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Crer ou não crer?

Crer ou não crer?

| Desfavor | | 66 comentários em Crer ou não crer?

Mesmo que a disparidade entre os grupos ainda seja gigantesca, religiosos e ateus travam discussões cada vez mais públicas e notórias sobre o tema que os divide. Sally e Somir concordam em não acreditar em divindades, mas quando o assunto é “espalhar a palavra”, o conflito se instaura. Os impopulares fazem sua fé nos comentários.

Tema de hoje: Vale a pena tentar convencer alguém que Deus não existe?

SOMIR

Sim. Vale a pena convencer alguém que mulheres tem direito de estudar? Vale a pena convencer alguém que não se deve matar quem lê um livro diferente? Vale a pena convencer alguém a camisinha não é a culpada pela AIDS? Vale a pena convencer alguém a não dar seu dinheiro para charlatões e aproveitadores?

Assim como valeu a pena convencer as pessoas a não queimarem cientistas em praça pública ou mesmo invadir outras terras para matar e torturar pessoas que acreditam em outros deuses, vale muito a pena tentar diminuir a influência da ignorância e da selvageria na sociedade humana. “Deus” pode até parecer inofensivo como conceito se observarmos um ou outro indivíduo, mas nas escala geral das coisas seu impacto é assustador. Os malucos assassinos/suicidas islâmicos de hoje eram cristãos ontem. Não tem nada a ver com os ensinamentos de nenhuma delas: os tão pacíficos budistas que são os assassinos intolerantes na Birmânia, por exemplo.

Não é a religião em questão, é ter esse “handicap” terrível de acreditar no Papai Noel depois de adulto. É evidente que um ser humano com uma falha considerável dessas na sua capacidade de percepção da realidade está propenso a cometer muito mais erros de julgamento. Não é necessariamente burrice, é um costume de tempos mais selvagens que continua aceitável e até louvável nos dias atuais.

O problema é que não se quebra o ciclo. Crianças sofrem lavagem cerebral sobre divindades e depois seguem sua vida quase sem encontrar um contraponto. Consegui evoluir meu ponto de vista sobre pessoas religiosas com o tempo: durante muito tempo acreditei ser burrice delas. Simples assim! Eu era inteligente por perceber a bobagem incrível da religião e elas burras por acreditar.

Evidente que as coisas não são tão simples. Ou tão elogiosas para mim… não é sobre inteligência, é sobre liberdade. Eu tive a necessária liberdade para fazer a escolha. A maioria das pessoas não tem. E essa liberdade não vem só de não ser forçado a seguir a mesma religião dos pais e/ou grupo social (como mero costume que de fato é), ela também vem de saber que se tem uma escolha. Religiões tendem a tratar ateus como os piores párias de todos justamente porque é no ateísmo que surge a opção de nunca mais voltar para suas garras.

Não dizer que existe uma saída é muito parecido com não permitir a saída. A escolha precisa existir para se exercer liberdade. Quando eu acreditava que meu ateísmo era resultado direto de minha superioridade intelectual sobre os outros seres humanos, também achava uma bobagem tentar convencer alguém sobre a não existência de Deus e seus similares: “Oras, se eu NASCI superior, não é questão de argumentação. Só quem for tão evoluído quanto eu vai entender…”.

Egocêntrico que sou, a ideia me aquecia por dentro. Por sorte (e um considerável esforço) consegui passar dessa fase masturbatória. Como eu disse em um texto recente, acho válido passar por esse momento de arrogância, mas só se você estiver disposto a fazer o caminho de volta quando cair em si. Há um meio termo.

A pregação é mesmo algo chato. Seja do religioso ou do ateu. Temos muitas outras preocupações na vida… E na prática, a chance de você terminar uma discussão com um religioso dizendo algo como “o que você disse faz muito sentido, deus não existe mesmo…” é basicamente nula. Lógica não se traduz de uma mente para a outra com tanta eficiência. Mas, quando você ao menos defende sua postura (quando ela é relevante na conversa), você está mostrando que a escolha existe. E ela não se assemelha em nada com o que muitos dos religiosos imaginam.

E mesmo que o religioso perceba a escolha, a liberdade tem outro efeito colateral: não se pode prever o resultado. Muita gente vai escolher a crença na divindade. Só que quem já foi “contaminado” pela dúvida razoável não se presta mais aos papéis ridículos de quem acredita por acreditar. Alguém que consegue reconhecer outras formas de pensar dificilmente vai amarrar bombas ao redor do corpo.

