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Vendas.

Vendas.

| Sally | | 79 comentários em Vendas.

Fim de ano chegando, e com ele o frenesi de natal. Uma época onde muitos se dispõem a trabalhar no varejo, ainda que de forma temporária. Lojas de shoppings contratam vendedores pelo período de três meses (novembro, dezembro e janeiro), são os chamados “extras de natal”.

Já fui vendedora de loja em tempos de vacas magras, talvez você também já tenha sido, talvez seja ou talvez esteja pensando em ser. É bacana, vendendo bem se ganha um bom dinheiro, mas tem um lado sofrido que ninguém te conta… ou melhor, ninguém te CONTAVA. Antes de entrar para esse mundo, leio o texto com atenção e reflita se você realmente quer/consegue passar por isso.

Primeira coisa que deve ser dita: trabalho de vendedor tem que ser algo temporário. TEMPORÁRIO. Não faça disso seu plano de vida, nem deixe que a vida faça disso seu plano de vida. Entre na loja com um foco: crescer na empresa, pagar seus estudos, levantar um dinheiro para viajar, etc. Não importa, as vendas devem ser um meio e não um fim em si mesmas. Parece óbvio, mas depois que você entra, a loja come sua alma e seu tempo, aos poucos a pessoa deixa todo o resto de lado. Varejo é cruel, não deixe ele tomar conta da sua vida. Entre com data marcada para sair, e não deixe passar mais de seis meses ou um ano.

Vendas não é um mar de flores. Você SEMPRE vai realizar mais tarefas do que aquelas originalmente planejadas. Além das vendas, fatalmente em algum momento você vai acabar metendo a mão no estoque, na limpeza da loja, sendo psicólogo de cliente, sendo válvula da escape de estresse de cliente, sendo caixa, sendo saco de pancadas de gerente e muitas, muitas outras coisas. Portanto, não pense inocentemente que você vai chegar lá, vender e ir embora. É bem mais complicado do que isso. SEMPRE é.

Os horários dificilmente serão aqueles que foram estipulados, que normalmente são de seis horas para vendedor e oito horas para caixa. Serão mais os dias que você sairá depois do seu horário do que os dias em que você sairá no seu horário. Spoiler: no primeiro mês o horário costuma ser respeitado para não assustar o vendedor. Depois, à medida que você vai cedendo, ficando mais meia hora, eles vão pedindo mais, e mais e MAIS. Quando você vai ver, está dobrando sua jornada e, adivinha? Não vai receber horas-extras nem fodendo.

Isso é outra informação importante: o varejo ignora as leis trabalhistas. Não tem hora-extra remunerada. Mesmo que você trabalhe 12 horas por dia, na sua folha de ponto constarão apenas seis e ninguém vai te dar vale-alimentação. Sábado você vai obrigatoriamente trabalhar pelo menos oito horas e vai trabalhar mais domingos do que gostaria. Em tese, a cada sete dias trabalhados é obrigatório uma folga. EM TESE. Na prática você vai trabalhar quinze dias seguidos sem parar e se reclamar vão te olhar torto pela sua “falta de comprometimento”.

Tudo isso é tolerado porque vendedores de loja, em sua maioria, obtém seu salário da comissão das vendas. Logo, quanto mais vendem, mais ganham. As pessoas se prestam a isso porque no final do mês o salário vem maior. Trabalhar em loja é isso: vender seu bem estar e qualidade de vida. Aceita que dói menos: maioria esmagadora das lojas no Brasil não cumprem direitos trabalhistas. Todo mundo sabe, é notório, e o Ministério Público do Trabalho não faz bosta nenhuma. E se você processa uma loja, o mercado pode se fechar para você no varejo.

O trabalho em si também não será fácil. Vendedores de loja são, em sua maioria, pessoas ambiciosas que adoram passar a perna nos colegas. Os chamados “ratos de loja”. Prepare-se para lidar com gente de baixa escolaridade, de baixo nível e espertões de todas as espécies. Isso te afeta, porque ao contrário de trabalhos que exigem intelecto, as vendas são um trabalho em equipe. Você depende daquelas pessoas e elas podem te prejudicar muito. O ato da venda pode ser solitário, mas o funcionamento da loja é grupal.

Um exemplo: no geral, vendedores trabalham por “vez”. Funciona como uma fila, onde o vendedor A está em primeiro lugar, o B em segundo e o C em terceiro. Isso quer dizer que o primeiro cliente que entrar é do vendedor A, o segundo do vendedor B e o terceiro do C. Enquanto você estiver atendendo, está fora do rodízio da vez. Muito bonito, em tese. Mas na prática sempre tem estresse.

Se o vendedor B achar que o cliente que entrou tem cara de rico e vai comprar, ele pode passar na frente do vendedor A e jurar que era ele o vendedor “da vez”. Se o vendedor A não for muito casca grossa e souber impor respeito, perde o cliente. Detalhe: é proibido discutir vez na frente de cliente, então, os outros vendedores tem que ter MEDO prévio de fazer uma coisa dessas. A imposição tem que ser preventiva, se não vão te passar a perna e você ainda vai levar esporro por reclamar.

