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SSS: Dia 3 – Parar de fumar.

SSS: Dia 3 – Parar de fumar.

| Desfavor | | 23 comentários em SSS: Dia 3 – Parar de fumar.

SALLY

Olá Blogueirinha!

Os malefícios do cigarro são mundialmente conhecidos, não precisamos discursar sobre eles, certo? Então, sua terceira missão para esta semana é muito simples: parar de fumar. Não tem que fazer nada, apenas não fazer.

Pessoas largam cocaína, pessoas deixam de usar heroína, pessoas abandonam o vício em crack. Não há motivos para que você, com toda a estrutura do mundo, não fique uma semaninha sem fumar, não é mesmo? Depois de um vício de 20 anos, passou da hora de você abandonar esse veneno.

Vai dar vontade de fumar? Vai sim, afinal, é um vício. Mas tudo depende da sua força de vontade. Pessoas param de fumar todos os dias, portanto, por mais que seja um tanto quanto desafiador, é possível. O lado bom é que você estará amparado por uma bela alimentação e atividade física, que libera endorfinas no organismo, fazendo com que você se sinta muito bem. Isso deve tornar o processo mais agradável.

Sem cigarro você vai se sentir muito mais disposto, muito menos intoxicado. Vários aspectos da sua vida vão melhorar, você vai sentir o sabor da comida, seu fôlego será maior. O mais legal é: em poucos meses você começa a reduzir o risco de diversas doenças. Quem sabe este não é o primeiro passo para que você largue o vício de vez?

Suas roupas não terão mais cheiro de cigarro, seu carro não terá mais cheiro de cigarro, seus gatos não terão mais cheiro de cigarro. Já pensou que maravilha? Além disso seus amigos e sua família ficarão muito contentes em ver que você está parando de se matar gradualmente, dia após dia.

Sua concentração pode diminuir um pouco? Sim. Você pode sentir alguma sonolência durante o dia? Também. Mas, veja pelo lado bom, esta semana você não terá que fazer nenhuma pesquisa profunda para postar textos no Desfavor, apenas relatar suas impressões sobre as experiências vividas.

Nada de adesivos, cigarro eletrônico, chiclete de nicotina ou qualquer outra muleta. É parar de fumar na raça. Mostre do que é capaz, mostre seu valor. Você está recebendo um privilégio: a oportunidade de deixar todos aqueles que te conhecem orgulhosos de você. Faça a coisa certa.

Força de vontade é tudo nessa vida. Parar de fumar é questão de força de vontade. Você vai ver que não é tão terrível como você imagina.

Boa sorte, Blogueirinha!

SOMIR

O que faz um homem ser um homem? É como ele se percebe é ou é a forma como ele impacta a realidade? De uma certa forma, somos escravos da realidade criada pela nossa cabeça, uma consciência flutuando no vazio sem a certeza absoluta que algo mais existe lá fora. Talvez um cérebro de Boltzmann simplesmente surgindo por mera probabilidade quântica e acreditando que sua existência tem valor.

Mas essa é uma questão fundamentalmente problemática. A resposta é tão óbvia quanto sua disposição de não se aprofundar. Vou fazer minha parada por aqui. Existo e isso é o suficiente. Ao existir, torno-me um dos agentes da realidade, uma das forças batalhando a entropia (mesmo que em vão) em busca dessas interações entre a minha mente e o que ela acredita ser o grande palco de todo o resto. Interações que tomam forma através dos sentidos, transformando a realidade de formas imprevisíveis… no final das contas, não fosse o que está fora de nós, selvagem e incontrolável como é, talvez essa realidade nem valesse sua estadia.

Vícios funcionam de uma forma curiosa: eles parecem somar algo no começo só para levar tudo embora com o passar do tempo. Uma soma cujo resultado é sempre negativo. O problema é que para isso ser possível, o primeiro número de todos também tem que ser negativo. Se entendemos o conceito do vício através de uma recompensa que sempre se torna menor ao ponto de se tornar uma espécie de infinidade fracional que nunca chega ao próximo número, não faz sentido que você já comece positivo. Já existe uma falta existencial. Ela não é desenvolvida ou imposta pelo ambiente, ela é. Só é. Somos números negativos por definição.

