentes, para dizer que não fala porque amizade boa é amizade sem sentimentos, ou mesmo para se assumir nos comentários: somir@desfavor.com

SALLY

Você tem bons indícios para acreditar que um amigo(a) próximo(a), com a qual tem uma relação de confiança, é gay e ainda não se deu conta disso. Você levanta essa possibilidade para a pessoa?

Sim, com muito tato, quando surgir um momento de abertura, privacidade e proximidade, eu converso sobre o assunto sim. Jamais faria uma afirmação, mas convidaria a uma reflexão.

Qual o dano que isso pode causar? Se a pessoa se descobrir gay, é um problema que se resolve. Se a pessoa não tiver essa orientação sexual, apenas descarta minha hipótese e vida que segue.

Não é como se estivéssemos falando de algo que é opcional se mexer para conseguir ser feliz. É indispensável. Se uma pessoa é gay e ainda não se deu conta disso, inevitavelmente terá consequências negativas em sua vida, principalmente em sua vida amorosa.

E, pode ser que ela acabe acreditando que o problema está nela, não em suas escolhas, o que gera uma queda na autoestima e desesperança em resolver o problema. Conheço muitas pessoas que se metiam em relacionamentos infelizes até se descobrirem gays e, quando se assumiram, tudo se acertou.

Não é o fim do mundo que uma pessoa esteja passando por uma situação da qual não percebeu todas as nuances, acontece com todos nós em algum momento. Eu já passei por situações em que não me dava conta o que gerava um resultado repetidamente desastroso, assim como o Somir também passou.

Em ambos os casos, um conversou com o outro e ajudou a entender, oferecendo um ponto de vista de quem está de fora. Qual é o grande tabu de não fazer essa gentiliza ao outro só pela questão envolver a esfera sexual? Se a pessoa está visivelmente em conflito, com problemas e infeliz (e quem nega sua sexualidade, fatalmente estará), o papel do amigo é ajudar.

Eu não teria essa conversa com um colega, com um conhecido ou com qualquer pessoa. Estamos falando de um amigo próximo, desses em que a gente confia, compartilha, confessa o que não divulga para a maior parte das pessoas. Se essa pessoa, que me conhece tão bem, tem algo a dizer sobre o motivo de eu estar perdida, infeliz ou frustrada, qual é o grande impedimento em escutar de coração aberto?

Se, um dia qualquer, após perceber problemas, negação e infelicidade, alguma amiga me faz esse questionamento, não existiria a menor possibilidade de eu me ofender. Se eu não sou gay, simplesmente vou dizer que não é o caso e tá tudo certo. Isso não me ofende de nenhuma forma, não é demérito.

Não acho invasivo um amigo próximo entrar nesse assunto, desde que seja, é claro, com a intenção de me ajudar. Se for para tentar me fazer parar de perder tempo, evitar sofrimento ou me entender melhor, que fale abertamente o que quer que esteja pensando. Perguntas ou conselhos não são vinculantes: a gente pega o que nos serve e joga fora o que não nos serve.

Não existe outra forma de manter uma mente saudável do que permanecendo na verdade. Onde tem mentira, fingimento, falsidade, há também medo, baixa autoestima e não-aceitação. E isso cobra seu preço. A pessoa que não se aceita, que tem baixa autoestima, se sabota, se prejudica, se castiga, ainda que inconscientemente. Se eu acho que um amigo esta fazendo isso, eu vou sim intervir – e espero que meus amigos façam o mesmo comigo.

Se, por qualquer motivo, eu estiver em uma espiral de autossabotagem, qualquer amigo próximo é bem-vindo para me ajudar a entender o que está acontecendo e os caminhos que eu deveria repensar para tentar melhorar a minha situação. Afinal, amizade é isso e não ficar saindo em bando para beber e fazer merda.

Quem, se não um amigo próximo, uma pessoa que te conhece bem, uma pessoa que sabe do seu temperamento, do seu entorno, da sua história de vida, vai poder oferecer melhor feedback? Tem coisas que, quem está dentro da situação, não consegue ver claramente. Felizmente existem os bons amigos, que estão de fora e conseguem uma melhor visão, jogando uma boia para que a gente se agarre e não se afogue na tempestade que é não entender o que está acontecendo com a própria vida.

