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Desfavor Bônus: Medos de Infância.

| Sally | | 266 comentários em Desfavor Bônus: Medos de Infância.

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Do que vocês tinham medo quando eram pequenos? Acho que sei identificar os medos mais comuns da década de 80, década na qual fui criança. Mas não sei dizer do que as crianças de hoje em dia tem medo. Sinceramente, acho que as crianças de hoje não tem mais medo de nada. Um inferno viver em tempos onde crianças não tem medo de nada, pois para quem não tem paciência, como eu, medo anda de mãos dadas com educação. Muito da falta de respeito infantil de hoje pode ser consequência da falta de medo. Quem nunca aqui deixou de fazer besteira por medo? Nos resta lembrar os bons tempos de mulheres e homens sãos, onde crianças tinham medo.

Um medo bastante comum na minha infância era de certas lendas urbanas que se espalhavam pelas pracinhas, plays e corredores de colégio. Não havia internet, era assim que as coisas se espalhavam. E o boca a boca, involuntariamente, tornava a história cada vez mais assustadora, pois cada um que contava acrescentava uma novidade mais assustadora. Quem conta um conto, ganha um ponto. E crianças podem ser realmente sádicas e criativas. Alguma dessas lendas urbanas, mesmo desafiando uma análise mais racional, certamente já apavoraram quem foi criança na década de 80.

A Loira do Banheiro é um exemplo clássico. Como eram tempos de boca a boca, acredito que a lenda não seja universal, mas basicamente ela envolvia um ritual que, salvo engano, era apagar todas as luzes, acender uma vela na frente do espelho e dizer seu nome três vezes. Feito isso ela apareceria e se vingaria de alguma coisa que não me lembro. O ponto é que o ritual em si era assustador e nos deixava sugestionados, então, a maior parte de nós e nisso eu me incluo, nem chegava a efetuar o ritual até o final, pois o cagaço de ficar no escuro apenas iluminado pela penumbra da vela já bastava para qualquer resquício de coragem ir embora.

Sempre tinha um mentirosinho que jurava ter visto e o resto se cagava de medo demais para colocar à prova a lenda e tentar fazer o ritual para confirmar ou não a existência da lenda urbana. E se, por um acaso, alguém um pouquinho mais psicopata tirasse forças do cu para dizer três vezes o nome da Loira do Banheiro, não duvido nada que sua imaginação acabasse por fazê-lo achar que viu algo sobrenatural. Sim, nós éramos bem inocentes na década de 80, e não tinha Google para desmentir nada, a propaganda boca a boca era poderosa.

Tinha também uma lenda urbana de um bebê demônio que teria nascido no ABC paulista, que inclusive ganhou manchete em jornais. O fato foi explorado à exaustão e deu tão certo que outros bebês demônios começaram a “nascer” em outros estados. Vendia jornal. O Brasil viveu um surto de bebês demônios. Mas para essa lenda urbana eu dou algum crédito: de um lugar onde saiu Lula, pode muito bem ter nascido um demônio. Não descarto nada vindo do ABC paulista.

Outro medo bem comum e que já foi objeto de um texto só para ela era o medo de filmes. Destaque para “O Exorcista”, que de tanto estrago que causou, também ganhou um texto só para ele aqui no Desfavor. Mas “o Exorcista” não era o único. Filmes como “Poltergeist” metiam medo em muita gente, principalmente depois do boato de que todos os atores teriam morrido inexplicavelmente em acidentes ao longo das filmagens. “A hora do pesadelo” também foi um desserviço, pois além de assustar, nos causava medo de dormir. Muita gente perdeu noites de sono com receio do Freddy Krugger. Jason também nos assustou, eu mesma sempre que posso o culpo por não querer acampar, porque se falar que não quero dormir com areia no meu fiofó, me chamam de fresca.

Tinha também os filmes que provocavam medo involuntário, que também ganharam texto próprio. Destaque para o maldito “Marcas do Destino”, uma história “comovente de exemplo de superação” mas com um deformado cabeçudo filho da puta que me tirou o sono por muitas noites. Maldito Rocky Dennis! E a suposta criança falecida que aparecia ao fundo em uma cena do filme “Três solteirões e um bebê”? Até o Fantástico endossou esse mito! E mesmo não sendo filme, vale uma menção: a autópsia de um suposto ET que o Fantástico transmitiu já sabendo ser mentirosa assustou muita gente. Acredito que esses filmes involuntários eram até mais traumáticos, porque as emissoras tomavam algum cuidado na hora de exibir uma possuída pelo demônio ou um psicopata com uma faca, mas o porra do Rocky Dennis, cabeçudo de merda, passava na Sessão da Tarde! Você estava lá, fazendo seu lanchinho, tomando seu Todinho, ligava a TV e… FODEU. Três dias sem dormir.

