Uníssono.

Um dos maiores desafios de quem tenta vender um produto ou serviço é segmentar seu público-alvo. É importante descobrir quem seus compradores são e o que eles pensam. Só assim você pode direcionar seus esforços para modelar desde o produto até a comunicação de acordo com os desejos e necessidades deles. O problema é que isso é quase um exercício de adivinhação. Quer dizer, era… infelizmente, era…

Não é papo de comunista: nossa sociedade é cada vez mais consumista. Quase tudo o que fazemos gira ao redor de troca de valores e o estado da economia nos afeta não importa o que façamos. Praticamente tudo está monetizado, a abordagem do lucro permeando até as mais abnegadas causas sociais. Ou é economicamente viável, ou está fadado ao fracasso. Com seus males e benesses, o sistema capitalista está definitivamente implementado na nossa vida.

Digo isso porque quando a busca pelo lucro é tão pervasiva, acabamos sendo moldados por ela. Adaptamos nossos hábitos e até nossas opiniões de acordo com o que é mais economicamente viável. Economizar tempo, ter processos mais claros, otimizar tarefas… tudo o que deixaria uma fábrica mais lucrativa acaba escorrendo para nossas escolhas pessoais.

É o velho truque de inverter o ônus da dívida. Funcionou perfeitamente na nossa sociedade: a maioria de nós realmente acredita que devemos ao mundo a produção constante de riquezas para outros, e cada vez de forma mais eficiente. Cidadão deixa de curtir a família ou seus hobbies para trabalhar mais, principalmente porque sabe se não o fizer, outro aparece para tomar-lhe a vaga. É como se fosse uma versão profissional do pecado original católico: você nasce devendo e tem que trabalhar a vida toda para pagar.

E é nesse estado mental que eu desenvolvo minha argumentação sobre a notícia recente que o emoji (chamava emoticon no meu tempo) do coração é a ‘palavra’ mais usada no mundo virtual no ano de 2014. Minha primeira ideia sobre a notícia foi a usual “as pessoas são imbecis”; mas tem algo mais por aí… o emoji é mais economicamente viável que a palavra.

Assim como a rede social é mais economicamente viável que a amizade ao vivo. Posso estar sendo paranóico, mas é como se houvesse uma grande conspiração atrás disso tudo. Estamos ficando eficientes até demais nessa coisa toda de socialização. Não acho que eficiência seja uma coisa ruim, muito pelo contrário, mas existem várias formas de se alcançá-la. Algumas delas soam como armadilhas.

Pensemos numa frase publicitária genérica: “Agora você pode se conectar com sua família e amigos em qualquer lugar”. Em tese é uma coisa bacana. Tudo bem que estamos num antro antissocial, mas consideremos que na média as pessoas querem ficar conectadas o tempo todo. Uma rede social resolve um problema histórico de comunicação humana, mas tem algo aí que não fecha: por que estamos deixando justamente essa parte de nossas vidas mais enxuta e ‘lucrativa’?

O certo não seria tornar o trabalho algo que se possa resolver mais rápido e a socialização como a parte mais ‘suculenta’ da vida? Porque estamos fazendo justamente o oposto. Socialização se resolve numa mensagem rápida durante o trabalho, da forma mais eficiente possível. E o trabalho? Bom, nunca tivemos tanto tempo disponível para ele.

Não sei se você concorda comigo, mas eu tenho a nítida impressão que fomos passados para trás. A grande revolução da comunicação humana nos tornou em máquinas melhores para gerar lucro. Temos mais contato médio com nossos conhecidos, mas menos tempo para o Happy Hour. Até as necessidades mais românticas estão terrivelmente eficientes: espera até alguém ‘curtir’ você e começa o papo. Você pode fazer isso do conforto do escritório, ao mesmo tempo que termina um relatório!

Parece que algum daqueles especialistas em eficiência empresarial deu uma geral nas relações humanas e conseguiu o que queria. Os emojis são símbolos dessa reforma. Um símbolo com inúmeros significados, rápido de escrever e enviar, mas sem exigência alguma de atenção. Juro que não estou dando uma de velho chato, entendo a graça deles (embora nunca use, meu vocabulário é extenso e eu faço questão de usá-lo), mas argumento que nesse pacote veio mais do que queríamos.

Estamos abrindo a mão de atenção e cuidado com nossa comunicação porque além delas serem supérfluas para muita gente, são justamente as partes que poderiam ser cortadas em nome da eficiência. Você abre mão de cuidar do que está dizendo em troca de dizer algo muito rápido. Está na cara que a humanidade se amarrou nessa barganha!

