Sambadas históricas.

Bem vindos à Semana Outros Carnavais, a nossa comemoração nacional baseada no Dia do Axé. Mas ao invés de enchermos a cara e contrairmos Zika por aí, vamos passar o tempo todo falando sobre história. Mais precisamente a história do Brasil e o quanto dela parece ter sido definida depois de uma noite carnavalesca de excessos. A cada dia, uma revisão histórica.

Para começar, Sally e Somir tentam descobrir entre dois desses momentos o mais problemático, ainda mais considerando as motivações. Os impopulares abrem alas para a polêmica passar.

Tema de hoje: qual foi a pior decisão histórica do Brasil, abolição da escravatura ou declaração de independência?

SOMIR

Imaginemos que o Brasil estivesse fazendo terapia. Sim, existem vários problemas a serem tratados, mas é difícil trabalhar neles a não ser que você consiga encontrar sua raiz. Um momento onde a coisa começa a dar errado e vai gerando as outras consequências negativas. Se o Brasil fosse colocado numa terapia de regressão, provavelmente voltaria dela traumatizado com a própria independência.

Porque antes disso o país ainda podia se perdoar pelos rumos nefastos culpando os pais. A colonização toda errada, a herança maldita do brilhantismo português… as coisas não iam bem antes de D. Pedro I berrar às margens do Rio Ipiranga, mas seja como for, o Brasil ainda era dependente de pais abusivos. Mas, quando a coisa muda de figura e o jovem país resolve tocar sua vida de forma autônoma, ainda não está preparado para esse passo. Ruim com eles, pior sem eles?

Na média mundial, a independência brasileira foi estranhamente pacífica. Não precisa nem sair do continente para ver que nossos vizinhos a conquistaram na marra, seja dos espanhóis ou dos ingleses. Meio que uma sensação de dizer para a namorada que do jeito que está não vai funcionar e ela simplesmente dizer “beleza” e ir embora. Sim, não estava bom do jeito que estava, mas era de esperar um pouco mais de briga dos portugueses. Isso pode ter mexido com a autoestima tupiniquim.

O que acontece é que normalmente revoltas que geram independência causam grandes mudanças sociais, nem sempre positivas como podemos ver no resto da América Latina, mas alguma coisa se mexe, nem que seja para criar uma identidade nacional. No caso brasileiro, nada mudou de verdade. O imperador continuou o mesmo, os donos de terra e recursos mantiveram-se, a escravidão estava valendo do mesmo jeito… imagino que para o brasileiro médio da época, a realização da independência deve ser soado como uma mera curiosidade. “Somos independentes? Legal…”

Mas é positivo não ter um banho de sangue, não é mesmo? O Brasil achou seu jeitinho brasileiro de ser independente, fruto de um ditador mimado que não queria abandonar o clima tropical para encarar os bigodes das portuguesas. Outros países se libertaram com revoluções, o Brasil com manha. Então, sim, bacana que foi uma transição tranquila, mas do Brasil foi roubado o direito de realmente se rebelar e tomar uma atitude contra as classes dominantes. Isso acaba fazendo falta. 500 anos depois, ainda é uma colônia, mas do tipo sem dono. O Brasil acabou virando mais um lugar do que um país propriamente dito. Não é à toa que o orgulho desse povo vem de um esporte que começamos a dominar no meio do século passado.

De uma certa forma, o Brasil saiu da casa dos pais, mas continuou vivendo de mesada. Não formou o caráter necessário para encarar a vida lá fora. A mentalidade de colônia se faz tão presente que esse povo ainda acha que não tem problema pilhar o país para lucro pessoal. Ainda acha que o governo é um império que tem que resolver tudo sozinho, e ainda acha que dar certo como país é questão de tempo. Sim, o país foi criado por pais muito ausentes que só visitavam quando queriam alguma coisa, mas não dá pra viver reclamando dos pais para sempre.

E na hora de tomar a decisão pela independência, as coisas parecem ter sido feita nas coxas, para manter o Brasil na única zona de conforto que conhecia. Eu concordo com a Sally que a abolição da escravatura foi feita “na louca”, na via do menor esforço que nos cobra o preço até hoje; mas se tem uma decisão que volta para nos assombrar constantemente, é a de tomar a via do menor esforço na hora de se livrar da coroa portuguesa. Isso deve ter gerado muito mais da identidade desse país do que julgamos.

