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Flertando com o desastre: Ufa!nismo.

| Somir | | 20 comentários em Flertando com o desastre: Ufa!nismo.

fd-ufanismo

Ou: Constatando o óbvio. A Copa no Brasil dava sinais que não despertaria tanto patriotismo assim nos nativos. Até bem perto do primeiro toque na bola, a febre do verde-e-amarelo estava bem mais restrita à realidade paralela da publicidade do que à das ruas. Só passado o apito inicial que nossos índios começaram se pintar para a festa; e pior, como se nada. Tirar a camisa amarela da gaveta durante a Copa é praticamente memória muscular para o nosso povo… E isso nada tem a ver com amor à pátria.

Nem mesmo com amor pelo esporte bretão. Uma considerável parcela da população brasileira sequer se importa com futebol: que Flamengo, que Corinthians que nada… “nenhum time” é a maior torcida do país. Poucos vão se importar com partidas do naipe de Nigéria contra Irã, mas todo mundo sai (ou quer sair) mais cedo do trabalho para ver Neymar e cia. contra seja lá quem estiver no caminho.

Aliás, podia ser Zé Ninguém e cia. que o povo ainda sim faria a mesma coisa. Não é o jogo, não é nem o orgulho nacional… é uma coisa para fazer, uma fantasia para vestir, uma chance de fazer parte. É a gentarada na rua com roupas verdes e amarelas, cornetas e fogos de artifício. Extremamente razoável que você ache tudo muito brega e irritante, eu mesmo que adoro futebol detesto essa festança toda… Mas, temos que entender esse clima nauseante de brasilidade também é compreensível.

Porque são esses os momentos que abrem janelas para a verdadeira natureza das pessoas ao nosso redor. Não é sobre a Copa, é sobre a data. O momento do jogo combina o incômodo de lidar com a chatice dos outros com um conceito de união e propósito coletivo que é uma das coisas mais valiosas dessa maldita e bendita humanidade. Temos que saber separar o que se critica e mais que tudo, saber explicar o que se critica.

Essa congruência momentânea de interesses não vai existir apenas para fazer o difícil. As manifestações do ano passado demonstraram como o país consegue se alinhar (mesmo que por pouquíssimo tempo) num desejo coerente por uma vida melhor. O que eu acredito que muita gente falhe em perceber (e dessa vez não estou falando primariamente dos “nossos” como naquele outro texto) é que as pessoas com as roupas coloridas correndo para ver o jogo estão no mesmo “estado de espírito” que as marchando por aí contra o Estado corrupto e violento em busca de melhorias na vida das pessoas.

Não, sério. Tem que analisar a base disso tudo para não se perder nas ramificações. As pessoas querem um país melhor, sempre vão dizer isso se perguntadas; mas as pessoas também querem um minuto de folga. Algo que as permita se afastar da rotina e colocá-las num estado mental de paz e pertencimento. Nossa sociedade toda é feita de significados criados por nós mesmos, desde relações pessoais até as profissionais. Eventualmente é direito de cada um de se deixar levar pela massa e viver um momento “vazio” desses significados.

É assim que as pessoas não enlouquecem. Que critiquemos sem medo os que se deixam embriagar pela superficialidade e pela hipocrisia, mas que consigamos colocar em perspectiva algo como um país parar para ver um jogo de Copa do Mundo. Há preguiça e desinteresse no próprio bem aí, com certeza, mas há também uma expressão de consciência coletiva muito mal aproveitada por quem luta pela melhoria de nossas condições.

E se você não sabia por que eu resolvi chamar esta coluna de Flertando com o Desastre, vai saber agora: começa a se esvair minha simpatia pelos grupos protestando pelo país afora. Não é algo irreconciliável, eu acredito que seus “corações” estejam no lugar certo, mas as mentes andam perigosamente obtusas.

Pensemos no seguinte: milhões e milhões de pessoas claramente de saco cheio de suas rotinas correndo para suas casas para ver algo que na prática não vai mudar uma vírgula em suas vidas… Você vai rir, mas é uma forma de protesto bem clara. O problema é que o brasileiro está condicionado a achar que só está fazendo festa e expressando sua inexplicável alegria. Os que parecem sequer pensar no assunto e os que observam com mais cuidado.

A Copa foi um show de horrores desde o começo da preparação, mas à partir do primeiro minuto de jogo, é válvula de escape. Nenhuma hashtag vai impedir que ela continue, só mesmo uma falha da seleção canarinho para destruir o clima. O brasileiro vai programar seus churrascos de acordo com os jogos da seleção, vai adquirir dívidas no seu banco de horas e vai até mesmo perder dinheiro para ter esse momento. TUDO para escapar um pouco da realidade.

Quando as manifestações saem às ruas durante os dias de jogos do Brasil, reduzem sua efetividade para ganhar as mentes e os corações desse povo entorpecido. O direito à manifestação eu creio ser inalienável e a brutalidade policial um crime absurdo; só não dá para ignorar como o manifestante vai interagir com o inconsciente desse povo de folga. O protesto é uma lembrança constante da fuga da maioria. Imagino que as manifestações nessas datas tenham por objetivo confrontar até mesmo quem não é o Estado.

Que a pessoa bebendo num sofá saiba que tem gente tomando borrachada para fazer de seu mundo um lugar melhor. Que fique bem claro que não há folga quando se tem um objetivo desse porte… E é aí que a mente humana começa a pregar peças: temos uma habilidade incrível de desviar de culpa. O brasileiro não vai morder essa isca durante a Copa. Vai reagir no sentido oposto, em defesa de seu momento alheio a papéis sociais mais complexos do que consumir e fazer barulho.

Eu nem estou dizendo que isso está certo. Em tese não se tem por onde repreender quem não engole os gastos bisonhos da Copa e o festival de desmandos e incompetências de nossos governantes… Na prática, basta ser um incômodo. Manifestante vira coxinha, criança mal educada, arruaceiro… Estou apenas constatando o óbvio: peitar um povo que está de saco cheio de tudo é receita de insucesso. Um ano antes da Copa todo mundo saía na rua: era uma fantasia bonita, era algo para se fazer, era sensação de pertencimento. Durante a Copa? Perde de goleada da concorrência de um sofá confortável e a catarse de comemorar um gol ou uma vitória.

Era previsível. Quem quer mudar um país precisa conhecê-lo. Por concordar com tantas das reivindicações dos manifestantes que eu vou perdendo simpatia por eles agora, estão enfraquecendo sem necessidade. Mais um motivo para ter escolhido esta coluna: achei errado xingar a Dilma na abertura da Copa. Não porque ela mereça menos, mas porque é falta de pensamento estratégico. Muita gente aproveitou para usar a carta da vitimização e enfraquecer a mensagem VÁLIDA daqueles impropérios.

Por mais que doa que essa seja a verdade, essa é a verdade: com a Copa não há quem possa. Perceber que o brasileiro ainda está mais ou menos no mesmo clima que estava durante as manifestações do ano passado não é otimismo exacerbado, é analisar a situação de forma fria e calculista. Não é durante os jogos e o “encantamento” do povo com o evento que se vai catalisar esse poder. Tem que saber esperar.

Relevância da mobilização não é um fator que desequilibre o jogo. Timing é. Esse povo todo tem que seguir seus rituais ufanistas de ocasião antes de ter cabeça para voltar ao trabalho.

Para dizer que não entendeu de que lado eu estou, para dizer que vai me xingar de petista e tucano ao mesmo tempo para se garantir, ou mesmo para dizer que já entendeu que eu gosto de achar desculpas para ver futebol: somir@desfavor.com


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