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Ele disse, ela disse: Desfavor confesso.

| Desfavor | | 27 comentários em Ele disse, ela disse: Desfavor confesso.

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O ditado diz que a mentira tem pernas curtas. Quando chega a hora de dar um passo maior que as pernas, Sally e Somir discordam sobre a chance do mentiroso tropeçar no caminho. Os impopulares escolhem para qual lado ir.

Tema de hoje: Confessar uma mentira prestes a ser descoberta tem valor?

SOMIR

Sim. Confessar uma mentira que não seria descoberta teria ainda mais valor, mas escolher a verdade tem seus méritos. As pessoas mentem, isso é um fato da vida; e a forma como você lida com isso vai dizer muito qual o seu real interesse em viver num mundo mais honesto. Você defende a verdade na prática ou só em tese?

Em tese a verdade corrige nossos problemas. Na prática ela nos liberta. E tem muita diferença entre os dois conceitos: é natural que acreditemos num valor “cósmico” da honestidade. Como se houvesse uma recompensa esperando por nós depois da verdade. Se todos fossem honestos, teríamos menos sofrimento… certo? Em tese sim.

Na prática nem tanto. Como as crianças não estão lendo, posso ser mais honesto… se tirarmos a mentira da nossa vida, a sociedade desaba antes de termos qualquer chance de utopia da sinceridade. Falar a verdade costuma ter resultados dúbios na vida real. Pode te ajudar, mas como sabemos bem, pode te transformar em pária de uma sociedade de hipócritas profissionais. Uma das únicas recompensas garantidas da honestidade é a alforria da escravidão que é manter uma mentira.

E mesmo isso não é garantia de felicidade. Verdade e mentira são variáveis numa equação bem maior, e os resultados são difíceis de prever. Existe um momento exato onde confessar compensa o engano? A nobreza e o valor de um ser humano está confinada só ali? A verdade tem valor por si só. Na prática, a verdade liberta. Liberta quem mente e quem é vítima da mentira. Como é que liberdade não tem valor?

O que eu quero dizer com isso é que defender a verdade como medida de nobreza pessoal não deixa de ser uma muito bem intencionada… mentira. É claro que queremos honestidade nas pessoas que nos cercam, é claro que devemos valorizar muito mais quem não nos engana para começo de conversa, mas… as pessoas vão mentir. Nem todas sobre algo sério, mas de uma forma ou de outra você vai fazer parte de uma delas. TODO MUNDO é horrível e não tem valor?

Essa política de exigência de honestidade absoluta é mais ou menos como os católicos dizendo que basta não fazer sexo para evitar gravidez e doenças venéreas… é o cúmulo do afastamento da realidade. Se você valoriza honestidade na prática, vai querer que as pessoas ao seu redor pelo menos se (e te) libertem quando tiverem a chance. Qualquer chance.

Não estou desviando da condição do tema de hoje. Sei que estamos falando de quem só confessa quando sente a água batendo na bunda. Não é bonito como confessar por puro arrependimento, mas… é a verdade. É assim que a verdade chegou até você… vai jogá-la porta afora e fingir que nada aconteceu? Ninguém é obrigado a dizer a verdade para você. Pode estar escrito em mil leis diferentes, mas ninguém regula o que se passa dentro da mente humana.

Existem mil táticas diferentes para manter uma mentira viva, mesmo que respirando por aparelhos. Mesmo com provas incontestáveis do contrário, quando alguém se nega a confessar uma mentira para você, deixa pelo menos uma das correntes presas. Todo mundo deve conhecer bem a sensação de saber a verdade e a outra pessoa não admitir. É horrível. É algo que fica com você enquanto você existir. Saber a verdade não te garante nenhum prêmio além da liberdade.

É pra isso que ela serve. E há muito mais valor em quem tira esses grilhões de você – mesmo que tardiamente – do que em quem se nega a confessar. Eu vejo valor até mesmo em quem só se entrega depois de tudo vir à tona do que em quem morre negando. Se o que você quer é uma verdade idealizada com regras bem específicas de validade, não só vai ficar se decepcionando seguidas vezes como também vai continuar preso nas mentiras que te contam.