Até porque não foi o brasileiro que se tornou independente, foi um príncipe que mudou de cargo e por tabela gerou esse resultado. Portugal nem tinha muita cabeça para lidar com isso (ha), e depois de meros três anos do grito de Pedro, soltou um “tá bom!” e reconheceu o Brasil como um país próprio. Meio anticlimático, não acham? Não dá realmente para formar uma identidade própria numa situação dessas. Mudou a bandeira, mas não as relações de poder. E na verdade, foi a Grã-Bretanha que negociou o processo nos bastidores. D. Pedro I berrou, mas os ingleses que falaram mais alto.

Na carta que D. Pedro I manda para o pai avisando que agora o Brasil era independente, disse também que se caso D. João quisesse vir pra cá, ele daria o trono para o pai numa boa. Entendem quando eu digo que faltou independência na declaração de independência? Mas, essa decisão intempestiva acabou sendo útil para as partes envolvidas (que não fossem o povo brasileiro). Foi uma negociata meio paumolenga que no final das contas manteve o status quo e manteve o Brasil deitado eternamente no seu berço esplêndido.

Se a situação tivesse se mantido por mais algum tempo, talvez esse país gerasse raiva o suficiente dos portugueses para virar as coisas de ponta-cabeça e tentar uma reorganização social mais eficiente. Não duvido que D. Pedro I até gostava desse pedaço de chão, mas ele nos roubou uma experiência essencial na vida de uma nação. A via do menor esforço manteve a paz, mas aquela tal da paz sem voz.

Sim, pode até parecer que estou pinçando um momento histórico que na verdade não fez tanta diferença, mas é justamente esse o ponto: deveria ter feito. Decisão péssima que moldou a (falta de) identidade desse país.

Para dizer que tudo é feito nas coxas por aqui, para dizer que vai concordar com os dois (mesmo sendo ruins, tem que escolher uma pior), ou mesmo para dizer que vai esperar os textos para se pronunciar: somir@desfavor.com

SALLY

Qual foi a pior decisão histórica do Brasil: abolição da escravatura ou declaração de independência?

Calma, não queremos um Brasil subordinado a Portugal nem negros escravos. O que se questiona aqui é como tudo foi feito, de uma forma tão tosca e desleixada, que até parece que foi fruto de uma bebedeira de carnaval.

Eu acredito que a pior cagada foi a abolição da escravatura, da forma como foi feita. Não bastava escrotizar os negros, trazê-los acorrentados em porões de navio da África, chicoteá-los, subjuga-los, explorá-los, ainda tinham que dar uma bela cagada na saída: “libertá-los” sem fornecer qualquer subsídio para sua sobrevivência. Uma falsa liberdade que custou caro e que até hoje todo branco é obrigado a pagar a conta.

Pense em um passarinho que nasceu e cresceu em uma gaiola. Nunca lhe foi permitido voar, procurar por comida nem aprender nada sobre o mundo. Agora pense que um dia sua dona toma um porre no carnaval, faz merda e decide que o passarinho merece ser livre. O que ela faz? Apenas abre a gaiola, tira ele de lá à força, dá um joinha e fala “se vira, passarinho”. Isso não é libertar, isso é escrotizar ainda mais o coitado, é de uma crueldade nojenta.

Se foi sonegado à pessoa o direito a educação, a qualificação, a transitar livremente, conhecer os lugares e se inteirar do mundo, o caminho correto para promover sua liberdade é se encarregar de suprir tudo aquilo que lhe foi sonegado e só depois decidir não se fazer mais cargo da pessoa. A abolição da escravatura foi revestida de um falso manto de bondade, mas de certa forma atendeu mais ao interesse dos brancos do que dos negros, pois ninguém pensou em fazê-lo de uma forma digna para eles.

Por ter sido feito de forma inadequada, muitos ex-escravos se viram, acreditem, em uma situação pior do que quando eram escravos. Sem conseguir se inserir no mercado formal, seja por preconceito, seja por falta de qualificação (pois informação e estudo sempre lhes foi negado), muitos passaram fome, não tinham para onde ir e viveram em uma situação de degradação total. Essa é a raiz de uma enorme desigualdade social, de uma política de exclusão e fonte geradora de violência, criminalidade e tantos outros males que não passam de seus desdobramentos.

