Tudo liberado.

Semana Outros Carnavais: nesta semana vamos trazer uma nova luz sobre acontecimentos históricos brasileiros. Muitos deles sugerem que só podem ter sido decididos numa bebedeira de carnaval…

Abolição da Escravatura.

Agora compreendo aquelas cartas de minha bisavó, Lady Sally, descrevendo os horrores desta terra. Pessoas sujas, porcas, sem responsabilidade e feias. Meus dias nesta terra aborígene foram um verdadeiro inferno, mas comunico que a missão foi cumprida, ainda que não da forma como me foi designada. Enfim, o que importa é que a finalidade foi atingida.

Não se preocupem, os símios não conseguirão mais vender açúcar a um preço tão baixo, pois agora terão que pagar pela mão de obra. Além disso eles não tem máquinas para produção por isso ela será paralisada sem a mão de obra escrava. Adivinhem de quem eles que terão que comprar essas máquinas? Isso mesmo, da nossa pátria amada, Inglaterra. E não é só isso, vamos faturar dobrado com esses selvagens: até comprarem, as máquinas chegarem e eles aprenderem a operá-las, não conseguirão produzir açúcar, e, como bônus, acabarão tendo que comprar do nosso, das Antilhas, pois este povo sem sofisticação adoça tudo ao extremo. Em resumo, estamos ricos.

O momento é feliz, mas, por lealdade à coroa, sinto-me na obrigação de explicitar os métodos usados, que fugiram um pouco ao plano original. Onde foi que paramos na última carta? Ah, sim, na proibição do tráfico de escravos. Teria funcionado, se estes animaizinhos respeitassem a lei. Graças a nossos esforços, a lei que proibia trazer escravos da África de fato foi criada, mas jamais cumprida a ponto de ter sido apelidada pelos nativos locais de “Lei Para Inglês Ver”. Em resumo, esses putos continuavam traficando escravos, porém por rotas diferentes para fugir à nossa fiscalização. Era preciso forçar estes primatas a acabar de uma vez por todas com a escravidão de outra forma, pois pela lei nada funciona aqui.

Comecei plantando algumas sementes em formadores de opinião locais. Não foi difícil, um povo burro e influenciável que adora perder tempo com brigas e desunião. Em pouco temo estavam divididos em abolicionistas e não abolicionistas, xingando uns aos outros, apelidando e agredindo uns aos outros, sem se dar conta do quanto essa desunião me favoreceria. Os abolicionistas não estavam preocupados em assegurar condições dignas aos negros depois de libertos, apenas queriam a todo custo a abolição da escravatura em um cabo de guerra intelectualóide despropositado. E esse ânimo raivoso me foi de extrema utilidade. Plantei diversas sementes entre os brancos abolicionistas que germinaram lindamente.

Também plantei algumas sementes entre os escravos, com a ajuda daqueles que já haviam sido libertos. Nesse processo, foi essencial a participação do filho bastardo do nosso mais antigo espião, Lorde Sommir, que acabou por procriar com uma escrava quando estava em missão para induzir a independência do país. Seu filho é um ex-escravo ancião e se chama Mir II, pois os ignorantes locais compreendiam que Sommir era “Sou Mir”, achando que Mir era seu nome. Mir II, tão escuro quanto a noite, tinha grande influência entre os escravos. Foi ele quem deu o primeiro passo do nosso plano, a ordem para comece o envenenamento de D. Pedro II pelas escravas que preparavam sua comida.

Quando os sintomas começaram, nenhum médico local soube dizer do que se tratava. Evidente, o que esses aborígenes sabem de medicina? O máximo que podiam fazer era bater nele com folhas. Seguimos com o plano, sujeitando Pedro às mais violentas modalidades de diarreia. Alcançamos um grau de excelência em que ele não conseguia mais sair de casa sem fraldas. Neste ponto, não foi difícil plantar a ideia de que ele deveria se tratar com um médico europeu. Uma última dose reforçada de veneno e nos asseguramos que os sintomas desaparecerão assim que ele pisar na Europa, fazendo acreditar que o médico o curou.

Com Pedro ausente, tudo ficou mais fácil. Aquela idiota, baranga e carente Isabel seria presa fácil. Não demorou até que eu consiga me aproximar dela, impressionante como ser europeu abre portas por aqui, antes mesmo das recomendações reais inglesas ela já estava predisposta a me hospedar e se tornar minha amiga. Em pouco tempo, tornei-me sua confidente. Isabel é deveras sacal. Uma despreparada, desprovida de inteligência e, o que é pior, dona de um bigode hediondo peculiar às portuguesas. Queixava-se de ser ignorada pelos homens e eu continha meus impulsos de sugerir que procurasse um barbeiro. Tive que ouvir os odiosos lamúrios desta criatura por meses, mas assim o fiz, pela nossa pátria. Brasileiros tendem a só se aproximar de quem concorda com eles.