Sally ri do possível sofrimento que estou passando pela falta do cigarro, mas só está criando outra dessas somas intermináveis. Parar de fumar não é difícil. Fiz várias vezes. Nas primeiras horas, parece que algo está faltando, mas não é tão claro assim. Não é como se você esquecesse de um vício, sua mente e seu corpo sabem exatamente o que querem que você faça, mas não existe mente humana que consiga racionalizar a falta de uma substância. Falta é falta. O vício é um mecanismo para te aliviar, mas não é ele que te liberta da sensação, é a ação. Por isso todos os vícios seguem por caminhos parecidos. Por isso todos vão ficando cada vez mais desesperadores.

Quando você age para saciar um vício, seu organismo recebe mais uma dose da substância, mas sua mente não opera nesse nível. Sua mente satisfaz-se, progressivamente menos, com a sua ação na realidade. Como se suas mãos atravessassem o véu da limitação mental e por uma fração de segundo, tocassem algo que está lá fora. Eu sei que isso vem das formas mais mundanas como consumir fumaça, uma bobagem claríssima, mas o ato é tão relevante quanto a sua percepção dele. Abrir mão desse controle incomoda, mas não é o que te faz mal no começo. No começo, é como tolerar uma coceira num lugar que não pode ser coçado na hora. Sua mente começa a se adaptar numa armadilha sutil, mas nem por isso menos poderosa: a de que é tudo temporário, uma concessão da própria realidade a sua limitação.

O primeiro dia é difícil, mas nem tanto assim. Dormir vem como um alívio, e a mente realmente não quer mais saber daquilo. Me ajudou a carga imensa de sofrimento causados pelas outras exigências de Sally: tanto corpo como mente tem seus mecanismos para lidar com tragédias. Muita coisa para digerir (exceto comida) para a falta de nicotina ser esse monstro todo. Chega o segundo dia, o corpo fica um pouco menos tolerante. Os sintomas de abstinência ficam mais fortes, é quase como se a sua cabeça começasse a desconfiar que tem algo de errado com o universo ao seu redor. Para evitar danos maiores, você começa a ser lentamente desligado.

O dia fica lento. As horas se arrastam e a vontade de ceder ao vício cresce sem parar. É como se tivessem te arrancado da realidade e sua mente estivesse desesperada pela próxima dose de poder sobre ela, só para confirmar que sua consciência está realmente ancorada em algo. O humor não sabe mais onde está o equilíbrio, falta uma linha guia para te dar proporção. Primeiro vem um incômodo implosivo, que começa a erodir suas bases e te deixar num estado lastimável quase que sem aviso aparente. Mas sua mente ainda está oferecendo a trégua, você tem o benefício da dúvida sobre o seu retorno ao hábito esperado.

Mas aí chega o terceiro dia. É aí que a linha entre parar com o vício e se manter longe dele começa a borrar. Vícios são para sempre. Sempre seus. A memória da falta é uma das coisas mais vívidas que uma pessoa vai perceber na vida. Não a mera falta da substância como disse antes, mas a realização de ser o tal do número negativo. Se não fosse essa substância, seria outra coisa. É a mente que vicia de verdade. Corpos não brincam em serviço: se eles precisam de algo e você não dá, eles param de funcionar. Se eles não precisam, você vai continuar vivo. Agora, a mente… a mente não está presa às regras da realidade. Ela é imortal mesmo se tudo o que precisa estiver faltando. A mente apodrece viva.

E nesses momentos, a erosão vira deslizamento. Eu demiti a mesma estagiária duas vezes hoje, sendo que os detalhes da recontratação entre os dois momentos ainda estão nebulosos para mim. Na minha mente, passaram-se semanas entre as duas conversas. A realidade é frágil assim. Eu provavelmente vou ter que resolver isso assim que tiver condições, mesmo sem saber quando isso vai acontecer. O problema do terceiro dia é que ele nunca mais termina. Seu corpo começa a aceitar sua nova realidade, mas a mente não trabalha dessa forma. Ela se convenceu lá no começo que suas ações contra a falta fundamental foram suspensas com data para voltar. E não é como se estivesse disposta a mudar essa realidade.

O difícil nunca foi chegar ao terceiro dia, e sim não voltar ao primeiro. Vícios não tem esse poder todo por causa de uma substância aleatória, eles só são o que são porque te fazem ver algo sobre a realidade fundamental do universo que nunca mais pode ser esquecido.

Para dizer que não tem mais graça, para dizer que está com dó de estagiário (nunca tenha), ou mesmo para dizer que acha que eu uso algo mais pesado que nicotina: somir@desfavor.com


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