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Verdade + Verdade = Mentira

Verdade + Verdade = Mentira

| Sally | | 142 comentários em Verdade + Verdade = Mentira

Um conceito que parece custar a entrar na cabeça da maioria das pessoas: É POSSÍVEL MENTIR FALANDO APENAS VERDADES. Dependendo da forma, da ordem, das palavras e tom com que estas verdades serão apresentadas, a conclusão de um somatório delas pode sim ser falsa. Verdade + Verdade pode sim ser = Mentira.

E é nessa que muitos são enganados, traídos pela preguiça mental. Quando alguém te conta uma verdade + outra verdade e você investiga as duas em separado e elas procedem, a tendência é depreender que o resultado dessa soma também é uma verdade. Pois pode não ser, e guarde isso para a vida, seja para não ser enganado, seja para enganar com mais eficiência. Esse é um pulo do gato que quase ninguém (a não ser a vida e o Desfavor) ensina.

Vamos começar com um exemplo batido, um comercial da Folha de São Paulo que, na minha opinião de leiga, é um dos melhores que eu já vi na vida.

Começa com uma imagem desfocada e uma voz narrando os feitos daquele homem: “Este homem pegou uma nação destruída, recuperou sua economia e devolveu orgulho a seu povo. Em seus quatro primeiros anos de governo, o numero de desempregados caiu de 6 milhões para 900 mil pessoas. Este homem fez o produto interno bruto crescer 102% e a renda per capta dobrar. Aumentou o lucro das empresas de 175 milhões para 5 bilhões e reduziu uma hiperinflação a, no máximo, 25% ao ano. Este homem adorava música e pintura. Quando jovem, imaginava seguir carreira artística”. Acrescento por minha conta que também era protetor de animais.

Foi passada uma imagem de uma pessoa que fez o bem para a nação, apenas com verdades cuidadosamente pinçadas. Acho que ninguém tem a coragem de dizer que este homem foi bom para seu país ou para o mundo, mas foi passada essa impressão dizendo apenas verdades. Isso é muito usado em período eleitoral e também por pessoas incompetentes que tentam se manter em cargos de chefia: dados isolados para convencer, estatísticas pinçadas para provar um ponto.

A matemática, dependendo de como for apresentada, MENTE. Um probleminha matemático rápido para ilustrar: três amigos vão tomar cerveja em um bar e a conta totaliza R$ 25,00. Cada amigo deu R$ 10,00 ao garçom e aguardaram pelo troco. O garçom traz R$ 5,00 de troco em moedas de um real, devolvendo um real a cada um dos amigos e ficando com dois reais de gorjeta. Logo, se cada cliente pagou R$ 10,00 e recebeu R$ 1,00 de troco, é possível dizer que cada um gastou R$ 9,00. Logo, se cada um gastou R$ 9,00, é possível dizer que os três juntos gastaram R$ 27,00. Logo, se os três gastaram R$ 27,00 e o garçom ficou com R$ 2,00 de gorjeta… onde FUCKIN’ foi parar o um real que falta?

A resposta é banal. Não falta um real coisa nenhuma. O enunciado é que te induz a erro. O que interessa não é a soma do que sobrou para cada um e sim onde se encontram, ao final, os R$ 30,00 distribuídos: 25 foi para o bar, 3 de troco com os clientes e 2 para o garçom como gorjeta. Números mentem dependendo da forma como sejam apresentados, e muitas vezes nem é por maldade ou desonestidade, é por confusão mental do interlocutor mesmo. E, só para constar, eu não sou inteligente, eu precisei olhar a resposta desse troço na internet porque não entendia para onde tinha ido esse maldito um real.

Questionar é um mal necessário. Não me refiro a uma desconfiança agressiva, uma constante presunção de mentira, e sim a aquele “será?” sobre o qual já tratei em outro texto. Dez segundinhos da sua vida para respirar fundo, avaliar o que está sendo dito e se dizer “será?”.