Os clientes também não ajudam, geralmente por total desconhecimento do mecanismo de vendas de uma loja. Quando um vendedor começa a atender um cliente, a “vez roda”, ou seja, o vendedor seguinte entra na vez e atenderá o próximo cliente que entrar. O vendedor que está atendendo fica em função daquele cliente, enquanto seus colegas pegarão os clientes que entrarem.

O grande problema se dá quando o cliente é um pau no cu que está “só dando uma olhadinha”. Olhadinha esta que às vezes dura muito tempo. O que significa que, enquanto aquele filho da puta tá lá olhando o vendedor está preso a ele, sem poder vender, enquanto observa seus colegas fazendo uma venda atrás da outra. Tudo piora porque lojas estimulam uma competitividade doentia entre vendedores, avaliando e recompensando por parâmetros comparativos.

A pressão fica ainda maior porque os vendedores tem uma “cota” para bater, ou seja, uma quantia X que devem vender por mês. E essa quantia geralmente é astronômica, só é alcançável se o vendedor dobrar seu horário de trabalho, se matar de vender, deixar de almoçar para ficar nas vendas e quase que pegar o cliente pelos cabelos e ameaçar de agredi-lo caso ele não compre. A pressão é enorme. A regra geral costuma ser que vendedor que fica três meses seguidos sem bater cota é demitido. Logo, quem tem cota, tem medo. É preciso cuidar das suas vendas com atenção máxima.

Daí tem o cliente pior do que o “só dando uma olhadinha”. Aquele que experimenta dezenas de produtos e no final não leva nada. Gente, tenham piedade dos seres humanos que trabalham em uma loja! Estoque de loja, salvo honrosas exceções, é pior do que campo minado. Um espaço mínimo, abarrotado, muitas vezes escuro, onde é difícil de localizar produtos, onde é preciso esforço físico para tirar uma pilha de produtos de cima do que você quer (fato: o que você quer sempre está no canto mais distante e embaixo de muita coisa pesada) e pior: com animais desagradáveis.

Sim, animais como ratos, lagartixas e baratas. Isto porque por mais que se proíba, vendedor sempre acaba comendo no estoque por falta de tempo e/ou dinheiro para sair para almoçar e os farelinhos e restinhos que caem no chão atraem estes animais. Cada produto que se puxa é uma taquicardia, pois pode vir com um “brinde” atrás dele. Fazer um vendedor subir no estoque é um ato de desumanidade, só façam isso se tiverem muita certeza de querer o produto. Pedir “só para ver” deveria ser o décimo primeiro pecado capital.

Atentem para a palavra que eu usei: SUBIR. Sim, geralmente estoques ficam em um segundo pavimento dentro da loja. Ou seja, além de enfrentar todas as dificuldades narradas, o vendedor tem que subir e descer vários lances de escada para tentar alcançar o produto pedido. Por isso, o gentil a se fazer é pedir tudo DE UMA VEZ SÓ, para que o infeliz que certamente já está com joelhos e tornozelos arrebentados faça menos esforço. É isso que acontece? Não. Não é isso que acontece.

O cliente pede UM produto. O vendedor sobe a escada já com a panturrilha queimando, se corta em uma caixa que o arranhou, bate com a cabeça em uma prateleira que está caindo, rola no chão em um canto escuro para alcançar o produto que estava na última fileira do canto mais cheio, puxa o produto e vê um rato olhando para ele atrás da mercadoria, engole o grito para não levar bronca do gerente, desce a escada tremendo mas preparando um sorriso de normalidade para atender o cliente, e quando chega no salão o cliente nem olha para o produto e diz “Mudei de ideia, quero aquele lá”.

O pior de tudo é ter que sorrir, sempre. O palavrão mental é o melhor amigo do vendedor! Existem atendimentos que demoram mais de uma hora subindo e descendo escada mil vezes para, no final, o cliente não levar nada. Tem clientes que já te avisam que não vão levar nada e que foram ali só para experimentar. O vendedor vai se fodendo, vendo o tempo passar, vendo que não vai vender enquanto seus colegas estão vendendo aos montes. E ainda tem que guardar tudo que o cliente olhou de volta no estoque dos infernos. Gente, paunocuzar vendedor e não comprar é sinônimo de DEMITIR aquela pessoa. É fazer seu faturamento cair e arriscar seu emprego. Sejam mais humanos, não façam isso.

O pior é que muitas vezes o vendedor que se matou em uma hora de atendimento escuta um “vou dar uma voltinha e pensar com calma”. O cliente sai, volta duas horas depois e compra com OUTRO vendedor. Ou seja, trabalhou de graça e outra pessoa foi remunerada. Isso porque o cliente não vê vendedor como gente e ignora quando o vendedor diz “se você voltar me procura, meu nome é Fulano”. Jamais que um cliente lembra ou se dá ao trabalho de procurar pelo vendedor que o atendeu. E se o cliente não te procura, a venda não é sua.

