Dilema isolado.

Hoje trazemos mais um dilema ético no qual Sally e Somir discordam. Você está diante de uma tribo indígena que teve pouquíssimo contato com a civilização, convidado a estar lá pelos locais, presencia algo prestes a acontecer: o assassinato de um bebê. A criança parece saudável e não se sabem os motivos pelos quais estão fazendo aquilo.

Tema de hoje: você interfere ou deixa o bebê morrer?

SOMIR

Eu interfiro. Mas, antes de tudo, vamos deixar algo claro: esse é um dilema baseado no ato de interferir, mas não em suas consequências. Motivos para não intervir baseados em represálias da tribo ou em assumir a criação do bebê fogem ao conceito central: intervir numa cultura da qual você não faz parte. Eu não interferiria se soubesse que ia sair morto dali, mas, isso deveria ser bem óbvio para todo mundo. Não é sobre o que você está disposto a sacrificar em integridade física ou em recursos para salvar um bebê… espero ter ficado claro.

E por que eu interfiro? Oras, não é o fato da cultura deles ser assim a sabe-se lá quantos séculos ou milênios que torna-a intocável. Se usássemos costume pra validar comportamento como norma no mundo atual, viveríamos numa realidade imensamente mais brutalizada do que vivemos, mantendo desde assassinatos por honra como escravidão no nosso rol de práticas aceitáveis. Evoluímos justamente por quebrar com tradições.

E sempre evoluímos no sentido da redução da brutalidade com a qual nos tratamos. Os tempos são outros, temos recursos e sistemas que permitem essa forma mais humanista de nos tratarmos. E se você argumentar que essas regalias da sociedade moderna humana não se aplicam aos índios, eu só concordo com você parcialmente. Podem não ter naquele momento, mas acabou-se o tempo da humanidade estar separada em grupos incomunicáveis.

O que deveria valer mais? A cultura global adquirida por bilhões e cultivada por milênios ou a cultura local que por um acaso acabou isolada? A ideia de intervir no caso vem da noção que existe sim um padrão concreto no qual julgar a ação praticada pelos indígenas. Os códigos de conduta de uma civilização moderna com certeza vão se modificar com o tempo, mas com liberdade e paz suficientes, já estão apontados numa direção que não vai mudar caso sigamos em frente.

Vivemos sob um sistema de regras que exige muita confiança de estar protegendo outras vidas para terminar a vida de outro ser humano. Onde é errado matar ou violentar alguém seja lá qual superstição você siga. Mesmo a superstição mais famosa do mundo ocidental, o cristianismo, não te permite matar uma criança. Estou mencionando tudo isso para explicar que independentemente de onde você esteja, ainda partilha desses princípios. Foram eles que te trouxeram até aqui.

Então, diante de uma tribo com costumes completamente diferentes dos seus, você ainda faz parte da civilização. E é o seu padrão de comportamento e seus valores que deveriam se sobrepor ali. Não porque eu odeio os índios, mas porque eles nunca tiveram a chance de conhecer mais do que aquela fatia distorcida de realidade. Se você intervém no caso de uma criança fazendo algo claramente perigoso, não a está desrespeitando, está simplesmente dividindo seu conhecimento, goste ela ou não.

Terrível o argumento de respeitar a cultura alheia independentemente de mérito, tratando índios como animais selvagens. Se eles são considerados humanos, não deveriam ser tolhidos do conhecimento acumulado da espécie. E esse conhecimento diz que provavelmente aquela criança está sendo morta por um motivo supersticioso reforçado por milênios de falta de contato com o resto da humanidade.

Não é uma intervenção com julgamento de caráter da pessoa que está fazendo o que se considera errado, é uma intervenção sobre um ato que a lógica diz que não faz sentido. Se você é a única pessoa num ambiente que sabe uma informação que pode evitar perdas de vidas humanas, não é arrogância compartilhar. É até a base da nossa construção social: quem sabe mais tenta dividir o conhecimento para que todos tenham uma vida melhor. É um pacto implícito de cooperação que garante que a vida seja menos cruel geração após geração.

Quem sou eu pra dizer se o índio está matando o bebê pelos motivos certos? Eu sou alguém com mais conhecimento e uma perspectiva global sobre o tema. Quem é um médico pra me dizer que eu devo tratar da minha ferida? Quem é um advogado para me dizer quando entrar ou não com um processo? Nosso sistema é baseado em pessoas que acumulam conhecimentos para dividi-los de acordo com a necessidade dos outros.