A pessoa tem o direito de não querer falar sobre isso? Óbvio. Nesse caso, que me diga “Desculpa, mas eu não quero falar sobre isso”. Não se falará mais nisso. Meu papel de amiga é levantar algo que eu acho que pode ser um motivo para a infelicidade da pessoa e que ela pode não estar percebendo, mas nunca obrigar a falar sobre o assunto.

Talvez devido às amizades que o cercam, na cabeça do Somir o que eu estou propondo seja chegar para um amigo em uma mesa bar e falar “Tu dá esse cu que eu sei, para de fingir que todo mundo sabe que você é um viado”. Mas, no universo das pessoas normais, educadas e empáticas, seria uma conversa bem diferente disso.

Se você tem intimidade com a pessoa (e se você não tem intimidade com um amigo próximo, você está fazendo isso errado) uma conversa franca pretendendo o bem da pessoa não vai ofender. Basta saber respeitar os limites do outro. A pessoas disse que não? Ok. Deixa quieto. A pessoa não quer falar sobre isso? Ok. Deixa quieto.

A ideia não é convencer ninguém. Apesar de essa ser a atual dinâmica da maior parte das conversas hoje em dia, talvez por causa do clima gerado pelas redes sociais, é possível ter uma conversa onde não se pretende convencer o interlocutor a nada, apenas levantar um ponto a ser refletido, plantar uma semente. Se o assunto for válido, em algum momento essa semente vai germinar, no seu tempo, mesmo que demore semanas, meses ou anos.

E é isso que importa, no final das contas: ao ver um amigo em conflito, triste, infeliz, abrir uma enorme caixa de ferramentas na frente dele e oferecer a que ele achar que melhor serve para lidar com aquilo. Ofereça essa e outras ferramentas, se servir, a pessoa pega para ela, se não servir, que descarte.

Não é sobe o que se diz, é sobre o lugar de onde isso vem. Se falar com o coração aberto, com a única intenção de ajuda, de estender a mão, de fazer o bem, a pessoa não tem motivo para ficar chateada. E se ficar, bem, é uma bela forma de te fazer repensar suas amizades.

Para dizer que imagina Siago Tomir dizendo “Tu dá esse cu que eu sei”, para dizer que não falaria por medo de acharem que você é gay ou ainda para dizer que essas coisas se resolvem através de carta anônima: sally@desfavor.com

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Comments (8)

  • Cada um tem seu próprio tempo para se conhecer e para, por ventura, se assumir. Posso até suspeitar, mas acho que não convém tocar nesse assunto a não ser que a própria pessoa venha me dizer em uma conversa reservada que está em dúvida sobre sua sexualidade.

  • Concordo com Somir deixar claro que está aberto a ouvir, mas respeitar o tempo da pessoa. Tive um amigo que saiu do armário pra mim, mas ainda não havia se assumido socialmente. Saber que ele confiava em mim dessa forma foi um dos maiores gestos de amizade que já recebi.

  • Agnaldo Gianechinni

    Tenho um conhecido que já ofendeu uma travesti que empurrou a camionete dele, já se recusou a comprar KY em uma farmácia para não pensarem que ele seria gay! Além disso, ele tem um amigo que já introduziu um alicate no reto! Ele próprio já colou o ânus com cola de secagem rápida por estar bêbado entre outros homens! Já teve gato com nome de fruta, é designer, escreve em um blog cuja postagem mais acessada diz respeito a objetos introduzidos no ânus, já fez uma campanha querendo vender o anel da Bunda! Circulam umas fotos dele nu com o tal amigo do alicate, os dois na mesma cama… Mas isso não me dá o direito de tocar nesse assunto com ele. Concordo com o Somir!

  • Eu era viado e não sabia, mas meus colegas e minha mãe já tinham a intuição e me falaram. Eu fiquei puto com eles na época. Acho que não se deve falar. Eu era igual ao ditador chinês, tinha horror a viado. Bem que dizem que os homofóbicos no fundo tem raiva de não se assumirem.

  • Existem os viados, que são os frescos; existem os homossexuais, que curte o mesmo sexo; e existe o Sr. Garrison.

    Se você tem um amigo como Sr. Garrison, reveja imediatamente todas as escolhas da sua vida.

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