Skip to main content

Colunas

Arquivos

Bagdá caiu.

Bagdá caiu.

| Somir | | 8 comentários em Bagdá caiu.

Você pode até não gostar do que vai ler aqui, mas considere-se um sortudo por ter essa escolha. Seus filhos e netos podem não ter sequer a oportunidade de desgostar de um texto: não serão capazes de lê-lo! A nossa Bagdá é onde os pensadores de todo mundo se reúnem, onde a ciência avança e o conhecimento é nosso maior patrimônio, mas se continuarmos dando ouvidos às insanidades de Al-Ghazali, tudo isso pode se perder.

Como tivemos o privilégio de aprender através do conhecimento livre dividido conosco por historiadores, nossa capital nasceu para abrigar a capital do Califado Abássida. E com isso, Bagdá tomou o lugar de Damasco como o centro do mundo. E por um tempo, isso foi muito bom. Os abássidas não são perfeitos, ninguém é… mas na hora de analisar os ensinamentos do Corão, pelo menos olharam mais para “a tinta de um acadêmico é mais sagrada que o sangue de um mártir” do que para outras passagens mais agressivas.

Vivemos numa Era de Ouro, leitores. E ela foi construída com conhecimento, com inteligência e trabalho duro para transformar uma sociedade de bárbaros no berço dos maiores avanços deste mundo. Mas não é isso que nossos governantes atuais estão enxergando, na verdade, eu não sei mais o que se passa pela cabeça deles. Estamos vivendo uma doença chamada ignorância, e ela se espalha por todos os lados. Todos sabem que o discurso do dito profeta Al-Ghazali faz muito sucesso entre nossos líderes, escondidos na fé cega para não ver os próprios problemas.

Bagdá vai cair, e quem nos ensina sobre o mundo não é mais um filósofo grego como Platão ou Aristóteles, mas um tolo cuja visão da ciência é apenas uma piada de mau-gosto. Saibam vocês que suas teses chegam ao cúmulo de dizer que um algodão embebido em álcool não queima por uma reação com o fogo, mas pela vontade de Alá. E que tudo funciona assim. Que não podemos aprender mais nada, que não temos controle sobre nada, que tudo é vontade de Alá, pura e simples.

Então, para que viver, Al-Ghazali? Não entende porque sua visão doentia da realidade pode ter conseqüências terríveis para os desprovidos? Se Alá controla tudo e somos nada além de marionetes para seus desígnios, quer dizer que merecemos todo nosso sofrimento? Que rezar e implorar para Alá é tão válido quanto tentar resolver as coisas? E pior, que só quem entrega toda sua vida para Alá que está certo? A vida aqui não vale nada?

Mas mesmo com tantos filósofos e homens da ciência na cidade, ninguém parece ter coragem de desafiar o mau uso da fé. Assunto proibido. E quando assuntos se tornam proibidos, eles começam a definhar e apodrecer. Foi com o comércio e expressão livres que construímos o que construímos aqui. Aritmética, Geometria, Astronomia, Medicina, Filosofia… tudo que pudemos discutir e aprender com quem vem de fora e quem discorda de nós, tornou-se melhor, mais completo.

E dessa lição, o que tiramos? Que o problema de tudo é que não somos fanáticos o suficiente pela nossa religião? Lembrem-se que os califados que tomaram o mundo para os muçulmanos pregavam a liberdade de religião, cobrando impostos ao invés de perseguições e crueldades. Isso não funcionou? Não temos prosperidade? Não somos respeitados da África à Europa? É incompreensível para qualquer pessoa com algo dentro da cabeça como estamos jogando fora tudo o que nos fez poderosos pelo temor dos bárbaros otomanos e mongóis. Eles são apenas animais esperando serem domesticados.

Mas em Bagdá, a intelectualidade desanda. O medo das invasões sugerindo a fúria de Alá? Mas com o quê, oras? Estamos seguindo o que nos foi dito pelas escrituras sagradas, não temos culpa se elas entram em contradição às vezes. E, na dúvida, temos que ficar com as partes que comprovadamente melhoraram a vida de todos nós. Essa revisão dos conceitos que formaram a nossa sociedade terá conseqüências terríveis, e não é difícil de prever. Entregar a iluminação do nosso califado às trevas da ignorância e do medo vai salgar a terra, para sempre. Nada mais vai crescer aqui.

O que mais me irrita nisso é que está renascendo a ridícula rixa com os judeus, um povo que traz o pior de nós. Não sei quem está mais errado nessa briga, mas com certeza nós somos os mais avançados, o suficiente para agirmos feito adultos e não entrarmos em guerras religiosas. Até porque já temos problemas demais com os cristãos. A religião nascida entre os judeus e que infesta a Europa obviamente gera alguma ameaça, mas tínhamos um plano muito bom seguindo apenas nossas escrituras: cobrar impostos deles. Mas não, quando o fanatismo cresce, a capacidade de lidar com o diferente desaparece.

E aí, eu garanto, leitores… eu garanto que não teremos força para lidar com os bárbaros que espreitam os nossos portões. Quando começamos a nos dividir, não temos defesa. Os otomanos invejam nossa iluminação, os mongóis nos vêem como um prêmio brilhante, e não vai ser nossa habilidade militar que vai garantir nossa proteção. Na verdade, a pena é uma arma tão poderosa aqui que podemos infiltrar a cultura desses povos e provar para ambos como podemos ser úteis. Mas isso só é possível se voltarmos a ter coragem de enfrentar o diferente, ao invés da coragem estúpida de entrar em guerras impossíveis de serem vencidas.

Alá não vai segurar os muros de Bagdá quando os estrangeiros chegarem com suas armas, mas vai nos inspirar se fizermos acordos inteligentes com eles. E somos o último bastião de estabilidade pacífica por aqui. Se formos provados obsoletos, imagine qual a mensagem que passaremos para a região? Que a intelectualidade é uma guerra perdida? Que apenas bárbaros fanáticos são capazes de proteger um povo? Alá não dá forças para os selvagens, e somos a prova disso.

Mas, Al-Ghazali vale mais que os filósofos gregos para nossos governantes. A doutrina do medo e da ignorância está vencendo, e nossa Era de Ouro, ao contrário do metal, vai enferrujar. E preparem-se, vocês são os últimos a sequer entender este comentário. Nós poderíamos ser grandes, poderíamos ser os líderes do futuro, mas a ignorância está vencendo. E quando os selvagens vierem nos destruir, vai ficar apenas a memória do que poderíamos ter sido. Mais do que as vítimas do futuro, muito mais. A terra não será cuidada, a paz ficará distante, continuaremos lutando contra judeus, cristãos e pior de tudo, entre nós. O islã rachou. Rachou.

Eu gostaria de ter fé no nosso futuro, mas toda fé já foi gasta.

Para dizer que o texto é racista, para dizer que o texto é simplista, ou mesmo para dizer que culpar a vítima é bem islâmico mesmo: Escreva para Al-Somir


Comments (8)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: