Política cosmética.

No começo da semana, a pequena ilha de Barbados deixou de ser mais uma das posses da monarquia britânica. A mais nova república do mundo festejou o momento e virou notícia pela cerimônia com grande representatividade feminina: não só as chefes do governo são mulheres, como ainda declararam heroína nacional a cantora Rihanna, nativa do país caribenho. Mas… faz alguma diferença prática se são mulheres ou homens?

Primeiro, vou analisar por um ângulo publicitário: não se pode negar que ver mulheres no poder tem o potencial de inspirar outras mulheres. Muitas vezes as pessoas precisam apenas saber que existe a possibilidade para começar a pensar em seguir um caminho na vida. Como eu sou partidário da igualdade de oportunidades, consigo enxergar o lado positivo de dar mais atenção para minorias políticas. Saber que é possível é parte do processo.

Mas como toda estratégia publicitária, é importante prestar atenção se tem informação chegando errada no público-alvo, ou mesmo se alguma outra ideia estranha ao objetivo original pegou carona na sua campanha. De forma mais simples: a mensagem que mulheres – e especialmente mulheres negras – podem exercer cargos de poder é uma ótima mensagem; mas se junto com essa ideia vir a ideia de que o sexo ou a raça de quem está no poder influencia na qualidade do trabalho exercido… bom, aí algo saiu muito errado.

Muita gente se enche de confiança para dizer que o mundo seria melhor se mais mulheres tivessem cargos de poder. É o tipo da frase que gera reações positivas em outras pessoas, te faz parecer uma pessoa boa na maioria dos ambientes nos quais nos encontramos diariamente. Mulheres costumam sorrir ao ouvir isso, homens variam entre concordância honesta, neutralidade ou, algo cada vez mais comum nos dias atuais: controlam o impulso de fazer uma piada ou discutir a validade da afirmação. Não pega bem estragar esse tipo de momento.

Como estamos no Desfavor e eu tenho como desenvolver o argumento, posso quebrar essa regra social: não, não tem nenhuma lógica dizer que o mundo seria melhor ou pior se mulheres tivessem mais cargos de poder. Ao invés de tentar explicar diferenças genéricas entre os sexos, eu vou fazer algo mais simples: vou falar sobre as semelhanças.

Sim, cada ser humano é uma combinação única de genes e estímulos do ambiente, diferenças que podem ser categorizadas de inúmeras formas como sexo, raça, orientação sexual, posicionamento político… uma pessoa normalmente consegue se colocar em uma série de grupos para formar uma identidade própria. E mesmo dentro desses grupos, indivíduos ainda sim continuam pensando e agindo de formas diferentes. Quanto mais você conhece um ser humano, mais único ele se torna.

Agora… isso não muda o fato de que o grupo humano é formado por muito mais semelhanças do que diferenças. Dizem que homens são de Marte e mulheres são de Vênus, mas na vida real todos parecem bem terrenos. Pensa bem: tem alguma característica de personalidade que você pode afirmar que é apenas masculina ou feminina? Sim, alguns órgãos são diferentes, mas quando o ser humano tem que agir como ser social, não é como se chegássemos a resultados muito diferentes. E isso também vale pra raça: ninguém com mais de dois neurônios acredita que exista algum comportamento exclusivamente de pessoas brancas ou negras.

Até porque nem existem diferenças tão sérias assim entre as variedades possíveis de seres humanos. Saímos todos do mesmo galho evolutivo, e as espécies de humanoides com as quais a natureza experimentou acabaram todas extintas ou absorvidas para dentro do ser humano moderno. O cérebro pode até ter tamanhos diferentes de acordo com os indivíduos, mas todos fazem a mesma coisa. Quanto mais básico o comportamento, mais fácil de reconhecer em todos os espécimes humanos.

A verdade, talvez cruel, é que somos todos muitíssimo parecidos. Num nível tão opressor para o nosso senso de individualidade que precisamos fazer muito esforço para criar diferenças e analisar detalhes do comportamento alheio para achar algo diferente. Essa necessidade (muito humana) de individualidade acaba contaminando nossa percepção da realidade.

Para que a gente se sinta único, precisamos acreditar no poder das diferenças entre as pessoas. O simples fato de ficar pensando no que nos diferencia dos outros é evidência de que no fundo nos achamos muito parecidos. E essa ideia convive sim com o que eu disse sobre todo mundo ser único: somos únicos quando nos conhecemos profundamente. Porque as diferenças possíveis são minúsculas no final das contas.

É como olhar para uma plantação: de longe todas as plantas parecem iguais, mas quanto mais perto você chega, mais começa a ver que cada folha está num lugar específico, que cada fruto tem um tamanho um pouco diferente um do outro. A humanidade é uma plantação: sim, cada planta tem detalhes únicos, mas só sai um produto dali.