Também não é sobre ter algum laço emocional com o bebê. Talvez quem tenha filhos (ou ao menos um coração) tenha sua série de motivos extras para intervir, mas eu nem preciso disso para entender que intervir é a decisão correta. É uma comparação até que simples sobre quem entende mais sobre o assunto. Eu escutaria um índio na hora de escolher que plantas são consumíveis na floresta, mas não sobre a importância de matar uma criança para agradar um de seus deuses.

E se existe algum motivo razoável que eu desconheça naquele ambiente específico, isso ainda não torna a intervenção errada. Fora da aldeia a humanidade evoluiu bastante, sou até da opinião que não aculturar índios é uma forma de violência contra a ser humano. Considerando as possibilidades de cada cenário, as chances daqueles humanos encontrarem uma vida mais digna e feliz fora da floresta são maiores com a civilização como uma escolha. E se não serve para os índios daquele momento, seus filhos não poderiam ser segregados assim da “aldeia global”. Nem escolha eles podem ter?

Se eu vivesse numa ilha em condições precárias, fosse visitado por estranhos e eles nem me contassem que tem uma ilha bem mais avançada ao meu dispor, eu me sentiria traído pela humanidade. Quer dizer que eu não posso partilhar da evolução? Que tem pessoas que nascem fadadas ao atraso e ao barbarismo? Bom, não é esse o pacto social do qual eu partilho.

Não importa onde você esteja, você é resultado do seu meio. E se você é capaz de perceber um erro em outra cultura, não deveria ficar calado. Quem pode mais faz mais…

Para dizer que até pra salvar bebês eu sou frio, para dizer que eu sou preconceituoso, ou mesmo para dizer que não interviria para não tomar flechada (ler é para os fracos): somir@desfavor.com

SALLY

Hoje vamos falar de um dilema ético que já foi bastante explorado: você presencia um grupo de índios em seu habitat e observa que sacrificarão um bebê, por questões culturais. Você intervém e impede que o bebê seja sacrificado?

Não. Eu não me meto. Eu poderia alegar que respeito a cultura alheia e que não vou intervir. É um argumento válido. Várias culturas fazem coisas bizarras, inclusive a nossa, desde que o mundo é mundo, inclusive envolvendo morte de seres humanos. Nós humanos praticamos eutanásia em determinados casos, que podem ser contestadas por outras culturas. O que me leva a crer que minha cultura deve prevalecer? Nada. Mas não é esse o motivo.

Também poderia alegar que não adiantaria nada agir em um caso isolado de forma pontual, pois ainda que eu pudesse intervir, assim que virasse as costas eles provavelmente matariam o bebê da mesma forma. A menos, é claro, que eu me responsabilizasse por esse bebê de alguma forma, coisa que não seria viável. Não basta pular na frente da tribo e pedir para não fazer. Por uma questão de coerência, quem se comove com o problema se responsabiliza e quer erradica-lo, não apenas no caso daquela criança, mas como causa.

Não tenho tempo nem energia para ingressar em uma batalha judicial ou qualquer outra briga para fazer valer minha vontade. Muito menos vou levar um bebê para minha casa ou pior, deixar em uma abrigo abandonado para ser maltratado. Fica meio que um beco sem saída. Um ato supostamente bom mas que no final pode não gerar consequências bem ruins. Mas também não é esse o motivo.

Dava para forçar um argumento com a minha própria ignorância, as pessoas gostam disso, soa humilde. Não sou conhecedora da cultura indígena, das razões pelas quais aquelas pessoas sacrificariam o bebê. Como saber se não vou fazer mais mal do que bem? E se a existência desse bebê desencadear uma guerra entre eles que gere centenas de mortes? Nem é questão de superioridade cultural, (que eu até acho que tenha quando me comparo com pessoas que limpam a bunda com folhas), se trata da minha ignorância. Não teria todos os subsídios para ponderar se essa decisão vale a pena. Mas, novamente, é esse meu motivo.

Dá até para forçar um argumento de sustentabilidade. Não sabemos como essa tribo se regula, não sabemos o que acontece em matéria de recursos naturais se eles não matarem bebês. Talvez a escassez de recursos termine por causar um colapso que culmine na extinção de todos eles. Vai saber… Nós, humanos, ao longo da história matamos muitos bebês, até mesmo como controle de natalidade. Será que temos o direito de ficarmos tão horrorizados e intervir? Mas, mais uma vez, não estou sendo honesta. Não é essa minha motivação.

