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Festa-Vingança

Festa-Vingança

| Sally | | 94 comentários em Festa-Vingança

Talvez eu seja inadequada para o Brasil. Talvez eu seja inadequada para o mundo. Não sei dizer. O que sei dizer é que não consigo compreender o conceito de diversão em festas, da forma como elas são concebidas hoje. “Festa”, nos moldes como eu a conheço hoje, para mim, significam tortura.

E já começa na hora de sair de casa, porque não importa o que eu faça, sempre me ronda o pensamento “eu poderia estar dormindo”. Sim, está é sempre uma opção para mim. Invejo aquelas pessoas cheias de energia que trabalham um dia inteiro e depois saem e passam a madrugada na rua. Minha prioridade é meu sono, mas essa sociedade pau no cu fode com meu sono sempre que pode. Você TEM QUE ir na festa, se não fulaninho se ofende – e eu estourei minha cota de adoecimentos em datas festivas.

Acredito que esse efeito que eu apelidei de “ousadia e alegria”, de trabalhar o dia inteiro, pagodear a noite inteira e depois trabalhar o dia inteiro novamente, só seja possível em função do pouco trabalho intelectual. Já falei sobre isso em outro texto específico, então, não vou me estender: está comprovado que trabalho intelectual cansa e demanda muito mais sono do que trabalho braçal. Por isso esse povo do trabalho braçal consegue pagodear a madrugada toda. Mas porra, dá licença, eu uso meu cérebro, eu não tenho energia nem vontade disso.

Foda-se, tem que ir e tem que sorrir, porque se for e ficar com cara de saco cheio vão te perguntar “se era para ficar assim porque veio?” e se você responder a verdade (“porque você é um pau no cu brega que dá festa de merda e se ofende quando as pessoas não vão) a pessoa vai ficar chateada com você. Brasil, o país da sensibilidade.

Começa que você tem que se arrumar para sair. Não bastasse se arrumar a semana toda para trabalhar, vai ter que se arrumar para seu momento de lazer também. E matar seus pés aos poucos com sapatos desconfortáveis, porque ir a festa com sapato confortável é ficção científica. A roupa provavelmente não vai ser muito confortável também. Sim, o desconforto da festa começa já em casa.

A festa em si também me é desconfortável. Festa no Brasil é sinônimo de barulho alto, se não houver, no mínimo, música alta, a festa é considerada “desanimada”. Porque o Brasileiro Médio mede a intensidade com o critério auditivo: quanto mais alto se ri mais engraçada a piada, quanto mais alto se grita mais se prova seu ponto e quanto mais alta a música, melhor a festa. Tudo intenso para mostrar o quanto são felizes. Ô vontade de ser abduzida…

Essa música alta gera uma consequência bizarra: não é possível conversar nas festas, o que para mim, é um contrassenso, pois na minha cabecinha romântica, as pessoas se reúnem para socializar, falar, ouvir, trocar ideias. Não. Não mais. Ao menos não no Brasil. Agora se socializa pela internet e se vai a festa para ostentar roupa/bolsa/sapato ou fazer exposição da sua figura. Não tem conversa.

O curioso é que mesmo sem ter conversa tem flertes, beijos na boca, ficadas. Não entendo como, me parece parte do processo conversar com a pessoa, trocar uma ideia, conhecer minimamente QUEM ela é. Mas aparentemente eu estou ultrapassada, importa O QUE ela é: corpo, roupas, carro. O que ela pensa é o de menos. Se o layout for bacana, o povo se atraca. Nada contra, se atraquem com quem quiserem, mas poxa, não me tirem o direito da conversa. Mas eles tiram, eles sempre tiram.

Só música alta, hoje em dia, pode até ser considerado luxo. Porque música, eventualmente pode até ser boa. Quase nunca o é em festas, mas ao menos existe uma chance. Pior quando é grupo de pagode ou similares. Música ao vivo é a morte de alpargatas. Aí não há esperanças, não há felicidade. Há uma obrigação social de passar no lugar? Ok, rapidamente, para ser visto e sair à francesa torcendo para que o anfitrião perceba sua ausência o mais tarde possível, porque música ao vivo pode provocar AVC em cabeças pensantes. O lado bom é que o anfitrião dificilmente vai descobrir que você saiu cedo, pois vai estar bebendo bastante.

Pois é, também já falei sobre isso: no Brasil existe esse conceito de diversão atrelado à bebida alcóolica. Pudera, tocando uma música alta de merda, só enchendo a cara mesmo. Daí as pessoas bebem, bebem e bebem e riem de coisas que eu não acho graça. Sempre tem um chocado porque eu não bebo. Dependendo da cabeça da pessoa, presumem que sou evangélica ou usuária de Ecstasy, varia muito. Não importa, sempre insistem para que eu beba e de alguma forma rola um desmerecimento implícito ou explícito por não beber. E estou falando de pessoas adultas, com mais de 30 anos.