Se enxergar valor na libertação que a confissão provém significa perdoar? Não, claro que não. Tudo depende da mentira. Podemos estar falando da última fatia de bolo na geladeira ou numa traição aqui. E mais, tudo depende da sua propensão a perdoar. Não misturemos as coisas aqui. Eu enxergo valor numa roupa de grife caríssima, mas nem a pau que compraria uma. Perceber valor é muito diferente de querer comprar. São conceitos diferentes, assim como valorizar a verdade e perdoar a mentira.

Percebem que são valores diferentes para as variáveis? Enxerga-se valor ou não na verdade, perdoa-se ou não a mentira. Se misturar as coisas é evidente que você vai acabar confuso… em momento algum eu estou “amaciando” a mentira com a defesa da confissão. Ela é um problema à parte. Estamos discutindo se existe valor em confessar, mesmo que se confesse às vésperas de ser desmascarado.

Quem está em julgamento aqui é a verdade! A verdade tem valor para você? Claro que a mentira nos irrita, claro que ficamos tentados a juntar tudo num mesmo pacote e torcer o nariz para o cheiro ruim desse ingrediente indesejado, mas mesmo no monte de merda da mentira pode nascer uma flor de verdade. E sim, essa deve ter sido a frase mais gay que eu já escrevi.

Você defende a verdade na prática? Então pense nela. O que você quer para você? A verdade de termos que valorizar as pequenas vitórias ou a mentira de ficar esperando comportamentos ideais dos outros?

Para dizer que eu minto falando a verdade, para reclamar que não gosta de manchas cinzas no seu mundo perfeitamente preto e branco, ou mesmo para dizer que eu me contento com pouco: somir@desfavor.com

SALLY

Ao sentir que vai ser flagrado em uma mentira, se adiantar e contar a verdade tem valor? Não, para mim não tem nenhum valor, muito pelo contrário, fico puta da vida de perceber que a pessoa era capaz de falar a verdade e ainda assim escolheu adiar esse momento: optou por falar apenas para salvar o próprio pescoço. Acho um ato final de egoísmo.

Uma coisa é se adiantar e falar a verdade depois que fez uma merda para que a pessoa não corra o risco de eventualmente saber por terceiros ou porque a consciência pesou, outra coisa bem diferente é deixar para falar quando já está com o cu na seringa, quando o desastre é certo. Quem deixa para falar só quando é CERTO que a pessoa vai descobrir o faz como manobra para tentar minimizar os danos que isso vai gerar. Ofende a minha inteligência. Um desaforo sem tamanho.

Isso mesmo, a confissão só tem valor quando o objetivo é o bem de quem a escuta. Se o objetivo for minimizar os danos de quem fez merda, vira desaforo. A pessoa segurou a informação enquanto achava que dava para esconder sem se importar, mas quando o caldo vai entornar ela é acometida por um surto de consciência e resolver contar tudo? Ah, por favor! Está na cara que quer posar de boazinha quando a merda já está feita. Ela tinha a escolha de contar antes, se fosse correta e ética, mas preferiu esconder e só enfrentar o problema quando era inevitável que ele se torne público. Feio demais.

O que move alguém assim é o cu piscando de medo, não a ética. Me recusoa recompensar um egoísmo e uma afronta à minha inteligência. Essa premissa de que se confessar e se arrepender mesmo que seja no último minuto tudo vai ser perdoado eu deixo para a igreja católica, comigo não. Eu costumo classificar o ato das pessoas de olho na intenção. Se a intenção fosse me preservar, teria falado ainda que não houvesse qualquer risco ou então não teria feito nada que gerasse o risco. Gente que só aprende a nadar quando a bunda bate na água e ainda tenta fazer disso um ato de consideração não merece recompensa.