O motivo é: eu não me importo. Você pode estar chocado com a minha indiferença mas… será que você realmente se importa ou faria isso para livrar sua culpa, sua consciência?

Francamente, milhões de crianças morrem todos os dias no Brasil e fora dele. Todo mundo vive com isso, já aprendemos a nos anestesiar. Passamos ao lado de pessoas que estão jogadas nas ruas e não paramos para salvar um por um. Então, sinceramente, você não é melhor do que eu. Quem se importa apenas quando está diante de uma situação onde pode sair bem na fita caso se intrometa é realmente uma boa pessoa?

Esse é o mundo em que vivemos. Esse é o ser humano. O ser humano é uma merda, não acho que tenha salvação, não me intrometo. Eu realmente não me importo o bastante para intervir. Hoje, aprendi a escolher minhas batalhas. Se você acha um absurdo, uma vergonha ou acomodação, te dou um conselho: corre, muda o mundo logo, antes que o mundo mude você.

Já aceitei e me conformei que vivo em um mundo onde atrocidades acontecem. Elas precisam me causar um choque muito grande para que eu intervenha e compre uma briga. Sabem porque? Porque estou lutando pela minha própria sobrevivência, para me estabelecer, para me sustentar. Quem se encontra nessa situação não tem energia para ceder. Se eu tirar energia de mim agora, eu me prejudico. Então, desculpa, tô sem tempo de comprar grandes brigas para salvar o mundo sem me foder bastante para isso. Essa é a minha realidade. O máximo que posso fazer é, com meus atos, tentar fazer o bem para ter um mundo melhor.

Se você tem mais tempo, recursos e disponibilidade que eu, vai lá e salva o bebê indígena. Só toma cuidado, pois tem que ter uma sobra grande de recursos, tempo e energia para se dar ao luxo de viver assim sem se prejudicar. Às vezes a tentação de posar de bom faz com que o autor do ato acabe se prejudicando sem nem perceber. O que parece um ato rápido e isolado consome recursos emocionais.

O pouco tempo, energia e recursos que me restam eu invisto nas pessoas próximas e queridas, por convicções pessoais. E, acreditem, isso já me mantém bastante ocupada. Se seus amigos, parceiros e familiares não te dão trabalho algum e você não se vê obrigado a dispender energia para eles, beleza, vai lá salvar o bebê índio. Mas, novamente, cuidado para não achar que tem energia ilimitada e acabar por negligenciar o que é realmente importante. Todos nós temos energia e disponibilidade emocional limitados, quando você põe em um lugar, tira do outro.

Não acho que eu vá mudar o mundo e fiz as pazes com isso após os 30. Não tem erro mais bobo do que morder mais do que consegue engolir. Percebi que meus recursos pessoais, emocionais e temporais são limitados e hoje redireciono para quem me é extremamente importante. Não é sobre ser certo ou errado matar um bebê, é sobre as limitações que eu aprendi que tenho. É sobre escolher batalhas. É sobre estar mais preocupada com o bem estar dos que me são importantes do que posar de heroína.

Para me chamar de egoísta sem perceber que egoísta é quem sacrifica as pessoas queridas, para se enganar achando que você tem energia para tudo ou ainda para dizer que, assim como eu, você não se importa: sally@desfavor.com

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Comments (7)

  • Num primeiro impulso, interferiria. Mas, imaginando estar lá, na situação real, prefiro a racionalidade da Sally e não salvaria o bebê. Apenas sairia de cena para não ver o ato. Pode até ser covardia, fazer o quê? Não é com um ato impulsivo desses que se muda uma cultura inteira. Por acaso, não nasci a Angelina Jolie. Aliás, um negócio que preciso me esforçar mais: agir mais para o meu próprio bem-estar do que tentar mudar o mundo.

    • Lívia, nem acho que seria covardia. Quem disse que nossa cultura deve prevalecer sobre a deles? Quem disse que intervir não seria a real covardia?

  • Eu to com a Sally nessa. Não iria interferir. O bebê não é meu nem significa nada pra mim, por que eu me importaria? Morre gente adoidado todo dia e não tenho poder algum pra mudar isso e assim como praticamente todo mundo, também estou “anestesiado”.

  • Adriana Truffi

    Estou com o Somir nessa. É muito difícil se imaginar numa situação tão complicada, mas acho que agiria por impulso, sem pensar nas consequências. Dependendo da reação dos índios talvez até voltasse atrás, tentaria contornar a situação, mas meu primeiro impulso seria intervir sim.

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