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Passagem para o inferno.

Passagem para o inferno.

| Sally | | 183 comentários em Passagem para o inferno.

Se você não anda de ônibus, provavelmente não vai achar graça no texto de hoje. Se você anda de ônibus em lugares civilizados, também não. Mas se você passa pelo inferno de utilizar a versão podre deste transporte público, pode ler que em algum momento você vai se identificar. E se você anda de ônibus no Rio de Janeiro, Amigo, tamo junto.

Vamos começar pelos motoristas. Geralmente motoristas de ônibus são psicopatas mal remunerados e com déficit de sono. Perigoso, muito perigoso. Eu discuto com assaltante mas não discuto com motorista de ônibus carioca. São pessoas putas da vida por estarem ali sobrecarregadas por uma jornada exaustiva. Some-se a isso um trânsito estressante e teremos um resultado medonho.

Pobre (entenda-se, de espírito) com poder (entenda-se, com um veículo grande nas mãos) dá nisso. Talvez para tornar aquela jornada exaustiva mais divertida, eles dirigem de forma cinematograficamente perigosa. Mais de uma vez já me ocorreu ser a Sandra Bullock a estar dirigindo o ônibus, pois parece que se reduzir a velocidade uma bomba vai explodir.

Curvas em alta velocidade (quem mora no Rio sabe que tem ônibus no qual as duas rodas de uma lateral se descolam do chão nas curvas mais acentuadas), fechadas violentas e freadas bruscas. As freadas são tão repentinas que você, passageiro, faz cosplay de Smooth Criminal naquele tranco para frente. Se o ônibus estiver cheio, Leis de Newton são desafiadas. Já passei por situações onde dois corpos couberam no mesmo espaço.

Tudo isso é em condições normais de temperatura e pressão. Quando o motorista se emputece, a coisa piora. Pode ser por causa de uma barbeiragem de outro veículo, pode ser pelas vozes na cabeça dele que o mandam acelerar, só sei que uma das ocasiões na vida onde mais sinto falta de ter fé e uma religião é quando um motorista de ônibus se emputece. Passar por isso sem acreditar que uma força maior te protege é duro, muito duro.

Falemos agora do ônibus em si. No Rio de Janeiro existem duas categorias de ônibus: o Morra de Calor e o Morra de Frio. Ou é um ônibus sem ar condicionado onde você sente até o seu cu suar, ou é um”frescão”, que na verdade deveria se chamar “geladão” ou “congeladão”, porque a temperatura é polar e irregulável. Não sei se faz parte da psicopatia dos motoristas ou se é verdade, mas eles costumam dizer que não tem como regular a temperatura do ar condicionado – e as janelas não abrem.

Quer dizer, o homem pisa na lua, fazemos bebês em laboratório, curamos o câncer mas um ar condicionado de ônibus com termostato é pedir demais. Tem que aguentar aquele frio mesmo, apesar de passagens custarem mais de dez reais para te levarem de um bairro ao outro. Parabéns a todos os envolvidos nessa sensacional empreitada de criar geladeiras com rodas.

Tudo fica ainda mais legal quando chove, porque daí você entra molhado na geladeira. É tipo um Jogos Mortais profissional, você tem que querer muito ir trabalhar para se prestar a isso. Talvez seja um complô com os farmacêuticos para aumentar as vendas de remédios para dor de garganta e febre.

Não importa se é o Morra de Calor ou o Morra de Frio, é fato que dentro do ônibus sempre vai ter alguém fedido. Não necessariamente cecê, apesar de que este é bestseller. Pode ser também cheiro a cachorro molhado, fedor de perfume excessivo e outros estupros olfativos. A pessoa que fede nunca percebe que fede, porque o odor, seja ele qual for, irrita o bulbo olfativo e a pessoa simplesmente para de senti-lo. Infelizmente a mãe natureza, essa sacana filha da puta, não delegou o mesmo benefício a terceiros. Daí você fica cheirando aquela desgraça durante todo o percurso.

