Ex-americanos.

Nos últimos dias, os atentados de 11 de Setembro de 2001 voltaram à tona com a combinação dos 20 anos do evento e a desastrada saída americana do Afeganistão. Ao mesmo tempo, me veio a realização de que depois de duas décadas, uma boa parte da população mundial não tem sequer ideia do que aconteceu naquele dia. A gente foi dormir dia 10 num mundo e acordou dia 11 em outro…

Eu acordei mais cedo do que costumava acordar naquele dia. Logo fui avisado pela minha mãe que tinha acontecido um acidente em Nova Iorque. Ela não estava dando muita bola, mas a TV estava ligada com a cena do prédio esfumaçado. Na TV, os jornalistas especulavam sobre que avião poderia ter se chocado assim contra um prédio. Ainda preguiçoso, olhava a tela, decidindo se ia para o sofá continuar assistindo a cobertura daquele acidente ou se ia para a cozinha procurar algo pra comer.

Já desviando o olhar, decidido pela segunda opção, vi uma explosão na TV. Demorei um tempo para reorganizar os pensamentos, e achei que era o replay da colisão do avião. Se eu não em engano, o pessoal da TV ficou um tempo meio confuso também. Mas não fazia sentido terem a cena do avião para mostrar. Em questão de segundos, eu e o pessoal fazendo a cobertura passamos de replay para explosão no local do impacto… para a realização do que realmente tinha acontecido. Outro avião, na outra torre!

Até aquele momento, não havia sequer a presunção de um ataque. A gente simplesmente não pensava que podia ser atentado nos EUA. Se fosse no Oriente Médio, talvez, mas no “mundo civilizado” era impensável mesmo. Lembro dos jornalistas debatendo se podia ser uma terrível coincidência ou se era proposital. Hoje em dia já estaria todo mundo certeiro de que era um atentado no primeiro impacto, em 11 de Setembro de 2001, existia a dúvida.

Lembro de conversar com a minha mãe: “isso não é coincidência, isso é ataque”. O que é engraçado de se pensar em 2021, como aquilo precisou ser uma realização. Rapidamente o mundo se convenceu daquilo também. Especialmente quando surgiu a notícia do ataque ao Pentágono. Aliás, eu até argumento que o mundo mudou mesmo não no segundo avião nas Torres Gêmeas, mas no avião que se chocou contra a sede do poder militar americano.

Antes dessa notícia, estávamos vendo um atentado bizarro, depois dela, o aparentemente invencível exército americano estava sendo atacado, num dos lugares onde quase todos nós tínhamos certeza que era impossível de ser atacado. Não havia qualquer dúvida sobre a hegemonia americana em 2001. Não era discutido, não fazia qualquer sentido discutir. Eram os donos do mundo, inquestionáveis.

Eu vou dizer uma coisa que talvez incomode pessoas da minha geração, mas que no fundo sabem que é verdade: até o 11 de Setembro, era normal ser americano por tabela. Sim, muita gente detestava os EUA, como ainda detestam, mas havia uma sutileza ali: naquele tempo, o país americano era tão maior que todos os outros juntos que você se sentia parte da família. Juro. Eu era novo o suficiente para ser influenciado por isso, mas velho o suficiente para prestar atenção.

Você se sentia americano também. Eles passaram décadas e décadas criando uma indústria cultural para passar essa impressão. A América era o centro do universo, mesmo que você se sentisse na periferia, ainda era a periferia americana. Muito embora eu concorde que a China colocou essa hegemonia em dúvida pelos méritos da sua imensa economia, tem esse fator extra que pouca gente menciona: o 11 de Setembro quebrou alguma coisa na relação dos EUA com o resto do mundo.

De repente, éramos expectadores de algo que acontecia em outro país. Desgraça só acontecia longe dali. Não sei se isso vai fazer sentido para vocês, mas é como se numa pancada só, os EUA deixassem de ser o mundo e voltassem a ser apenas um país. Foi o momento em que muitos de nós consideramos a mortalidade desse império. Quem viveu as Guerras Mundiais tinha outra perspectiva, mas nós que crescemos vendo a União Soviética colapsar só conhecíamos a “glória americana”.

Hoje vemos um mundo onde se discute abertamente se a China vai ultrapassar os EUA como grande potência do mundo, mas isso era impensável há duas décadas. Tinha o modelo que funcionava, o dos EUA, e o modelo dos comunistas que tinha dado com os burros n’água. A questão estava decidida. Todos vivíamos na América, mas alguns de nós estávamos em bairros ruins…

Quando o império demonstrou que sangrava como qualquer um de nós, tudo mudou. Como já disse outras vezes, conspirações existem desde sempre, mas foi a do 11 de Setembro que lançou a era moderna delas. O modus operandi é o mesmo desde então. Desde os antivacina até mesmo os terraplanistas, a lógica de funcionamento é muito parecida: discussão infinita, sempre girando em falso e dependendo da crença do conspiracionista para se manter.