Quando Princesa Isabel assinou essa porra, da forma como foi feito, ela disse no subtexto que é ok o Poder Público privar o cidadão de direitos básicos e depois jogá-lo nas ruas pedindo que ele compita com aqueles que tiveram acesso a tudo. Foi a primeira grande sacaneada do Poder Público no povo, pois se foi terrível para os negros, também não foi agradável para todo o resto da população, que teve que conviver com os desdobramentos da exclusão social.

Todo mundo perde em uma sociedade construída na base da desigualdade. Mentes menos brilhantes (vulgo portugueses) não conseguiram perceber isso, sucumbindo ao imediatismo e à pressão da Inglaterra. Para quem não sabe, os portugueses não estavam nem um pouco no clima de acabar com a escravidão, muito pelo contrário, afirmavam que isso representaria a falência do país, já que perderiam quase toda sua mão de obra. Mas a Inglaterra não estava disposta a competir na venda de açúcar com alguém que não tinha que arcar com os custos da mão de obra, o açúcar brasileiro ficaria muito mais barato do que o inglês, vindo das suas colônias nas Antilhas. Além disso, sem escravos, entenda-se, sem não de obra, o Brasil teria que importar máquinas inglesas para viabilizar a produção em vez de importar negros da África. Fora o fato de que negros livres representavam consumidores em potencial.

Pois é, foi pelos motivos errados e da forma errada. Foi cruel com os negros. Já que cagaram tanto no pau escravizando-os, privando-os de direitos fundamentais e de sua dignidade, o mínimo que poderiam fazer é ter a preocupação de reinseri-los na sociedade de uma forma justa e digna. Mas não, a porra dos portugueses deixaram essa conta para a gente pagar com cotas e medidas inclusivas, muitos e muitos anos depois. Valeu, hein?

Desde então o Brasil cresce com a ideia de que é ok, que é natural, que é aceitável ter uma parcela da população marginalizada. Virou o modo de funcionar: ter sempre gente sobrando para forçar salários baixos, com um belo exército de reserva. Além disso, a cultura escravocrata ficou enraizada em diversas regiões brasileiras. Cito um exemplo que vivi na pele, o período sombrio que morei em Salvador. A diferença postural na prestação de serviços é gritante.

Cidades que basearam sua mão de obra em imigrantes ensinaram à sua população que vale a pena ralar, fazer um trabalho de excelência, fazer melhor, fazer o que nunca ninguém fez, ter proatividade, acrescer com sugestões, ideias e inovações. Quanto melhor o trabalho do imigrante, mais ele ganhava e melhor se estabelecia na cidade. Já quem teve um passado de escravidão… tanto faz a excelência do trabalho do escravo, ele ganhava nada além de desprezo e violência por isso. Graças a essa babaquice, criou-se uma cultura de que o malandro, o esperto, é quem finge que trabalha mas não trabalha. Quem engana o patrão. Quem consegue fazer sua função com o menor esforço possível. Daí temos esse atraso civilizatório, essa prestação de mão de obra vexatória, esse país que não vai para frente.

A abolição da escravidão feita dessa forma escrota é o ovo da serpente de todos os males modernos, é o floquinho que gerou a enorme bola de neve que nos inferniza dos dias de hoje. É responsável pela mentalidade cagada que atrasa o crescimento do país, pela polarização e ressentimento entre raças, pela injusta conta que brancos tem que pagar, décadas e décadas depois. Quase todos os males modernos decorrem da desigualdade social.

Faça o seguinte exercício mental comigo para entender a magnitude do desfavor: se fosse uma abolição decente, amparando, inserindo e qualificando os escravos, como seria a mentalidade do brasileiro hoje? Certamente não teríamos essa desigualdade social galopante, esse ressentimento e essa bosta de prestação de serviços que ainda tem o ranço de se basear na lei do menor esforço, do “suficiente”. Quase tudo de ruim que vemos hoje é desdobramento dessa cagada. Obrigada, Princesa Isabel.