Gostaria de pontuar que isso independe de classe social. Pego ônibus com algumas mocinhas abastadas que me fazem passar mal. Acho que a Victoria’s Secret vomitou nelas antes delas saírem de casa. O cheiro é tão forte que eu consigo identificar o BodySplash no qual elas se banharam antes de sair de casa: “Lá vem a Pêra… agora subiu uma Morango…”. No final das contas me encontro rodeada por uma salada de frutas dos infernos, certeza que eu serei o primeiro caso de diabetes adquirida por vias respiratórias.

Não contentes em molestar o olfato, alguns passageiros decidem estuprar também sua audição. Escutam música alta no celular ou assistem TV em volume alto no celular, ou cantam, ou conversam aos berros pelo celular ou com colegas (ou com estranhos) evadindo sua privacidade. Eu não sou obrigada. Tem algumas mulheres que me despertam vontade de costurar suas bocas com arame farpado, porque falam tanto, mas tanto, que só podem ter respiração cutânea: não há pausas. Gente que fala demais é uma das mazelas da humanidade que mais me aflige. Prefiro conviver com canalhas silenciosos.

Tem também os encoxadores. Os amadores, aqueles que te encoxam deliberadamente do nada e ficam roçando em você na maior cara de pau com cara de paisagem e os profissionais, aqueles com senso de oportunidade, que esperam uma freada ou algum fator externo como álibi que justifique a proximidade de quadril. Em ambos os casos, uma tremenda covardia, pois em ônibus cheio não há como escapar deles. Em ônibus cheio, nos padrões Rio de Janeiro, você só consegue mexer os olhos. E se reclamar em voz alta, te chamam de maluca, dizem que você está inventando e até te ameaçam.

Tem também os vendedores ambulantes, pedintes ou “artistas” que invadem o ônibus para te empurrar amendoim, pedir dinheiro para o trote da faculdade, para tratamento médico ou apenas te “presentear” com um solo de cavaquinho. Vão todos à merda, e vai mais à merda ainda quem os defende dizendo que “estão trabalhando”. Vão trabalhar sem importunar terceiros, como todo o resto da população faz!

Diante desse quadro, fica clara a impossibilidade de ler, escrever ou desempenhar qualquer atividade que não seja respiração e batimentos cardíacos dentro do ônibus. É tempo perdido, tempo improdutivo. Se você conseguiu sentar, já tem que ser muito grato, porque poderia ser pior, você poderia passar por tudo isso de pé. Talvez por essa falta de opção, o tempo não passe nunca dentro de um ônibus.

Tem também o emocionante capítulo dos assaltos, sempre uma possibilidade em qualquer linha de ônibus carioca. Se antigamente eram bandidos em busca de dinheiro na forma clássica do crime de roubo, hoje é pior. Em sua maioria são viciados em busca de qualquer merda para trocar por pedras de crack. Pessoas que não tem noção do risco nem da consequência dos seus atos, totalmente drogadas ou pior, surtadas em síndrome de abstinência. Cooperar com o assaltante não é mais garantia de sobreviver, porque o assaltante tem a estabilidade emocional do Rafael Pilha.

Até no momento de despedida do busão o perrengue se apresenta para um último adeus: tem sorte quem solicita a parada do ônibus e é atendido com normalidade. Alguns não param naquele esquema Capitão Bruno “Porque eu quis”, outros abrem a porta em movimento e vão parando aos solavancos, de modo que se você não se segurar bem, cai rolando para fora do ônibus.

Mas a história mais sensacional de parada diz respeito a uma determinada linha de ônibus do Rio de Janeiro onde o motorista simplesmente se recusa a parar, apenas reduz a velocidade e fica gritando para você “DESCE! DESCE! VAMBORA! DESCE!” e você tem que pagar de Indiana Jones e descer do ônibus em movimento, pois apesar de todas as reclamações, ele nunca para. E se for homem a solicitar a parada, o motorista ainda faz um adendo caso a pessoa fique com medinho e hesite em descer: “DESCE, VIADO!”

Feliz daquele que não precisa do busão. Feliz daquele que não mora em uma cidade onde preço de estacionamento parte de vinte ou trinta reais e aumenta um real a cada meia hora. Feliz daquele que mora perto do trabalho e vai trabalhar a pé.

Para compartilhar suas histórias de ônibus, para compartilhar a alegria de não morar no Rio de Janeiro ou para compartilhar a alegria de não morar no Brasil: sally@desfavor.com


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