Quando se tenta trocar alguma ideia com alguém, tem que ser aos berros, ao pé do ouvido e em frases curtas, para ser entendido. É quase que um Twitter ao vivo, se falar mais de 140 caracteres a pessoa não vai te entender e você ainda acorda sem voz no dia seguinte por ficar berrando. Não há comunicação de qualidade, pessoas se reúnem para ter um pretexto para se pegar e beber. Corta a bebida e a música de uma festa e me diz o que sobra.

Não precisa, eu te digo o que sobra: conversa. Só que para conversar tem que ter massa cinzenta, o que infelizmente não é privilégio de todos. Tem festa por aí que se tirar a música, ligar a luz, cortar a bebida e sentar todos em uma mesa fica um silêncio de quinze minutos seguidos. E o silêncio é na melhor das hipóteses. Na pior das hipóteses frases como “sou machista porque prezo por alguns valores” ou “sou contra o aborto porque só Deus pode tirar uma vida” ou “Bandido bom é bandido morto” ou “Vou votar nele porque ele rouba mas pelo menos ele faz alguma coisa” ou ainda “Piada que ofende é falta de respeito” pipocarão a torto e a direito. Eu não sou obrigada.

Quer dizer, eu não deveria ser obrigada. Infelizmente eu sou obrigada, porque as pessoas se acham super importantes e acham que seu gosto hediondo corresponde ao conceito de bom senso e bom gosto mundial. Impressionante: bom gosto e bom senso todo mundo tem. Daí montam uma festa MACAQUITA como essa, onde parecem um bando de bonobos cheirados e se você não vai, se ofendem. Ai de você se não for no casamento, no aniversário ou no whatever uma pessoa minimamente próxima te convidar. É desfeita. Tem que ir. E tem que ir e sorrir. Tem que gostar.

TEM QUE IR? É essa a premissa que me escraviza? Ok, eu tenho um plano. A vida me ensinou que a gentalha é incapaz de se colocar no meu lugar, nem tanto por egoísmo, mas sim pela imbecilidade de nem ao menos cogitar a diversidade de gostos e opiniões. A gentalha pensa que o mundo é seu umbigo e o que ela faz e gosta é do agrado geral. Endossados pela hipocrisia social vigente, onde tudo é lindo, tudo recebe curtidas, likes e elogios falsos, a gentalha pensa que está arrasando na sua festinha, sem nem desconfiar do quanto vão falar mal de tudo quando saírem dali.

Como a gentalha é incapaz de se colocar no lugar de outras pessoas, a grande sacada é obriga-la a fazer isso sem que percebam. Porque com argumentos em abstrato não dá. Não entendem. São como cachorros bípedes, incapazes de abstração. Vão se ofender, vão deturpar, não vão compreender. Melhor criar uma situação, de forma sonsa, que faça a gentalha se colocar no seu lugar sem perceber. Partindo dessa premissa me veio uma ideia à cabeça: a festa-vingança. Atenção para o conceito de Festa-Vingança, ele pode ser útil a você também.

No meu aniversário pretendo dar uma Festa-Vingança para que toda essa cambada de filhos da puta que me obrigam o ano todo a frequentar festas escrotas entendam como me sinto e, por consequência, faltem às minhas próximas festas de aniversário, me permitindo faltar na deles também sem aquele mimimi de ofensas. Esses mecanismos bizarros que temos que criar hoje em dia, nesta terra de ofendidos que é o Brasil.

Vou convidar essa cambada de filho da puta para minha festa de aniversário sem maiores detalhes. Vou alugar um salão, um clube ou qualquer espaço condizente com uma festa padrão. Mas, dessa vez as coisas vão ser do MEU jeito, e quem não gosta vai ter que engolir. Vamos ver como se sentem. Vamos ver se é frescura minha não gostar de música alta, não gostar de gente caindo pelas tabelas de bêbada, não gostar do conjunto da obra que sou obrigada a aturar por todos esses anos. O que eles não gostarem vai virar frescura também.

A música ambiente vai ser baixa, e de preferência música clássica. Suave. As pessoas terão que sentar em uma mesa, pois se eu tenho que amargar horas de pé em um salto por causa da hiperatividade de quem não realiza trabalho intelectual, os hiperativos vão ter que amargar horas quietinhos em retorno, balançando suas perninhas debaixo da mesa por ansiedade e quase explodindo por terem que ficar parados. Vento que venta cá, venta lá.