Eu achava divertido discutir com quem falava sobre o 11 de Setembro ser um atentado criado pelo próprio governo dos EUA nos anos seguintes, mas hoje em dia, considerando no que isso se transformou, a piada perdeu muito da graça. A era da pós-verdade só é possível depois que o mundo todo pode ver algo acontecendo em tempo real, com imagem nítida e colorida. É absolutamente natural negar o que você não viu em primeira mão, mas não é quando acontece como aconteceu nos EUA no começo deste milênio.

Os atentados são o marco inicial do milênio não porque as pouco menos de 3 mil pessoas que morreram lá são mais importantes que as que morreram em tantos outros atentados, mas porque elas representam a mudança de visão de mundo da maioria das pessoas. Visão que aqueles que não eram nascidos na época ou eram muito pequenos para ter memórias claras acabaram incorporando em sua criação.

Eu vi o mundo antes da internet e vi o mundo antes do 11 de Setembro. As coisas mudaram bastante mesmo, e num pequeno espaço de tempo. Nós que vivemos essa transição podemos até ter nos acostumado, mas sentimos o baque. Se você tem memórias razoáveis do mundo antes do 11 de Setembro de 2001, provavelmente tem coisas que ainda não descem. Havia uma estabilidade global, mesmo que agora saibamos que falsa. Eu não duvido que muito da fúria dos mais velhos com o mundo atual não seja exatamente sobre gays e feministas, e sim sobre o fim de uma era onde havia um líder claro ditando o rumo da humanidade.

As mesmas gerações que saem às ruas para defender o conservadorismo estavam aceitando gays numa velocidade impressionante entre o final do século passado e os primeiros anos desse. Havia um líder claro dizendo que isso era o correto. Os EUA tinham o mundo tão sob controle que podiam fazer força para empurrar ideias mais liberais. Mas, no meio do caminho tinham alguns aviões.

Como eu já disse, não é sobre americanos serem especiais ao ponto de mudar o mundo quando morrem (em números muito menores do que suas guerras causam), mas é sobre estilhaçar uma realidade que parecia ser eterna nos milhões de cacos que estamos catando até hoje. Em 2001, o mundo perdeu um líder “infalível”. E muita gente se ressente disso até agora, mesmo que não entenda bem o que está fazendo. Não é à toa que vimos um ressurgimento de religiões que estavam cada vez mais fracas. Os atentados deixaram um vácuo de poder.

E todo vácuo de poder é preenchido. O ser humano busca aquele líder inquestionável desde 2001, quando viu sangue nas ruas americanas. Alguns de nós vivemos isso, outros apenas foram criados nas consequências daqueles atos terroristas. Acho que só agora eu tenho a distância suficiente para entender o que aconteceu naquele dia.

Foi muito mais que aviões se chocando contra locais famosos nos EUA, foi realmente o fim de uma era. Não acho que tenha sido pior ou melhor para o mundo, acho apenas que as coisas mudam, que nunca podemos acreditar que algo vai ser eterno… ou que o impensável é impossível. Ninguém sabia que podia acabar com um império hegemônico sequestrando alguns aviões até alguém fazer.

Aqui poderia ser um bom momento pra dizer que você pode mudar o mundo, mas considerando de onde esse argumento está vindo, eu prefiro não dar ideias para ninguém… mas que é verdade, é. Se duvida, olhe para o mundo ao seu redor e veja quanta gente ainda está desesperada procurando um líder inquestionável.

O verdadeiro terror é o vazio.

Para contar o que estava fazendo no dia (voando), para dizer que o lançamento do Google é o verdadeiro marco do milênio, ou mesmo para dizer que odiava os EUA quando não era moda: somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • “Havia um líder claro dizendo que isso era o correto. Os EUA tinham o mundo tão sob controle que podiam fazer força para empurrar ideias mais liberais.” Oi?! O presidente era um neoconservador patético e muitos dos que o circundavam eram fundamentalistas cristãos. Falar de exportação convincente de “progressismo” soa absurdo, mesmo que se diga que o governo americano não se confunda com a indústria cultural.

  • “De repente, éramos expectadores de algo que acontecia em outro país. Desgraça só acontecia longe dali.” Somir, por favor perdoe-me pela chatice, mas creio que a palavra correta aí seria “espectadores”. Porque “espectador” é aquele que assiste, que observa de fora, ou de uma platéia, ao desenrolar de ações nas quais não intervém; enquanto que “expectador” é quem está na expectativa, torcendo, esperando por algo que ainda não ocorreu. E o sentido do trecho do seu texto que eu citei não mudaria se você tivesse escrito “De repente. estávamos assistindo a algo que acontecia em outro país. Desgraça só acontecia longe dali.”

  • Eu era um bebê de poucos meses na época do atentado, então não tenho muito o que acrescentar sobre o assunto. Mas tenho uma curiosidade: É verdade que imigrar era bem mais fácil antes?