Se a sua loja vende produtos para crianças, se prepare. O que você vai enfrentar de criança mal educada, que vai chorar, morder, cuspir, fazer o caralho a quatro sem que você possa intervir de forma enérgica é uma enormidade. Fora crianças chatas, mimadas ou irritantes. Lidar com criança é UM INFERNO, principalmente quando você não tem como bater nelas. Só uma coisa no mundo das vendas é mais temida do que uma criança diabólica: um grupo de chineses. Não queiram passar por isso.

Vendedor não tem direito a ter necessidades fisiológicas. No geral, lojas não tem banheiro, se quiser usar o banheiro, tem que ir no do shopping, um deslocamento que é um transtorno no contexto de vendas (gerente olha torto, vendedor perde vendas, etc). Fome está subordinada ao movimento da loja: enquanto a loja estiver cheia, ninguém sai para comer, pois é visto como egoísmo. Se você perde vendas para comer, não veste a camisa da equipe.

Sono então, não existe. Vendedor que fecha a loja às 23h (porque o fechamento das portas é só o começo, depois ainda vem o fechamento do caixa e arrumação do estoque, que muitas vezes demora) abre a loja no dia seguinte de manhã cedo. Se recusar, não veste a camisa da empresa e vai ter gerente de má vontade, tratamento hostil e jamais subirá naquela área. Gerente gosta de vendedor que se fode todo, que se escaralha todo, a verdade é essa. No varejo, seu comprometimento é medido em fodeção, não em intelecto, pois, como eles mesmos gostam de dizer, “se fosse inteligente, não seria vendedor”.

Vendedor não senta. Salvo raras lojas de luxo, vendedor NÃO SENTA. Não importa se a loja está vazia, não importa nada. VENDEDOR NÃO SENTA. Prepare-se para ficar o dia todo de pé e sentir suas pernas doendo de dia e com câimbras de noite. E trabalhe com um sapato que seja confortável, se não você está fodido. O sapato é a única coisa que eu endosso vendedor peitando todo mundo: com sapato desconfortável a jornada fica impossível. De resto, vendedor não tem que querer. Livre arbítrio é para quem desempenha trabalho intelectual, lamento informar. Antes de me xingar, lembrem-se: eu já estive lá, mais de uma vez. Já fui vendedora. Não estou falando por crueldade, e sim por experiência própria. Vendedor não acha, vendedor não pensa, vendedor não que nada. Vendedor obedece e vende. E vende bem, se não vai para o olho da rua.

Pois é, tem isso. Não importa quão inteligente você seja, sendo vendedor vai pairar sobre você uma presunção violenta de burrice. Você pode estar nesse trabalho para pagar sua faculdade de física e ganhar um Nobel nos próximos anos, você pode falar cinco idiomas, nada importa, todos te olharão como se você fosse um cachorro bípede que apenas busca coisas ou um cabide que sorri enquanto segura o produto. Crie uma casca e saiba seu valor por você mesmo, porque se depender do olhar do outro, você vai se sentir um lixo. Muita gente vai te tratar como um lixo inferior, como um sub-ser-humano. Faça as pazes com isso e lembre-se sempre: palavrão mental é o melhor amigo do vendedor.

Sua avaliação será numérica. Vendeu bem, tá bacana. Vendeu mal, tá devendo. Não importa que seja uma pessoa amável, educada e prestativa. O rato de loja que é um escroto e fala português errado vendeu mais na malandragem e passando a perna em todo mundo, inclusive no cliente? Ele terá mais status do que você. E por falar nisso, você vai ser obrigado, cedo ou tarde, a mentir para o seu cliente, a menos que seja muito habilidoso na arte de desconversar ou omitir. Quando for trabalhar em loja, deixe seu caráter em casa ou será atropelado.

É uma forma imediatista de ganhar dinheiro. No período de natal, principalmente. Um bom (eu disse BOM) vendedor pode faturar até dez mil reais em uma loja comum e mais de vinte mil em uma loja de luxo nesse período. Mas não pensem que é fácil, porque não é. Cheguem preparados para o que vão encontrar, não sejam inocentes, não confiem nem desabafem com pessoas que acabaram de conhecer, porque infelizmente as coisas são conduzidas dessa forma venenosa: loja não tem equipe, tem rivais.

Eu dou apoio a quem quer trabalhar TEMPORARIAMENTE em uma loja. Mas por favor, não façam disso seu objetivo de vida.

Para contar os sufocos que já passou no comércio, para ensinar como beliscar as crianças sem os pais verem ou ainda para decidir pelo telemarketing porque pelo menos se trabalha sentado: sally@desfavor.com


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