Manter suas relações com relances de atenção enquanto faz outras coisas? Perfeito! Perfeito para quem quer que seu tempo renda. E principalmente para quem quer que você não invente demais… Não abri o texto falando de segmentação de público à toa. Existe outra vantagem nessa era de comunicação extremamente eficiente: sem muito tempo para pensar e com símbolos pré-prontos para comunicar, a tendência é que as pessoas digam coisas muito parecidas entre si.

Já cansei de escrever como textos curtos e vocabulário pobre fazem tudo o que você diz soar genérico. É mais fácil te colocar em algum ‘time’ se tiver só 140 caracteres para analisar. Em tese nossas visões de mundo são complexas e é raro que duas pessoas concordem em tudo, mas você precisa conhecê-las um pouco melhor para chegar nessa conclusão. A partir de um emoji, duas pessoas estão dizendo a mesma coisa.

E numa sociedade tão voltada ao mercado, é interessante para quem está vendendo que as pessoas sejam facilmente catalogáveis. Nunca foi tão fácil encontrar seu público-alvo com todas as métricas que temos disponíveis, mas também porque é cada vez mais fácil rotular pessoas de acordo com o pouco que falam tão frequentemente.

De tão fascinadas como a facilidade da comunicação atual, as pessoas acabam adaptando-se não só na forma como se comunicam como no discurso. Ninguém mais parece ter tempo de digerir um bloco maior de informações, e é chato forçar esse tipo de comunicação goela abaixo delas. Ninguém vai prestar muita atenção em você (atenção foi abandonada por ser pouco eficiente) e quem quiser disputar nesse ‘mercado’ tem que aprender a seguir o bando e encurtar suas possibilidades também.

Melhor mandar o coraçãozinho mesmo! Pelo menos ele vai ter uma resposta. Aqui chegamos no ponto onde vamos nos moldando de acordo com as expectativas não das pessoas que nos cercam, mas de acordo com as do mercado. Você tem que ser rápido no que comunica, e principalmente facilmente classificável para não confundir ninguém com meio segundo para te responder.

As empresas que anunciam para você agradecem. Não só por poderem te encontrar com mais facilidade (o que eu nem acho ruim), mas principalmente por poderem oferecer bens e serviços que complementem a imagem ‘genérica’ que você acabou obrigado a ostentar. “Quem viu esse produto comprou esse também”. E aí, você vai perder essa oportunidade de ser quem eles acham que você é? O sucesso do comércio virtual está aí para responder essa questão.

Não só estamos virando trabalhadores modelo como consumidores modelo! Sacrificamos parte de nossa socialização em nome de produzir mais e sermos mais facilmente reconhecíveis pelo mercado. Somos cada vez mais produtos de um sistema capitalista eficiente e estabilizado. Vai ver é mesmo a natureza humana se adaptar.

Mas eu ainda acho que compramos gato por lebre.

Para dizer que pensar é coisa de velho, para dizer que eu estou com ENVEJA do tanto que você pode trabalhar agora, ou mesmo para dizer que ♥: somir@desfavor.com

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Comments (5)

  • Voce foi no cerne da questao.
    Analisando sob esta otica, a sensacao tambem é de barganha injusta.

    Somos, portanto, consumidores pasteurizados.
    Intrigante realidade.

  • Somir conseguiu me dar uma possível explicação para o que venho passando, e que eu vinha interpretando como frieza.
    Estou na reta final de um mestrado e trabalho num local que me exige muitas horas extras e trabalho de criação, e tenho percebido o quanto eu tenho colocado minha vida social em função da profissional, para que aquela não atrapalhe esta.
    Até porque a vida profissional tem me exaurido a ponto de não me dar muito ânimo para socializar. Conversa quase sempre por Whatsapp, de modo rápido, sem que me tome muito tempo e nem demande esforço mental. E admito, a interação com quem se importa comigo de verdade tem ficado bem prejudicada. Porque não é o tipo de situação em que você só recebe um “curtir” de volta, são conversas que me exigem tempo, raciocínio e concentração.
    Ando bem triste por isso que relatei. Bom saber uma das prováveis causas desse comportamento para saber onde posso mudar.

  • Uma ótima análise!

    Estava numa fase em que TUDO se resolvia por mensagens superficiais e rápidas. Até que em conversas ao vivo, notei que algumas interpretações do que falava, ou as outras pessoas falavam comigo estavam sendo completamente equivocadas, gerando, às vezes, até uma discussão desnecessária. Voltei então a ter a necessidade de voltar a ligar mais e encontrar ao vivo.

    O uso de sistena de voz nos app’s também deu uma facilitada pra quem quer economizar, mas não se contenta em ter assuntos rasos.

    Valeu a pena ter percebido isso antes que todos meus relacionamentos se tornassem qualquer coisa.

  • Eu prefiro assim Antigamente eu trabalhava e só, agora eu trabalho e fico em contato com as pessoas ao mesmo tempo. Não é tão cpntato assim, mas eu trabalho mais e melhor.

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