Lidamos diariamente com a tentação de descartar o que nos incomoda, nos desfavorece ou nos parece injusto e acreditar naquilo que corrobora com nosso ponto de vista. Acontece com todo mundo, acontece comigo também. Aceitar que vivemos em um mundo randômico e, acima de tudo, injusto, dói. O desamparo é menor quando, inconscientemente, optamos por acreditar naquilo que nos favorece e desacreditar aquilo que nos angustia. O mundo fica mais palatável, mas isso também nos deixa muito vulneráveis à malandragem alheia. É o tipo de coisa que dá para fazer na Suíça, mas não no Brasil, se não passam a perna e ainda sambam na sua cara.

Outro exemplo mais prosaico, mas que deve estar fresquinho na cabeça de vocês por causa do último LiveBloggin de domingo: Messi. Falemos de Messi na seleção argentina. Durante todo o período da Copa diversas pessoas tentaram me convencer que ele faz muito pela seleção argentina, sendo um de seus melhores jogadores e “maiores goleadores”. De fato, se você buscar por Seleção Argentina na Wikipedia, até ontem (14 de julho de 2014), encontrará um tópico chamado “Máximos Goleadores” onde indica quem fez mais gols. Em primeiro lugar está nosso herói bom moço, bem apessoado e objeto de ódio do Somir, Gabriel Batistuta, com 56 gols. Logo depois, quem segue? Messi, o Ratão do Banhado, com 40 gols.

Uma alma não reflexiva vai olhar e pensar: “um dos maiores goleadores da história da seleção argentina! Está lá, está comprovado”. Se você levar em conta apenas o numero de gols, que é uma forma bem burra de ver as coisas, vai incidir em erro. O maior goleador não se mede assim. É uma verdade parcial, que para se confirmar como verdade verdadeira precisaria ser conjugada com outros fatores, mas é convenientemente pinçada e difundida. A pessoa procura saber se os números são verdadeiros e depois se dá por satisfeita: ok, os números são verdadeiros, logo Messi é um grande goleador. Será? Vamos colocar uma lupa nessa “verdade”.

Primeira coisa a ser levada em conta para que a avaliação seja justa: quantas partidas cada um jogou. Porque Messi pode ter 40 gols, que é um número elevado, mas também jogou quase 90 partidas, sendo o batedor oficial de pênaltis e de faltas da seleção. Isso soma um percentual de 0,45 gols por partida. Te parece muito? O que você diria se eu te contar que o Higuaín, carinhosamente apelidado por vocês de Éguain, de tão mal que joga, tem um percentual de gols de 0,59? Pois é, Éguain, aquela ruindade que vocês viram dando coice na bola e perdendo os gols que dariam o título à Argentina, tem mais gols por partida do que Messi (20 gols em 34 partidas).

Atentem que eu não estou comparando com um jogador antigo, acho covardia comparar o futebol de Pelé com o futebol atual. São jogadores da mesma época, da mesma seleção. Messi é tão goleador que faz menos gols por partida que Éguain, aquele bem imóvel que estava em campo no domingo, criando raiz. Éguain, o Fred Argentino, o perdedor oficial de gols feitos, fez mais gols por partida que o craque gênio batedor de pênaltis e faltas.O que isso te indica? (fora isso, existem outra dezena de fatores que eu poderia citar sobre Messi na seleção argentina, mas no momento me falta preparo emocional).

Quando você pinça uma informação de um contexto e a divulga de forma autônoma, por mais verdadeira que ela seja, pode se tornar uma mentira. É o caso da clássica piada do português (ainda se pode fazer piada com português, certo?) onde um amigo tenta explicar a ele o significado de “lógica”.

O amigo usa como exemplo um aquário que o português tem em casa perguntando porque ele optou por comprar um aquário. O português diz que comprou para os filhos. O amigo então lhe diz o aquário indica que ele tem filhos e, somado à aliança que ele tem no dedo, isso leva a crer que ele é casado, logo, se pode depreender que ele não é gay. Maravilhado, o português volta para casa e ao se deparar com seu vizinho no elevador pergunta “Tens aquário em casa?” e diante da negativa do vizinho, dá o veredito: “Então és viado!”. Não é só uma piada. Tem muita gente que se reage desta forma, em coisas menos óbvias. Alias, daqui para frente quando alguém falar uma imbecilidade lógica nos comentários, pretendo responder com um “Tens aquário em casa?”.

