Desfavor da Semana: Remédio para a alma.

Mudando um pouco o recente foco em sub-notícias de sub-celebridades, hoje o desfavor da semana presta atenção numa matéria recente da revista Galileu: A cura do ciúme. Uma reportagem aparentemente inofensiva que fez Sally e Somir se preocuparem, cada um de sua forma, com a seguinte idéia:

“(…)A vantagem é que agora a neurociência consegue provar que a rejeição social traz um sofrimento psicológico que se assemelha, pelo menos no cérebro, ao físico. E, já que dá para aplacar uma dor, digamos, real com medicamentos, pesquisadores apostam que será possível exterminar os efeitos de uma desilusão amorosa com remédios.(…)”

Remédios para “dor da alma”. Desfavor da semana.

Somir

(Teoricamente ainda é sábado, ninguém pode reclamar…)

Assim que Sally me sugeriu esse assunto, eu automaticamente imaginei que remédios anti-sentimentos eram uma coisa ótima. Quanto menos gente histérica sofrendo de forma inútil por variações em níveis hormonais e impulsos elétricos, melhor. Pois bem, tem coisa que na teoria até que faz sentido, mas na prática…

Antes de qualquer coisa, eu odeio esse tipo de expressão como “dor na alma”. Alma? Para início de conversa, almas não existem. (Conseguem evidências minimamente razoáveis até da matéria escura!) Mas, o meu problema real não é a comprobabilidade da ilusão de energia consciente, é a valorização excessiva do sofrimento. Quando se dá características “sobrenaturais” para sentimentos, passa-se a impressão de que é algo completamente fora do nosso controle. Algo sublime…

Foi mal, mas isso não cola para cima de quem pensa um pouco. Sofrimento não é uma coisa bonita, sofrimento não cria caráter, sofrimento não torna ninguém uma pessoa melhor. Sofrimento é uma merda e só. Coragem, racionalidade e dedicação que transformam o sofrimento em lição de vida.

“Mas, Somir, então você concorda que sofrimento não vale nada e deve ser eliminado…”

Sim, mas isso não quer dizer remediar passou a ser melhor do que prevenir. Dopar uma pessoa funciona até certo ponto. Você pode reduzir os sintomas de uma pessoa que tem pouca ou nenhuma resistência às intempéries da vida, mas com a duração exata do efeito da droga. E quando o efeito passa, o problema que resulta é bem parecido com qualquer outra droga legal ou ilegal que interfere com o funcionamento do cérebro.

Depois de passado o efeito, o problema continua lá, e ainda pior.

“Mas, Somir, se uma pessoa ficar livre do descontrole mental por um bom período de tempo, não vai aprender a lidar melhor com isso depois?”

Com raras exceções, não. Se o sofrimento e o descontrole continuarem sendo tratados como situações praticamente sobrenaturais, não existe aprendizado. Frieza e lógica tem que estar presentes em alguma escala num tratamento desse tipo. O problema tem que ser reconhecido e ATITUDES devem ser tomadas com o objetivo de resolver ou amenizar esse problema. Prevenção de danos.

Com a mentalidade de valorização de sofrimento, qualquer remédio anti-sentimentos vai ser apenas mais uma “pinga” para o povo. Ninguém aprende nada, ninguém evita problemas, mas todo mundo fica bêbado quando alguma coisa dá errado!

Funcionou muito bem até agora, hein?

Remédio anti-sofrimento tem o mesmo valor que auto-ajuda, esoterismo, drogas, religião e coisas do tipo: Continuar dando dinheiro para as pessoas REPULSIVAS que ganham a vida assim. Continuar aleijando as pessoas emocionalmente para que continuem vindo atrás de muletas imaginárias.

Se você tem algum desequilíbrio hormonal, alguma condição REAL que te impeça de lidar de forma minimamente racional com as coisas que invariavelmente vão dar errado na sua vida, um remédio pode resolver. Existe um problema mensurável, existe uma solução lógica.

Se você passou a vida dependendo de outras pessoas para passar a mão na sua cabeça e dizer que nada é culpa sua, se você já está efetivamente viciado em sofrer e receber PENA de outras pessoas, o seu problema não vai ser resolvido enquanto você não perceber de quem é a responsabilidade.

“Somir, isso está parecendo auto-ajuda…”

Ei!