Vale MUITO a pena tentar convencer alguém que deuses não existem. Ao ajudar no processo de transformar os 100% de certeza em 99.9%, você está contribuindo para um mundo mais tolerante e progressista. Bobagem achar que o objetivo é aumentar seu clube, é diminuir o deles. O poder da religião institucionalizada é dependente de um pequeno grupo de fanáticos impressionando e ameaçando um colossal número de quase indiferentes.

Quando você não se esconde dessa discussão, ajuda toda essa bagagem ancestral de ignorância, intolerância e violência ficar um pouco mais leve. Se não para o seu dia-a-dia, pelo menos para o das próximas gerações. E eu sei que muita gente pensa que não tem obrigação nenhuma de ajudar nesse processo. De fato, não tem. Mas todas as pessoas que lutaram contra essa doença social antes de você também não tinham. E nós desfrutamos das vantagens que a luta delas conquistou. Você não é obrigado a fazer, mas dizer que não existem motivos para fazê-lo é auto-perdão barato. Pelo menos assuma que não quer fazer esse esforço por preguiça ou medo, é muito mais digno.

Ah, e para quem vier falar de “ateu chato” como se fosse relevante: imagine que estivéssemos discutindo sobre transporte público e toda sua contribuição fosse reclamar do bigode de um cobrador que viu num ônibus que pegou outro dia. Esse é o grau de preguiça intelectual que você está demonstrando. Grandes merdas, ninguém gosta de gente chata. Mas… mesmo assim… entre um chato que te diz que você é livre e um chato que te diz que você é um escravo… sério que você não enxerga nenhuma diferença?

De qualquer forma, só para não perder a oportunidade: Você é livre.

Para dizer que acha tudo muito chato por definição, para dizer que percebeu como eu sou egocêntrico, ou mesmo para dizer que ninguém sabe de nada e gostaria mesmo de ser um vegetal para nunca precisar pensar (oi, agnósticos!): somir@desfavor.com

SALLY

Vale a pena tentar convencer alguém que Deus não existe? Não.

Melhor não mexer nisso, vai saber porque a pessoa precisa dessa muleta… Eu acho religião (que não se confunde com religiosidade) algo extremamente nocivo, e a religião eu combato: argumento contra essa babaquice de culpa, obrigatoriedade de rituais, etc. Mas discutir a existência de Deus não me apetece. Talvez porque eu ache que o problema não reside em acreditar em Deus, e sim no que os intermediários fazem para ligar quem acredita a Ele. Acreditar em Deus ok, pagar 20% do seu salário para que Ele te ame não.

Se por algum motivo a pessoa se conforta tendo um amigo imaginário na fase adulta da sua vida, tá joinha. Não creio que isso me afete ou afete a sociedade. Não o simples acreditar em Deus. Conheço pessoas que acreditam em Deus, porém não se sujeitam a nenhuma restrição ou ritual de determinada religião e convivo perfeitamente com elas. Crença é algo pessoal, de foto íntimo, quem sou eu para convencer a pessoa a acreditar ou não em uma coisa para a qual não existem provas nem para um lado, nem para o outro?

Seria como perguntar se vale a pena tentar convencer alguém que não existem ETs. Com que base eu vou argumentar algo assim? Tem gente que acredita, tem gente que diz que viu e tem gente que não acredita. Porque o meu achar seria superior ao achar de outra pessoa? Fosse uma (e tem gente que se caga de medo, como a que vos fala). Uma discussão mais concreta, como a existência de água no planeta Terra, vale uma tentativa: bastava abrir uma torneira e começar a argumentar. Mas não é o caso. Meu achar que não existe vale tanto quanto o achar da pessoa que existe. Nem eu posso provar que não existe, nem a pessoa pode provar que existe, a menos que ambos os lados usem argumentos fantasiosos ou falaciosos, o que me tiraria a vontade de sequer conversar com a pessoa.

Eu fico puta quando vem alguém tentar me convencer que Deus existe. Entendo como igualmente inconveniente ir até alguém e ficar tentando convencer que Deus não existe. Acredita quem quer, no que quer (ou precisa). O fato de uma pessoa acreditar em Deus não me incomoda o suficiente para intervir em suas crenças nem o acho tão nocivo para a pessoa a ponto de merecer um alerta. E mesmo que meincomodasse, me afastaria, não tentaria discutir algo subjetivo e irracional. Talvez aquela crença seja necessária para que a pessoa leve uma vida menos infeliz e mais funcional. Quem sou eu para dizer.