Assim como havia filmes que provocavam medo involuntariamente, também havia pessoas que provocavam medo involuntariamente. Eu morria de medo do Ney Matogrosso, e, sinceramente, não me culpo por isso. Aquela coisa magra, toda maquiada, se contorcendo e gritando me parece, ainda hoje, um motivo muito legítimo para uma criança ter medo. Elke Maravilha, Vovó Mafalda e outras entidades excessivamente paramentadas também despertaram medo em toda uma geração. Medo e confusão, porque eram tempos de preto no branco, de homem ou mulher, onde saber que Vovó Mafalda era homem gerava um grande tilt mental. Menção honrosa para nosso Chucky Tupiniquim, o Fofão, uma criatura estranha com dois testículos no rosto que tinha por objetivo divertir, mas apavorou muita criança.

E por falar em Fofão, seu boneco também despertava pavor, graças a uma mentira repetida à exaustão: ele possuía uma faca do lado de dentro e quando você menos esperava, ele ganhava vida e vinha te esfaquear. Claro que era mentira, a única facada que ele dava era no momento da compra. Não tinha faca nenhuma, era apenas uma haste de sustentação para manter sua cabeça de testículos firme no tronco. Acontece que essa haste, quando apalpada por uma criança sugestionada, virava facilmente uma faca. No quesito brinquedos, o boneco do Fofão não era o único a provocar medo. A boneca da Xuxa também. Provocava medo nos pais por causa do preço e medo nas crianças, graças ao boato de que ela ganhava vida à noite e atacava seus donos. Curioso que só te contavam isso depois que você ganhava a boneca. O poder da mídia: boneca cara e assassina, e mesmo assim bateu recorde de vendas!

Também havia rituais que metiam medo. Quem foi criança na década de 80 seguramente tem alguma história bizarra para contar envolvendo a Brincadeira do Copo, que nada mais é do que um tabuleiro Ouija com baixíssimos recursos orçamentários. Acreditávamos que era possível evocar espíritos através de reza, que se comunicariam guiando um copo por várias letras desenhadas em uma folha de papel, uma pobreza só. Eu sempre fui excluída, porque nunca soube rezar, o que em parte para mim era uma alívio, já que estava sempre me cagando de medo mas não queria ser arregona. Não saber rezar era um motivo de força maior que me fazia sair com dignidade dessa furada. Esse foi um dos muitos benefícios que o ateísmo me proporcionou, desde a mais tenra infância.

Existia também uma categoria de lenda urbana “possível”, coisas fisicamente viáveis mas provavelmente mentirosas. Dentre elas a clássica história da pessoa que foi sequestrada e que acordou em uma banheira cheia de gelo, com uma cicatriz e um bilhete mandando ligar para um médico ou ela morreria. Ao ser levada ao hospital se constata que a pessoa teve os dois rins roubados. Essa era motivo para os pais te proibirem de fazer basicamente tudo que eles não queriam: o medo de perder o rim por aí te fazia não falar com estranhos, não aceitar comida de estranho, não pegar carona de estranhos… O ladrão de rim teve uma forte função social e pedagógica, mais ou menos como aquela criança que estava passando fome na África e te colocava na obrigação de comer toda a comida do seu prato. Adultos podem ser bem oportunistas.

Tinha também uma história envolvendo uma gangue de palhaços que andava em uma Kombi branca barbarizando crianças. Há várias versões para o que eles faziam, mas a mais comum é que matavam a criança para retirar seus órgãos e depois devolviam o corpo “vazio” para os pais. Muita gente tem medo de palhaço até hoje por causa disso. Todo mundo tinha um vizinho que tinha um primo que tinha um amigo que morreu assim. E a lenda da seringa? Todo mundo olhava bem para a cadeira do cinema antes de sentar. Dizia que em vários cinemas seringas eram deixadas aleatoriamente em cadeiras e alguns desavisados que sentavam sem olhar eram furados e mais tarde descobriam estar com AIDS. Banheiro de cinema também tinha histórias arrepiantes, até hoje eu não vou ao banheiro em cinema. Essas coisas entram no nosso inconsciente.