Para ter um ataque de analfabetismo funcional e me chamar de racista, para reclamar da semana temática ou ainda para dizer que a pior cagada da história do Brasil foi colocar o PT no poder: sally@desfavor.com

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Comments (12)

  • É sempre assim: leio o primeiro argumento e concordo — que o Barril continua dependente de “Portugal”, mas depois leio o segundo e também concordo — afinal, a escravidão acabou mesmo? — ficando com a opinião de Sally. Dois vem Charles DG e fecha com a chave de ou: ‘ Os negros foram libertos, não livres’. Pronto é isso ai. A Independência foi, sim, feita a martelo. Mas a Abolição foi, de fato, bem pior!

  • Ainda não li os textos, mas de antemão penso que a independência foi pior. Até hoje esse povo é totalmente incapaz de se revoltar, mesmo com merda até a boca, e tomar alguma atitude efetiva pra nada.
    Até a abolição cagada foi a sequência natural da independência cagada.

  • Depois de ler todos os textos, concluo que a pior decisão histórica do Brasil foi mesmo a abolição da escravatura.

    Cruel com os negros, a assinatura da princesa transformou a tão sonhada liberdade em um mero eufemismo para a miséria.

  • Creio que a pior cagada tenha sido a independência mal feita…
    O povo não sabia de nada, não teve tempo (ou não quis) se revoltar, e além de ter sido feita pela via prussiana, não mudou quase nada no dia a dia das pessoas. Só criou uma dívida com os ingleses e nos deu um rei que não tinha capacidade sequer de administrar uma escolinha de brinquedos, quanto mais um país tão grande. E, pelo visto, fez escola, porque até hoje as decisões políticas são tomadas de cima pra baixo. Talvez seja por isso que o brasileiro médio não tenha consciência política: tem sempre alguém pra decidir por ele.

  • A independência não foi ruim, mas deveria ter continuado uma monarquia por mais tempo, ou quem sabe, até hoje. A abolição da escravatura não foi um erro, nem mesmo do jeito que foi feita, o erro foi a escravidão em si e ter trazido tantos escravos. Ao contrário dos EUA, o Brasil nunca foi pensado como nação, mas um mero local onde produzir açúcar ou encontrar ouro, e mesmo muitos anos depois da independência não se tornou uma nação, nem sei se hoje é. Talvez teria sido melhor se as várias revoltas, inclusive a Farroupilha, tivessem dado certo. Teríamos vários países em vez de um só, e talvez algum deles teria dado mais certo.

  • A pior foi a abolição mal feita. Brasileiro é tão tosco, que acha que criar cotas vai conseguir resolver a cagada do passado. Vai é conseguir piorar o futuro.

  • Vou ter que concordar com a Sally…

    Por mais que “a desanexação (por dívida !)” tenha sido tão “FDPedro I”, ainda houve “outra chance” (, bizarramente em outra data, )da República (da Espada…), enquanto que “o dessenzalamento (demissional)” me parece ter sido (decisivamente) mais grave em si.

    Talvez eu esteja tendencioso no sentido desses crimes “mais presenciais”…

  • Ambas foram catastróficas: a libertação gerou apenas um imenso contingente de negros libertos (e não livres) sem qualquer iniciativa e que, sem um senhor pra servir, sem saber como lidar com a liberdade e obrigados a viver numa terra em que eram vistos apenas como animais, foram formar as favelonas do Hell de Janeiro e de outros lugares, com seus descendentes até hoje achando que mandam bem quando, na verdade, só se fodem com o preconceito que ainda existe bem forte na sociedade.

    A independência serviu apenas pra largar ao deus-dará um povo escroto, desorganizado e sem qualquer noção de nada, que até hoje não se governa (como disse um general romano um putilhão de anos atrás) e sobre o qual não precisamos falar mais nada: basta ver a fudúncia que é esse acampamentão de merda desde o tal de Rui Barbosa.

    Em suma: escravidão foi inútil e independência ferrou com o que já era cagado.

  • Acho que pouco-quase-nada aqui nesse “país” chegou a não ser feito dessa maneira impulsiva, imediatista e impensada. Os dois eventos históricos citados, acho que são eles dois dos eventos mais representativos da nossa história, refletem nosso modus operandi perpetrado até hoje: pensar? Planejar? Traçar um plano de longo prazo? Pra quê né? Obviamente toda essa paumolescência na prestação de serviços, essa filosofia porca do menor esforço pra tudo não passa de uma herança cultural. Da abolição da escravatura à Copa do Mundo, tudo no Brasil é feito no grito, aos trancos e barrancos

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