De qualquer forma, a idéia é que não importa a forma de apoio que você venha a escolher, não passa disso: Um apoio. E convenhamos que o mercado está apinhado disso. Mais um remédio? Mais uma muleta? E ninguém para dizer em bom tom que sentimentos são coisas ridículas se te fizerem mal? Ninguém para dizer que a qualidade de um mártir NÃO é sofrer por muito tempo? Ninguém para fazer um remédio anti-frescura e medinho de quebrar a cara na vida?

Dope as pessoas, as deixe com medo e diga que elas são especiais.
Mande nelas. É uma das táticas mais velhas que existe e parece que ninguém percebeu ainda…

Humanidade: Inventando remédios para doenças que não existem desde… sempre.

Para dizer que eu sou morto por dentro, para dizer que eu me beneficiaria muito de um remédio anti-escrotice, ou mesmo para dizer que nunca achou que sofrimento valesse alguma coisa também: somir@desfavor.com


Sally

A neurociência descobriu quais são as áreas do cérebro ativadas quando uma pessoa sente ciúmes, inveja e outros sentimentos dolorosos como rejeição. Este conjunto de sentimentos foi apelidado de “dores da alma” e atualmente cientistas trabalham na criação de medicamentos que atenuem ou até mesmo suprimam estas dores da alma. Sim, eu acho isso o desfavor da semana.

“Mas Sally, você é masoquista? Você gosta de sofrer? Você quer sentir dores da alma?”. Não, não e não. Mas acho que esses sentimentos nos fazem humanos. Eu não gosto de sofrer, mas o sofrimento tem o seu papel naquilo em que eu sou e tem a sua utilidade.

Se por um lado o sofrimento nos ensina, também nos protege. Existem coisas ruins que deixamos de fazer porque não queremos arcar com o sofrimento que acarretarão. Se soubermos que não vamos ter que pagar esse preço, porque tomando um comprimido o sofrimento vai embora, como poderemos estabelecer limites?

Pensem na dor física. Alguém aqui gosta da dor física? Não. Ninguém gosta de sentir dor. Entretanto, ela é necessária para que não nos mutilemos (mesmo sem querer) e tenhamos um limite do que podemos fazer com nosso corpo. Sem a dor como alerta, queimaduras, fraturas e tantos outros sinais de alerta passariam despercebidos.

O mesmo vale para a dor da alma. O que nos faz humanos é o conjunto de sentimentos. Suprimindo alguns deles de forma química, abre-se um precedente perigoso. Pessoas poderiam fazer qualquer coisa, sabendo que mais tarde não teriam que lidar com a dor que isso implica, afinal, é só tomar um comprimido.

“Mas Sally, esses remédios não seriam vendidos assim, que nem bala”. Vai pensando. Quantas pessoas você conhece que tomam remedinhos tarja preta sem precisar? Médicos inescrupulosos, tráfico de remédios, farmacêuticos gananciosos… hoje é possível conseguir qualquer remédio, até mesmo pela internet. Conheço médicos que receitam anti-depressivos para qualquer um que pede. A gente vê qualquer mulher triste com o fim de um namoro ou adolescente que brigou com a mão enchendo os cornos de Fluoxetina. Infelizmente, essa é a realidade.

E mesmo que não fosse… quem é um médico para decidir se você pode sentir dores da alma ou não? Suprimir sentimentos é uma coisa extremamente perigosa, muito próxima a brincar de Deus. Pessoas que tem problemas com seus sentimentos podem buscar outros caminhos mais adequados para lidar com eles, com por exemplo, algum tipo de terapia. Porque? A terapia dá resultados definitivos, o remédio não. A pessoa que se acostuma a viver com esse tipo de remédio que lhe tira as dores, fatalmente vai ficar viciada.

Ninguém gosta de sentir dor, sofrimento. Quando acontece um evento que te provoca uma dor extrema, não adianta de nada tomar um remédio. Quando o efeito do remédio acabar, poucas horas depois, a dor vai continuar ali. O que fazer? Tomar outra dose? Até quando vai se adiar entrar em contato com a dor? Viver dopado? Seria essa a solução?

O sofrimento só se cura entrando em contato com ele, elaborando a perda, aceitando, se fortalecendo. Um remédio não resolve, apenas vicia. É como ouvir um alarme contra incêndio e, em vez de apagar o fogo, desligar o alarme. O sofrimento é um alarme que indica que algo não vai bem. Em vez de desligar o alarme temos que mergulhar fundo no problema e enfrentá-lo, para apagar o incêndio.