A festa vai começar com uma rodada de leitura e discussão de alguma obra literária do meu agrado. Pode ser Nietzsche. Em cada cadeira haverá uma apostila com cópia de vários capítulos de uma obra dele, todos terão que sentar e ler em silêncio para depois debater. E vai ter muita gente ali que vai gostar disso, pois tenho muitos amigos com perfil semelhante ao meu. Logo, quem não o fizer vai experimentar o olhar de antipatia e exclusão que eu experimento quando não bebo ou não me porto como um símio no cio em festas.

Após a leitura, começa o debate sobre o material lido. E nesse debate, cobrarei posicionamento de todos os presentes, de modo que quem não leu ou quem leu e não entendeu se sinta muito mal perante os outros. Bullying intelectual é uma nova tendência que pretendo lançar. Serão horas de debate e a gentalha vai ter que ficar parada ali, fingindo participar, como eu faço em suas festas de pobreza intelectual e se constrangendo pelo não pertencimento ao bando.

O tempo não vai passar nunca para eles, como não passa para mim quando sou obrigada a ficar de pé em um salto e sorrir enquanto toca “O nosso lema é ousadia e alegria… na nossa casa tem pagode todo dia… lelerêlerêlerê”. Não vai ter Lelerê. Enfia o Lelerê no cu, na minha festa vai ter Nietzsche. Ousadia e alegria é o caralho, o nosso lema é comedimento e reflexão.

Depois, quando o populacho hiperativo com cérebro atrofiado estiver com coceira no cu de vontade de ir embora, servirei a comida. Porque essa gente adora uma boquinha livre. Em um primeiro momento, tudo muito suave: salmão com cream cheese, aspargos e outras comidas que para o Brasileiro Médio aparentarão sem gosto. Isso para compensar as porras gordurentas e salgadas que servem nas festas. As papilas gustativas, já mortas de tanta feijoada e ketchup no cachorro quente vão chorar com meus sabores suaves.

Mas eu ainda não acabei, vou me vingar de cada comida hedionda que me foi servida em festas bizarras. Desde aquele churrasco com gosto de sola de sapato assado no fogo em vez de ser assado na brasa até aquela inadequada feijoada com restos de porco servida num calor do caralho. Me aguardem. O prato principal vai ser algo bem difícil de comer. Talvez um espaguete carregado de molho de tomate servido apenas com um garfo e uma colher, para que sintam como é bom comer quando se está desconfortável. Se eu estiver muito mal humorada, posso chegar a servir escargots ou ostras ainda dentro da conchinha, daqueles que tem que ser comidos com um pegador de metal.

Como é feio ir embora logo depois de comer, vou aproveitar para meter mais uma atividade após a comida. E como estarei sóbria, vou interpelar qualquer um que tente ir embora fazendo mimimi e me ofendendo. Vou colocar quem tenta ir embora em uma saia justa do caralho, tornando impossível sair. Sim, vão ficar até o fim.

Um sonho: depois da comida 1) pocket show do Rogério Skylab (com suas músicas mais ousadas) + debate sobre as músicas, 2) palestra com Gil Brother Away + debate sobre a palestra e 3) poket stand up do Danilo Gentili (com suas piadas mais ofensivas) + debate sobre os limites do humor onde a maioria esmagadora acha que humor não deve ter limite, não respeitando, atacando e desmerecendo quem se posicionar em sentido contrário. Segue com rodada de piadas dos convidados sobre deficientes, gordos, negros, judeus e outras minorias.

Para fechar a festa, desce um telão com um documentário qualquer do Discovery Channel sobre neurociência e mais debate. Sem álcool em nenhum momento da festa, que fique bem claro. Terminada a festa, um bis ou saideira discutindo os textos mais polêmicos do Desfavor, desmerecendo de forma ostensiva pessoas com mentalidade de Brasileiro Médio.

Pronto. Certeza de que no ano seguinte, só vai na minha festa quem tem muita afinidade de gostos comigo. Os demais vão “adoecer”, “viajar” ou nem ao menos estarão mais falando comigo. Isso vai me libertar da obrigação de ir em suas festas pau no cu, tipo casamento, batizado, aniversário ou qualquer outra data onde a pobreza de espírito dessas pessoas encontre refúgio. Festa-Vingança. Acabou esse caralho de morrer por dentro em festa de amigo, de parente dos outros, de colega, de seja qual for o filho da puta.

Eu deveria patentear essa merda, porque isso vai ser libertador.

É a ofensa que move o mundo atualmente, na forma de chantagem? Não faz mal, eu também sei fazer.Se ofendem porque eu não vou nas suas festinhas escrotas pra caralho? Se preparem para minha próxima festa de aniversário. *risada maligna

Para dizer que gostaria de ir a uma festa como a minha, para finalmente entender e respeitar que alguém ache seu evento uma tortura e não vá ou ainda para tirar proveito da minha ideia e patenteá-la: sally@desfavor.com


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