Pode ser branco, preto, amarelo, homem, mulher, trans, jovem, velho… não importa o que você tente dizer sobre as diferenças aparentes, no final das contas é um ser humano. E seres humanos vão fazer coisas muito parecidas dadas condições parecidas. Todo mundo vai querer ajudar amigos, todo mundo vai nutrir sentimentos negativos por quem compete por recursos, todo mundo tem o mesmo pacote de instintos ancestrais, selecionados por eras de evolução.

É por isso que eu digo, sem medo de estar errado, que o problema da humanidade nunca foi falta de representatividade. O ser humano sempre esteve representado como opressor e oprimido por toda a história da espécie. Não tem nada que um branco europeu tenha feito que um negro africano não teria feito, e vice-versa. Homens e mulheres então? Excluindo diferenças óbvias do sistema reprodutor, o grau de proximidade é maior ainda. Porque nem teve separação geográfica entre os grupos. Homens e mulheres nunca viveram separados, nunca se encontraram em situação de completo estranhamento.

Não há nenhuma lógica na ideia de que uma mulher seria líder melhor ou pior que um homem. Da mesma forma que é bizarro achar que a concentração de melanina na pele de uma pessoa impacta sua capacidade de executar funções administrativas. Eu até acho de uma condescendência preconceituosa dizer que mulheres ou minorias em geral fariam um trabalho melhor que o homem branco. Ninguém sabe disso, ninguém pode saber disso: ou algumas pessoas são naturalmente superiores ou nenhuma é. Tem que decidir por um dos lados, e eu acho absurdo que alguém escolha o lado do “naturalmente superior”.

A parte do preconceito é óbvia, mas como eu escrevi, existe também a condescendência: a gente diz bobagens motivadoras para quem achamos que precisa daquele ânimo para dar conta do recado. Um dos privilégios de ser homem branco é ter a presunção de mediano. Eu me aproveito bastante dele, e gostaria que todo mundo pudesse fazer o mesmo. Não importa a situação na qual eu me encontro, ninguém acha que eu sou melhor ou pior do que a média só por causa da minha aparência. Muita gente acha que o privilégio é se considerado melhor, mas na verdade é ser considerado mediano. Você é julgado pela forma como se expressa e pela sua capacidade de fazer as coisas.

E que fique claro: isso não é uma reclamação. Eu agradeço muito por sempre ter a oportunidade de me provar e acho terrível que outras pessoas não gozem desse mesmo benefício. Nem consigo imaginar como seria ruim que as pessoas achassem que eu sou incapaz de algo que estou me dispondo a fazer só por causa da aparência. Claro que eu estou me referindo a tarefas mais intelectuais, ninguém vai presumir que eu sou um bom jogador de basquete ou capaz de competir como jóquei olhando pra minha aparência. E nesses casos, tudo bem, tem tarefas que dependem muito do formato do seu corpo e é quase impossível escapar.

Eu gostaria de viver num mundo onde uma mulher negra tivesse a mesma presunção de mediocridade que eu. Que a nova presidente de Barbados não fosse celebrada por causa da sua genitália ou cor de pele, mas sim que fosse observada pelo seu povo na expectativa de quais seriam suas ações para melhorar a qualidade de vida local. Sei que tem a peculiaridade de ser um país minúsculo, mas num mundo ideal já teríamos alguns narizes torcidos para o fato de uma cantora popular ser heroína nacional. A mulher sabe ganhar dinheiro? Ô se sabe, mas heroína nacional? Talvez se fossem dois homens brancos, um dando o prêmio e o outro recebendo… talvez as pessoas olhassem um pouco mais para a realidade da coisa.

Quando eu falo do privilégio de ser mediano, eu falo de ser parte da humanidade por ser humano, não por ser representante de um grupo de rótulos. Quase nenhuma das características superficiais de um ser humano impactam de verdade na sua capacidade intelectual. Salvo deficiências e/ou doenças, somos basicamente a mesma coisa. Reagimos basicamente do mesmo jeito dadas condições parecidas. Não é aquele papo lacrador de fingir que genética não existe, é a constatação de que se você parar para pensar mesmo, as coisas não são tão diferentes ao redor do mundo.

Pobre sofre em qualquer lugar. Tem gente egoísta, tem gente altruísta. Pessoas constroem casas, pessoas compram ou produzem comida. Pessoas consomem quando podem, pessoas exercem poder quando tem a oportunidade. Pessoas são amorosas ou raivosas. Pode ser numa vila suíça ou numa palafita brasileira, não é como se o pacote básico de humanidade variasse mais do que algumas miligramas.