Me parece uma questão de respeito. Eu respeito a crença em Deus. Não respeito quem paga 20% do seu salário em nome dela, ou quem deixa de usar métodos contraceptivos em nome dela, mas a simples crença em Deus eu consigo respeitar. Acho que se vive melhor sem precisar contar com um amigo imaginário, mas isso eu coloco em prática na minha vida, não tenho a pretensão de que a vida dos outros seja regida pelas mesmas escolhas que eu faço. Vai saber como foi a vida da pessoa, né? Sua história, suas vivências… ninguém melhor do que ela para saber o que lhe faz bem.

Também acredito que todos tem a capacidade de questionar a existência de Deus quando isso se tornar relevante para suas vidas. É algo que deve vir de dentro para fora, e não de fora para dentro. Você pode usar os melhores argumentos do mundo, que se a pessoa não estiver pronta para abandonar essa muleta emocional, ela vai encontrar argumentos e entrar em negação para se apegar à ideia de Deus. Periga até ela ficar com raiva de você, aquela história que a gente falou na semana passada, de tirar o escudo de quem ainda precisa dele. Se a pessoa não consegue ver uma coisa hoje, é porque ainda não está pronta. Não serei eu esfregando na cara dela que vai mudar isso.

Mesmo que você ache nocivo e queira alertar a pessoa sobre algo que considera um atraso de vida ou um atraso intelectual, entenda meu argumento: é inútil. Se a pessoa estivesse pronta, internamente, para ver que não faz muito sentido um amiguinho imaginário que te protege mas mata criança de fome, permite estupros a rodo e dá um microfone para o Fábio Porchat, o veria por conta própria. E creio eu que tem muita gente por aí que, internamente, lá no fundinho, se não desacredita, no mínimo tem dúvidas que Deus exista, mas não verbaliza pelo medo de ser vilanizado. E o é, já escrevi um texto sobre ateus onde mostrei o quão grave é o preconceito com eles no Brasil.

Talvez metade dos religiosos brasileiros, se fossem jogados em uma sociedade com um IDH um pouquinho melhor, onde o número de ateus é bem maior, rumasse com a multidão. Pois é, tem muita gente assim: vai com a maioria por medo de destoar e não ser aceito. Vai com a maioria em busca de aceitação e admiração, porque não tem qualidades nem luz própria para ser aceito pelo que é, então se mimetiza com o colega, para que o colega se veja refletido nele e elogie a si mesmo elogiando a ele. A forma mais eficiente de alguém te achar inteligente é concordando com a pessoa.

Então, não adianta bombardear a pessoa com argumentos racionais, acreditar em Deus é também uma questão social que gera um ônus. Uma pessoa tem que ser muito inteira, muito bem resolvida e muito segura para segurar o rojão de ser ateu no Brasil. Eu não vou fazer isso com ninguém, até porque, penso que uma pessoa que precisa da crença em Deus NÃO TEM força nem estrutura para suportar o que implica ser ateu no Brasil. Deixa a pessoa quietinha que é melhor. Porque deixar de acreditar em Deus é como homem que dá o cu: um caminho sem volta, nenhum dos que foram voltaram.

Se a pessoa precisa acreditar naquilo, algum motivo deve ter. Ninguém melhor do que ela sabe mensurar o custo/benefício de acreditar em Deus. Deve estar valendo para ela, no saldo final. A verdade é que todos nós nos apegamos a algum tipo de muleta, mais ou menos óbvia. Não tenho a pretensão de ser o Arauto de Verdade e sair abrindo os olhos das pessoas com a MINHA verdade, que pode muito bem não ser A Verdade. Eu sinceramente acho que Deus não existe, mas isso é o que eu acho, ninguém é obrigado a pensar como eu para ter o meu respeito. Pasmem, a argentina não se acha dona da verdade e o brasileiro aqui de cima sim.

Para dizer que, discretamente, eu fui mais desrespeitosa com quem acredita em Deus, para dizer que não dá nem bom dia para quem acredita em Deus muito menos tentar dialogar ou ainda para me perguntar porque estou escrevendo Deus com letra maiúscula: sally@desfavor.com


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