Na década de 80 o que hoje são os seriados eram os clipes: top em tecnologia, acompanhados por todos, comentados por todos. Cada lançamento era super aguardado, comentado e visto.E dentre os clipes, um se destacou no quesito medo: Thriller, do Michael Jackson. Não pelos motivos reais, pois ainda não sabíamos que ele provavelmente queria fazer sexo com nós, crianças. Mas pelos efeitos especiais, que hoje mais lembram o seriado Chaves, mas na época eram bombásticos, somado ao enredo de zumbis. Thriller tirou o sono de muita criança. Porque criança é assim: valentona de dia, mas quando anoitece não dorme. Muitos pais perderam uma noite de sexo para abrigar uma criança apavorada com Thriller. No meu caso, minha escola fez o desfavor de passar esta merda para os alunos da minha turma, causando um cagaço coletivo totalmente desnecessário. Sentiram o nível da escola onde eu estudei, né? Michael Jackson era considerado, de alguma forma, educativo.

Assim como haviam clipes que assustaram toda uma geração, também havia discos. O disco da Xuxa, que se tocado de trás para frente mostrariam a voz do diabo. Hoje eu tenho certeza de que tocado da forma correta mostrava a voz do diabo, mas enfim. Também havia mito envolvendo discos dos Menudos e do Balão Mágico. Nada que uma mente sugestionada não pudesse criar. Palavras desconexas de trás para frente eram imediatamente associadas à palavra mais apavorante que nossos pequenos cérebros pudessem pensar, coisas como “sangue”, “morte” e “demônio”. E uma vez que um de nós ouvia algo apavorante, verbalizava isso e os demais, altamente sugestionado e movidos por um desejo de ter vivenciado algo especial, também passavam a ouvir. Em minutos tudo virava uma verdade incontestável e lá estávamos nós, reféns de nossas próprias mentiras, nos cagando nas calças. Impressionante como na minha infância tínhamos uma vertente masoquista, enquanto que as crianças de hoje parecem cada vez mais sádicas.

O pavor provocado pelas artes era expressivo. Na pintura também tivemos contribuições. A bola da vez eram os quadros do italiano Giovanni Bragolin, que retratavam crianças chorando. Dizia-se que ele tinha feito um pacto com o diabo, mas a julgar pelos termos, o pacto foi firmado no Brasil, porque em vez dele oferecer sua própria alma, ele ofereceu a alma de quem comprava os quadros, uma tremenda esculhambação! O resultado seria uma série de desastres ocorridos com cada comprador dos quadros: incêndios, mortes, doenças e muitas mensagens subliminares escondidas nos quadros. Quem, por uma infelicidade tinha uma réplica de um desses quadros em casa se pelava de medo. Mau gosto colocar quadro de criança chorando na parede, mas o que esperar de quem pendura um ser humano ensanguentado preso com pregos a um instrumento de tortura na sala? Se Jesus tivesse sido executado em uma cadeira elétrica, todos andariam com pequenas cadeiras elétricas penduradas como pingente no pescoço.

Havia medos alimentares. Além daquela culpa cristã babaca de ter que comer tudo que estava no prato porque em algum lugar da África uma criança passava fome, alimentos nos deram outros dissabores. Tinha um pirulito que coloria a língua de azul e rapidamente ganhou a fama de ser cancerígeno. Muita coisa tinha fama de cancerígena nessa época, menos o que realmente dá câncer: cigarro e Mc Donald´s. E por falar em Mc Donald´s, havia uma lenda a seu respeito. Muitas unidades tinham uma piscina de bolinhas (bazinga!) para as crianças brincarem e surgiu um boato que crianças que entravam ali morriam depois de serem mordidas por cobras venenosas que haviam feito um ninho no fundo da piscina. O que mata não são as cobras, é comer no Mc Donald´s, mas eram tempos de pouca informação.

Tem também aqueles medos nonsense, inexplicáveis, indecifráveis. Muita gente tinha medo da Zebrinha do Fantástico. Ok, não era lá um primor o gráfico e se mexia de forma estranha. Muita gente também tinha medo daquela música do Plantão Globo, provavelmente porque sempre que tocava vinha alguma desgraça: ou alguém tinha morrido, ou algo trágico tinha acontecido. O Jesus, do SBT, que aparecia com um foco de luz na cabeça também despertava, no mínimo, algum receio. No caso, eu achava que era um mendigo, mas a criação em um lar ateu faz a gente desconhecer JC e, convenhamos, seu layout indicava a mendicância. Mestre dos Magos, da Caverna do Dragão também tinha suas vítimas, mais do que o inimigo em si, O Vingador.

É, acabou meu limite de quatro páginas. Certamente deixei passar muitos medos, mas felizmente este é um lugar onde o texto continua nos comentários. Falemos sobre os medos da nossa infância…

Para dizer que não tinha medo de nada disso e que eu é que sou uma cagona, para dizer que na verdade eu sou é velha ou ainda para contar seu medo de infância: sally@desfavor.com


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