Aproveitando o clima de insegurança social, com constantes embates pelas ruas entre os que eram favoráveis e contrários à escravidão, decidi que era hora de dar início ao plano. Mais uma vez, pedi ajuda a Mir II, prometendo em troca levar ele e sua prole para a Inglaterra. No caso, sua prole é composta por 7 filhos escuros como carvão. Esse povo dos trópicos se reproduz com muita facilidade. Fato é que Mir II disponibilizou seu filho mais novo, único que não era casado, Mir VII (eles não entendem o conceito de geração, acrescentam um número a cada filho), igualmente negro como a noite, para concluir nosso plano. Mir II parecia aliviado com o plano original de ver seu filho casando com Isabel.

Chegado o dia, convidei Isabel para um passeio. Com a conivência dos escravos que nos transportavam, fomos conduzidas para o centro de um embate público nas ruas entre aqueles que queriam a abolição e os que eram contrários. Em pouco tempo, um grupo de negros devidamente coreografados nos cercaram e fizeram Isabel de refém (sim, a segurança real é uma piada). Após muitas ameaças, quando Isabel estava aterrorizada, Mir VII surge e ordena que ela seja solta, resgatando-a mediante alguma violência física igualmente coreografada, já que ele é mais delicado que uma flor. Ele foge em um cavalo com a baranga Isabel e a leva para um local afastado.

Chegando lá, se desculpa pelos atos dos seus “irmãos” negros e passa horas e mais horas conversando com ela. O gesto encantou Isabel, esta mocreia carente. Ela passou tortuosas semanas falando sem parar de Mir VII e me pedindo para localizá-lo. Obviamente passei a providenciar encontros escondidos entre eles. Pobre Isabel, nem desconfiava que Mir VII tinha predileção por outros homens… Dizem os locais que é uma maldição relacionada ao local onde ele nasceu, no alto das campinas. Se é verdade ou não, nunca saberemos.

Isabel estava cada vez mais apaixonada por Mir VII. Este se esquivava de qualquer contato físico alegando que, por mais que quisesse, não poderia se envolver com quem escraviza seu povo. Assim, entre conselhos meus, ela amadurecia a ideia de pressionar Pedro na sua volta para abolir a escravidão de uma vez por todas. Esse seria o preço para que Mir VII se case com ela e também seria o preço para que Pedro silencie um escândalo na corte. Isabel se casaria com Mir VII e ambos partiriam para Inglaterra conosco, preservando-os do falatório local.

Mas, comecei a sair do plano original quando percebi que não teríamos esse tempo. Aparentemente Pedro não me ouviu quando sugeri que procure um médico europeu e decidiu se tratar na África do Norte: Portugal. Obviamente sua condição piorou e não havia tempo para espera-lo regressar, nossa economia não sobreviveria a tantos meses de concorrência desleal. Era hora de mudar os planos, pelo bem da Inglaterra. É possível que sejam identificados alguns excessos em minha narrativa nas próximas duas páginas, mas tenham em mente que, se me excedi, foi sempre pensando em nossa pátria.

Convicta da urgência, decidi aproveitar o período festivo que se aproximava, mas me deparei com um obstáculo: cada vez mais se repudiava o Entrudo, em função da violência que saía do controle e dos danos causados à cidade. O motivo real era um trauma histórico, uma grande confusão causada por D. Pedro I graças ao entrudo. Tolinhos, não adianta banir o evento, se a baixaria continua enraizada na sociedade! A notícia de que o Entrudo estava em vias de banimento me obrigou a ser criativa. Em meio a uma conversa casual, contei a Isabel sobre um costume europeu que havia iniciado em povos da antiguidade e que poderia trazer progresso para o país… e para ela.

A ideia era passar um período de purificação, onde todos resistiriam aos prazeres mundanos, de modo a elevar o espírito dos brasileiros. Porém, antes deste período, alguns dias de “despedida” seriam liberados, dias em que tudo seria permitido e nada seria pecado, dias que lhe permitiriam conhecer melhor Mir VII sem julgamento social. Isabel gostou da proposta e me perguntou qual era o nome da festividade. Expliquei que o nome vinha do latim: Carnemlevare, abrir mão da carne, dos prazeres mundanos. Infelizmente seu limitado intelecto português não lhe permitiu a melhor das pronúncias, mas a ideia foi aceita.

Isabel não teve dificuldades em difundir essa nova ideia (exceto, é claro, pela pronúncia) e este povo insolente a aceitou com muita receptividade. Vários dias onde tudo é permitido: sexo, entorpecimento, infidelidade e tantas outras coisas que traduzem a essência deste povo vulgar caíram como uma luva. Agora era questão de tempo, Mir VII teria que fazer um esforço e consumar uma relação física com Isabel para o bem de todos os escravos brasileiros e, é claro, para o bem da economia inglesa. Depois de consumado, seria fácil pressionar por um casamento, coisa que mulheres apaixonadas irracionais costumam fazer, e para isso, a abolição da escravatura seria fundamental. Isabel não poderia se casar com um escravo, mas era perfeitamente aceitável casar com um homem livre.