É evidente que uma pessoa com acesso a nutrição de qualidade, bom ensino e exemplos em casa tem mais chances de ser uma pessoa inteligente. É óbvio que alguém que cresce num ambiente violento corre um enorme risco de ficar brutalizado. Genética existe e influencia algumas coisas, mas basta ver quanto tempo o ser humano demora para amadurecer para perceber que o ambiente forma a maioria do que somos.

E isso exclui a possibilidade lógica de achar que alguma das minúsculas variações entre os humanos teriam impacto suficiente sobre a capacidade de exercer cargos públicos. Qualquer um pode ser bom ou ruim. E isso depende do contexto: um povo que quer estabilidade acima de tudo pode aceitar um ditador de braços abertos numa década e querer seu pescoço na outra. É infantil achar que alguma característica superficial de um ser humano é suficiente para definir sua capacidade de realizar um trabalho essencialmente intelectual. O que está dentro da cabeça de um indivíduo precisa ser demonstrado por palavras e ações, senão é projeção pura dos outros.

Diversidade é um resultado positivo da igualdade de oportunidades, porque se feito dessa forma, significa que existe neutralidade suficiente no tratamento das pessoas. Que o privilégio da mediocridade não é mais privilégio, é direito. Não vejo valor algum em celebrar políticos por causa da sua pele ou gênero, porque no final do dia continuam sendo políticos. Diversidade é o destino, não o caminho. O caminho é julgar as pessoas pelo o que elas apresentam para o mundo, pela sua capacidade de realizar o que prometem ou mesmo de analisar corretamente as situações.

Grandes coisas que temos mais mulheres, negros ou qualquer outro tipo de minoria no poder: a humanidade continua a mesma, e em sistemas como o brasileiro que beneficiam corruptos e incompetentes carismáticos, só vamos ver os mesmos incapazes com roupas diferentes. As melhores pessoas para governar são as pessoas mais preparadas para isso, vamos garantir que todo mundo tenha a chance de se preparar, mas sem nunca esquecer que é uma profissão e tem exigência de resultados sim.

Não é vitória nenhuma mudar a cor da pele ou a genitália da pessoa que está te sacaneando.

Para dizer que eu sou racista por querer igualdade de oportunidades, para dizer que eu sou sexista por querer igualdade de oportunidades, ou mesmo para dizer que nem os Barbados escapam: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Eu levo a questão na lógica South Park: há um episódio que aborda a mudança da bandeira da cidade (é um desenho uma pessoa negra sendo enforcada por brancos). Houve um debate pela cidade se deveriam ou não mudar a bandeira, e no final, só diversificaram as cores das cinco pessoas, mas continuou alguém enforcado nela.

    Há outro episódio, no qual o Cartman agride o colega de sala negro dele em uma briga comum de colégio, e acaba preso por “crime de ódio”. Ele é eventualmente solto, mas no final do episódio agride da mesmíssima forma outro garoto, só que dessa vez, branco. E não dá nada. Se todo crime contra qualquer ser humano for devidamente punido, não há necessidade de uma característica da vítima “ser um agravante”. Pune-se somente por ser um atentado à dignidade humana em si.

    Da mesma forma que o argumento de semelhanças é útil explicando porquê não será melhor mais negros ou mulheres no poder, antes também podia ser usado para não manter esses memos grupos FORA do poder, pois são semelhantes àqueles que nas épocas anteriores detinham poder.

  • Sempre tive curiosidade em saber como é a vida do cidadão comum dessas ilhas caribenhas que são basicamente conhecidas pelo turismo e/ou por serem paraísos fiscais. Na lista do IDH a maioria dessas nações, inclusive Barbados, está em boas posições, mas e na prática?

  • Todo sucesso aos Barbados, e que não siga o padrão das outras repúblicas do continente.
    Em alguns pontos, os monarquistas têm certa razão. Se der um Google nos maiores IDHs do mundo a maioria são monarquias (países nórdicos, Luxemburgo, Holanda, Japão…). E olha que monarquias são uma minoria no mundo de hoje. Independente do monarca exercer poderes ou só ficar de enfeite (no caso das monarquias constitucionais), monarquias representam estabilidade, propósito e continuidade. E significa que não houve uma ruptura drástica com a cultura/tradição, foi mantida a identidade nacional, a história, os símbolos…. são pontos importantes que os progressistas e liberais querem negar e apagar.
    O próprio Brasil é um exemplo disso. Em pouco mais de 100 anos de república a gente teve 6 constituições, sei lá quantas moedas e umas 3 ditaduras… Os vizinhos não são muito diferentes, salvo Uruguai.
    Não dá pra fundar um país sem bases sólidas. O resultado é esse.

    • O Uruguai está na terceira moeda, a exemplo do Chile, da Bolívia e do Peru. Não é lá um graaaande exemplo de estabilidade da América do Sul não.

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