Eu não duvido que muita gente o faça sem perceber, sem maldade. Que deixe para contar aos 48 do segundo tempo, quanto está prestes a ser flagrada, sem necessariamente maquinar isso como uma forma de “salvar seu pescoço”. Mas, ainda assim, a motivação é essa, porque mesmo inconscientemente, temos motivação para agir. Só o Capitão Bruno faz as coisas “porque sim” (tome spray de pimenta!). Ainda que a pessoa fale apenas para se sentir melhor, para aliviar sua própria consciência, continua sendo um motivo egoísta. Se pensasse mesmo no outro ou não tinha feito a merda, ou tinha contado por livre e espontânea vontade porque a consciência ia pesar.

Vai ter quem pense que eu estou punindo a pessoa por falar a verdade. Não, eu estou magoada por ela ter, em primeira instância, feito algo que me magoa escondido de mim e ter se achado espertona, capaz de esconder isso para sempre. É um misto de arrogância com falta de consideração que não vai ser atenuado com uma confissão forçada pelas circunstâncias. A pessoa só confessa porque acha que essa confissão vai fazer bem A ELA, porque acha que vai comover o interlocutor com um rompante de verdade, porque acha que falar a verdade a qualquer tempo, ainda que obrigado pelas circunstâncias, tem algum mérito. Não tem. Quando o que move é a vontade de limpar sua barra, não tem mérito algum. Mas infelizmente, socialmente tem mérito, graças à preguiça de pensar das pessoas.

Não cola ter um surto de consciência pesada justamente quando está sendo flagrado. E as pessoas só se prestam a esse papel ridículo porque isso vem sendo socialmente aceito. Na hora em que a coletividade criar vergonha na cara e o ato de se confessar porque vai ser flagrado não for recompensado, garanto que mais ninguém faz. Essa mania cristã que as pessoas tem de achar que uma confissão é sempre algo bom, é sempre uma prova de boa vontade. Chega disso, minha gente! Isso é álibi para gente sem vergonha na cara!

Essa insistênciaem focar no ato e não na motivação leva a muitas escolhas erradas. Se eu doo sangue mas só porque me pagaram mil reais para fazê-lo, é um gesto nobre? Suponho que não. O ato nunca é nobre por si só. Nem mesmo a tão amada “confissão”. Se motivada por algo egoísta ou mesquinho, confissão vale MERDA. Quão difícil é perceber isso? Muito. Porque sempre que exponho esse argumento as pessoas respondem como se não tivessem me ouvido: “Ai Sally, coitado, pelo menos ele confessou”. Daí eu desisto de falar, porque pelo visto a confissão, por si só, independente do contexto e da intenção, é tida como algo sagrado na atual sociedade doentia que vivemos.

Logicamente isso reflete em quem tem o discernimento de não aceitar confissão como algo necessariamente bom: a pessoa que recebe uma negativa, apesar da confissão aos 48 do segundo tempo, ousa ficar puta se essa confissão não for aplaudida! Dá para acreditar? Pois é, acontece. Se partiu da pessoa falar, mesmo que estivesse com a faca no pescoço, ela te cobra meio que uma obrigação de perdão ou ao menos atenuação da putez. E se você não der, vira rancoroso, escroto e radical. Mais um motivo para combater essa atitude de passar a mão na cabeça de qualquer arrependimento: se não quem paga de malvada é a vítima.

Chega dessa obrigação de atenuar a culpa de quem usa de um artifício babaca para melhorar sua situação. Ninguém aqui é espírito de luz, ninguém dá a outra face, ninguém tem a menos intenção de ir para o Nosso Lar, aquele lugar chato e escroto. Podemos ser realistas sem medo do julgamento de um Amigo Imaginário. Então, vamos parar com essa palhaçada de nos deixar impor perdão ou de dar algum valor para algo que na verdade deveria agravar a pena? Tirem esse pensamento cristão da cabeça, confissão vale merda se for movida pelo medo.

Para dizer que concorda mas que vai continuar se confessando porque bem ou mal isso atenua a ira das pessoas, para dizer que concorda mas já desistiu de nadar contra a maré ou ainda para dizer que confessar é para os fracos, os fortes negam até a morte: sally@desfavor.com


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