Infelizmente a tendência nesses últimos anos é resolver as coisas com comprimidos. As pessoas não tem força para se levantar sozinhas. Sei que existem casos clínicos que precisam de remédios, porém tenho visto muitas pessoas que não precisam usando remédios para aliviar dores rotineiras pelas quais todos nós passamos. É mania dizer “estou deprimida”. Poucos que alegam realmente estão.

Muitas vezes temos vontade de fazer coisas horríveis em momentos de raiva, e não o fazemos porque pensamos em como isso vai custar caro mais tarde. Já pensaram que um comprimido que elimine o sofrimento poderia eliminar também o remorso? Pessoas poderiam fazer as coisas mais horríveis e depois tomar uma pílula que lhes tiraria qualquer sentimento de sofrimento relacionado a isso? Eu não quero viver em uma sociedade de psicopatas.

Sentimentos negativos são ruins, mas são humanos. Sofrimento, dor, ciúmes, rejeição e tristeza fazem parte do que somos. Suprimindo estes sentimentos mexemos com os demais sentimentos por tabela. Sabe aquela história de que o doce só é doce porque conhecemos o sabor do amargo? Sim, o amargo tem a sua função.

Aprender a lidar e a superar essas dores da alma sozinhos é a coisa certa a se fazer. E quem não consegue, que se trate em vez de se dopar.

Para dizer que finalmente paramos de falar de subcelebridades no Desfavor da Semana, para dizer que vai dar esse comprimido para aquela sua amiga carente e sufocadora que te enche o saco com chororô semanal e para dizer que você já é viciado em remédio para dormir, em fluoxetina e vick vaporub, por isso um a mais ou um a menos não faz a menor diferença: sally@desfavor.com

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Comments (7)

  • Hoje as pessoas procuram a saída mais fácil para tudo! Quer emagrecer? Que tal fechar a boca, tomar vergonha na cara, malhar e fazer dieta? Nãããão, as pessoas preferem fazer lipo ou tomar remédios. Quer melhorar de vida? Que tal ralar, estudar, trabalhar? Nããããão, neguinho casa para ganhar eletrodoméstico e casinha montada e somar renda com o marido! É o mesmo com o sofrimento: caminho mais fácil.

    Só que essas pessoas "espertas" que pegam atalhos deveriam saber que o caminho mais fácil dificilmente acaba bem. Um dia a vida cobra um preço. Eu valorizo o esforço e as coisas batalhadas, difíceis e suadas. Não adianta, sou adepta da meritocracia.

  • Se recuperar de uma perda ou de uma decepção é como atividade física: com o tempo seu condicionamento melhora.

    Quem já superou muita coisa na vida se sai melhor, porque tem mais treino.

    Mas hoje as pessoas querem pegar um atalho e tomar remédio para qualquer aborrecimento! Daí ficam fracas, não sabem mais lidar com frustração, medo, angustia, dor e rejeição.

    Quanto mais remédio tomar, mais vai se enfraquecer e mais vai precisar de remédio. É um circulo vicioso

  • Realmente, ser humano gosta de sempre querer arranjar saídas fáceis para os problemas. Alguns até dá para entender, mas isso aí é demais.

    Aliás, estava falando com a minha mãe agora sobre fluoxetina. Já tive que usar na adolescência por ser muito ansiosa, nervosa e demais coisas. Mas com o tempo passei a odiar o remédio, pois ele me transformava em outra pessoa. Sempre falava que não era eu aquela pessoa calma, que aceitava tudo. E parei de tomar por conta própria e hoje em dia estou bem sem ele. Detalhe que no tempo que usei o remédio, peguei uma médica displicente que deu uma dosagem alta demais pra minha idade na época e me fez entrar em depressão. Conclusão: mais atrapalhou que ajudou.

    Então, hoje lembro disso e sinceramente não faria diferente. Sofri bastante, fui aguentando a barra e melhorei com o tempo sem precisar muito desses remédios.

  • Eu quero esse remédio aí! Logo que tiver disponível eu vou comprar. Eu quero ficar igual ao Somir!!!!!! Já pensou que mundo infernal iremos ter?

  • Concordo com vocês. Todo mundo quer resolver tudo na base dos remédios e depois ficam cantando hino nacional errado e colocando a culpa nos remédios!

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