Enquanto isso, nossos aliados se encarregavam de articular junto à Câmara Geral a aprovação do projeto de lei que aboliria a escravidão, de modo a que o trabalho de Isabel fosse apenas sancionar, uma simples assinatura em um momento de apaixonamento extremos bastaria. Impressionante como os Deputados brasileiros se vendem fácil e por uma quantia em dinheiro votam naquilo que lhes é dito. Conseguimos 85 votos favoráveis sem gastar muito. A lei estava em nossas mãos, agora só precisávamos da assinatura de Isabel. Os nove que se recusaram a cooperar foram devidamente assassinados depois, não queremos que gente assim passe seus genes adiante, caso contrário podemos perder o controle desta terra selvagem.

No primeiro dia de festejos a Princesa parecia apavorada, dizia não estar pronta para a consumação de seu amor com Mir VII. Tive medo que ela desista, por isso nos encarregamos que Isabel tivesse acesso a todos os tipos de bebidas alcoólicas da corte. Eu dava os últimos conselhos antes da chegada de seu amante pigmentado enquanto me certificava de que ela bebesse mais e mais. Confesso que cheguei a colocar álcool puro em várias de suas bebidas.

Mir VII já viria munido da lei devidamente aprovada pelos corruptos políticos brasileiros, assegurando a abolição da escravatura nos melhores termos para a Inglaterra. Seu único trabalho seria fazer Isabel assinar a sanção como moeda de troca para que ele vire seu amante. Simples, muito simples. Até então o plano caminhava conforme esperado.

Quando ele finalmente chegou, trancaram-se no quarto de Isabel. Esperei pacientemente do lado de fora até que Mir VII faça seu trabalho, mas parece que a incompetência da família Sommir é genética. Em determinado momento, Mir VII sai do quarto aterrorizado e diz que não será capaz de consumar o ato, pois seu asco de mulheres é mais forte do que os anseios abolicionistas. Após quebrar uma garrafa em sua cabeça e proferir algumas palavras das quais não me orgulho, fui forçada a pensar em um plano B. Eu iria conversar com Isabel e tentar contornar a situação.

Para minha surpresa, ao entrar no quarto, Isabel se encontrava desacordada na cama e meus esforços para acordá-la foram em vão: ela abria os olhos por alguns segundos, depois os fechava novamente. Chamei Mir VII para que ele me ajude a tentar acordar Isabel. Nada. Estava tudo arruinado. Isto é, estaria, se o Brasil fosse um país sério. Antevendo os dias de festa e entorpecimento que se aproximavam, Mir VII teve uma ideia: “Assina você”.

A princípio, recusei, afinal, era evidente que perceberiam se eu assinasse por Isabel. Mas Mir VII me garantiu que o povo estaria mais preocupado com outras coisas, bastava assinar, dar publicidade e depois esta decisão seria impossível de reverter. Relutei em acreditar que um país pudesse ser tão desorganizado, mas diante de sua insistência, falsifiquei a assinatura de Isabel. Sei que foge aos comandos que me foram dados, mas os resultados foram igualmente proveitosos.

Por incrível que pareça, foi assustadoramente fácil. Imediatamente divulgamos a notícia, expondo a lei assinada. A notícia se espalhou tão rápido e ganhou tanta força que ninguém percebeu que a assinatura não correspondia à de Isabel. O fato de todos estarem alcoolizados, fazendo sexo e se agredindo ajudou um pouco. No mesmo dia, recompensei em moedas de ouro a todos aqueles que participaram do plano, o que gerou uma enorme felicidade e, de tanto ouro distribuído, nasceu um apelido para a lei: Lei Aurea.

Os métodos não foram dos melhores, mas foram eficientes. No dia seguinte, eu estava ao lado de Isabel quando ela acordou. A parabenizei pela coragem e disse que ela dera um passo enorme na direção certa. Ela não se lembrava de nada e eu, claro, atribuí à bebedeira. Disse que eu mesma vi ela assinando a Lei Aurea. Isabel se desesperou, mas eu a convenci a manter sua palavra, afinal, seria um escândalo se o ocorrido viesse à tona, não é mesmo?

Missão Cumprida. Agora por obséquio, gostaria de voltar para a civilização. E desde já adianto que não aceitarei mais nenhuma missão nos trópicos, pois além de ser um lugar hediondo, eles são tão corruptos que minha presença se faz desnecessária. Enviem dinheiro e peçam o que querem que teremos os mesmos resultados. Aguardo o navio que virá me tirar desta terra medonha, por favor, não me abandonem aqui.

Lady Sally III.

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