É com carinho que lhes digo isso, porque andei “estudando” as últimas trolladas que demos em vocês: condicionem seus cérebros para não aceitar uma verdade, por mais verdadeira que ela seja, pois não raro somos enganados por verdade que nos parecem “notórias” mas que quando somadas resultam em uma mentira. É uma espécie de falácia ao quadrado.

Isso vale para todos nós, é um exercício que eu também me obrigo a fazer. Muitas vezes a pessoa que está te dando o combo Verdade + Verdade = Mentira nem ao menos está querendo te enganar, muitas vezes ela própria foi enganada. Então, não se trata de falta de confiança no interlocutor, pois somos todos seres humanos, falíveis, mesmo aqueles argentinos. É questão de aprimoramento pessoal aprender a procurar lógica em tudo que se escuta, confirmar e reconfirmar mentalmente se aquilo de fato faz sentido. Isso, meu amigos, é uma musculação mental que nos deixa mais inteligentes. Sei que hoje inteligência não tá valendo tudo isso, mas eu tenho fé que, parafraseando Dilma de forma deturpada, algum dia a Inteligência vai vencer a Esperança.

O mal do esperto (e do brasileiro no geral) é se achar muito esperto. Nunca leia nada partindo da premissa que você não será enganado. Sempre sente em uma mesa com a premissa mental que você é o mais otário dali. Sinto te dizer, mas provavelmente você, assim como eu, não é nenhum gênio e, apesar de se achar especial, é mais um na manada. Você pode sim ser enganado, e até mesmo ser traído pelo seu cérebro, que tende a acreditar naquilo que te é mais agradável. E mesmo que você de fato seja um gênio, como eu classifico o Somir, ainda assim pode ser enganado por um popular qualquer que tenha habilidade mesmo sem inteligência. Então, o “será?” tem que ser mais que uma música brega do Legião Urbana, tem que ser um estilo de vida.

Não recomendo a ninguém viver paranóico, caçando mentiras, desconfiado da índole alheia full time. Apenas com um constante questionamento: o já falado “será?”. “Será?” não quer dizer que a pessoa está mentindo, quer dizer que você está refletindo sobre o que foi dito para constatar se isso te faz sentido.

A forma como cada um de vocês lida com esse tipo de situação ficou bem claro quando surgiram boatos de teorias da conspiração para a final da Copa por aqui: alguns refutaram de imediato, sem sequer ouvi-las, dizendo que “isso não existe”. Nem sabiam o que era, mas sabiam que não existe. Outros acreditaram de imediato. Observem que segurei a informação que eu tinha até o dia da final e quando divulguei o que me havia sido dito, sem juízo de valor, já tinha muita gente decidida a acreditar ou não acreditar.

Outro ponto importante: além de correr o risco de ser enganado, você SE EXPÕE quando afirma ou desmente algo precocemente, pois isso diz muito sobre o que você é, o que você gosta de acreditar. Uma ótima forma de conhecer uma pessoa é ver aquilo que ela tem dificuldade em aceitar ou aquilo em que ela tem prazer em acreditar. E nem sempre é bom se expor assim. Aprenda que reagindo de forma precipitada, sem os sagrados dez segundos de “será?”, você mostra sua calcinha/cueca intelectualmente para o mundo.

Só tem um porém de questionar: o mundo fica menos cor de rosa. Muita coisa que você adoraria acreditar vai cair por terra, muita coisa que você não gostaria de ver vai dançar macarena na sua cara. É o preço que se paga, baixo, a meu ver, para não ser enganado, passado para trás, sacaneado.

Fosse este um país civilizado, isso não seria tão necessário, mas infelizmente ainda não e é. Em países onde a impunidade é regra, existem um índice maior de mentiras não apenas por parte de seus governantes, mas por parte do povo também. De certa forma, a mentira tem uma vertente cultural. Não que um povo “seja” mais mentiroso que o ouro, o contexto social é que recrimina, repreende menos a mentira. É um mal necessário. Reflitam.

Para tentar defender o Messi, para tentar entender onde está o um real que falta ou ainda para dizer que eu estou em processo de somirização: sally@desfavor.com


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