    • Um conhecido meu imigrou pra Austrália lá pelos anos 90, ele foi sem saber absolutamente nada de inglês e, pra melhorar, foi sem grana e sem terminar o ensino médio. Conseguiu um subemprego e mora lá até hoje. Não é que antes era mais fácil imigrar, ainda é fácil, tendo dinheiro vc facilita muita coisa, o problema mesmo é competir com chineses, indianos, árabes e toda turma que tem sangue nos olhos pra sair do seu país. Um outro colega acabou de retornar de Portugal pois perdeu o emprego pra um chinês. Está bem mais concorrido. Sobre o 11/09, só lembro do meu professor dizendo que Bin Laden planejava jogar os aviões em usinas nucleares, mas como isso ia matar muita gente, desistiu (não sei se isso é verdade).

  • “Quando o império demonstrou que sangrava como qualquer um de nós, tudo mudou”. Essa frase serve para nos lembrar que nada, por maior e mais sólido que pareça ser, dura para sempre e, lendo-a, eu imaginei o Osama Bin Laden em seu covil, vendo pela TV as torres caindo e dizendo aos EUA o que o Batman disse ao Superman naquela cena já famosa: “Tell me, do you bleed? YOU WILL!”

  • Parece que a hegemonia americana anda sendo sacolejada um pouco por aqui, os países da América latina estão fazendo vários acordos comerciais com a China. E não são apenas os shitholes tipo Venezuela e Argentina, mas outros países também:
    https://aljazeera.com/economy/2021/9/3/chinese-investment-in-chile-sparks-opportunities-concerns
    https://www.reuters.com/world/americas/uruguay-advances-free-trade-talks-with-china-aims-be-mercosur-gateway-2021-09-08/
    https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/breves/uruguai-incluir-paises-mercosul-acordo-china/
    https://americasquarterly.org/article/how-latin-america-can-navigate-the-china-us-trade-wars/

    O jeito é se adaptar à nova realidade, falam há uns 10 anos que “a bolha da China vai estourar” e até agora nada…

    • Impérios não se criam ou destroem, impérios se transformam. O império romano virou império católico, que virou império colonialista, que virou império globalista…

  • Somir, tenho para mim que há ao menos duas maneiras de se registrar o passar do tempo: a mecânica – com a utilização dos relógios e dos calendários que são baseados na repetição de diversos ciclos da Natureza – e a psicossocial/cultural/emocional – em que o começo e o fim das “eras” são estabelecidos a partir dos grandes acontecimentos transformadores.

    Pela segunda maneira, eu considero o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo que foi o estopim da Primeira Guerra Mundial como o real marco inicial do século XX. Seguindo essa linha, aponto a queda do Muro de Berlim, da URSS e o fim da Guerra Fria que veio a reboque como o verdadeiro término desses mesmo século. Continuando, vejo o 11 de Setembro como o momento em que o século XXI começou “para valer”, com os anos entre a derrocada vermelha e o ataque às Torres Gêmeas em Nova York ficando em uma espécie de “limbo temporal”.

    • A primeira guerra mundial realmente tem toda cara de começo do século XX, tenha em vista o império austro-húngaro, que descobriu tarde demais que não dava mais pra mandar cavalaria pra guerra e foi esmagado pelos adversários. Não leve uma baioneta para uma luta de metralhadoras…

  • >religião que proíbe instrumentos musicais na terra do pagode e do samba
    >religião que considera os cães impuros na terra do vira-lata caramelo
    >religião que proíbe o consumo de carne de porco e álcool na terra do churrasco e dos barzinhos
    >religião que prega a castidade e modéstia na terra do funk
    Se tem uma coisa que não precisamos nos preocupar é com o fundamentalismo islâmico por aqui, hahahaha
    Posso estar bostejando, pois nunca saí do Brasil, mas tenho a impressão de que as Américas são bem mais sucedidas em absorver e aculturar imigrantes do que a Europa e outras regiões do mundo. Afinal, na história recente a América foi feita pra ser “o lugar pra tentar uma vida melhor”.
    O Mohamed na América vai pra praia de regata, ouve forró e come carne com o vizinho judeu e o vizinho crente (onde moro tem uma população significativa de migrantes árabes), o Mohamed na Europa é excluído, fica louco e faz atentados.

    • Talvez as américas sejam melhores em subverter culturas. Somos todos vira-latas. País que faz pizza de sushi não respeita nada.

    • “O Mohamed na América vai pra praia de regata, ouve forró e come carne com o vizinho judeu e o vizinho crente (onde moro tem uma população significativa de migrantes árabes), o Mohamed na Europa é excluído, fica louco e faz atentados.”

      Real. Um amigo meu mora perto de uma mulher, muçulmana, que chegou aqui no Brasil há algum tempo. No começo ela era toda certinha com os costumes da religião, hoje mal se lembra que o hijab existe (começou a beber, fumar, usar roupas justas… Nem parece a mesma pessoa).

    • Eu quase usei a letra dessa música de referência, mas achei que ninguém ia entender. Porque é basicamente o que eles falam sobre todo mundo ter sido americano naqueles dias.

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