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Vantagem isolada.

Vantagem isolada.

| Desfavor | | 16 comentários em Vantagem isolada.

Mesmo com a dificuldade dos brasileiros de obedecer, estamos vivendo tempos de isolamento social. Para dar uma variada, Sally e Somir olham para o lado positivo. Os impopulares aderem, ou não.

Tema de hoje: qual a melhor parte da quarentena?

SOMIR

Não ser obrigado a socializar. Vejam bem, eu não estou dizendo que a melhor parte é não socializar, é não ser obrigado a isso. E a diferença é muito importante. A sociedade humana é montada em cima de vários rituais de interação que nem sempre fazem muito sentido quando você realmente para para pensar neles. Muito do que se considera socialização entra nessa categoria: fazemos mesmo sem entender muito bem o que vamos ganhar com isso.

Sim, ninguém é uma ilha e faz bem ter relações com outras pessoas, conhecer gente nova ajuda pode ajudar bastante, mas essas ideias são levadas tão no automático que parece que quantidade vale mais do que qualidade. A verdade é que nem todo contato é relevante, especialmente se ele é feito com essa ideia que bastam números para ter uma vida social plena. Essa mentalidade leva muita gente a achar que ter muitos seguidores em rede social é a mesma coisa que ter muitos amigos, por exemplo.

Evidente que isso não se sustenta na prática. Existem limites de quantas relações verdadeiras um ser humano consegue manter na vida, e eles são bem mais limitados do que a maioria de nós acredita. Muita gente já tentou dar um número exato para isso com resultados diferentes, mas a ideia geral é que não passa de algumas dezenas de pessoas, na melhor das hipóteses. Eu já escrevi antes aqui sobre como o ser humano consegue “criar” outras pessoas dentro da própria cabeça para realmente fazer senso delas, e esse é um processo extremamente complexo: não cabe muita gente dentro da sua mente.

Por isso, é muito importante se manter atento à qualidade das pessoas que você coloca na sua vida. Fatalmente vai faltar poder de processamento na cabeça se você forçar demais seus limites. Digo tudo isso porque considero injusta a acusação que pessoas como eu recebem de serem antissociais: na verdade, eu me importo tanto com contato humano que não quero diluir minha limitada atenção. E nem é aquele papo furado de que ninguém presta, ou que pouca gente merece minha atenção, é uma questão de números mesmo. De conhecer seus limites.

Mas apesar desse argumento parecer bem razoável para a maioria das pessoas dispostas a pensar nele, não é muito comum que paremos para considerar isso. Um misto de negação e hábito. Negação porque é ruim pensar que deve ter sim muita gente bacana por aí que você simplesmente não vai ter tempo de aproveitar, e hábito porque existem diversos rituais de socialização que fazemos sem pensar, só porque todo mundo faz. Que jogue a primeira pedra quem nunca esteve num grupo de conhecidos em alguma situação social e pensou que estaria mais feliz na cama da sua casa…

Só que pegar fama de antissocial não é uma boa. A pessoa se esforça para aguentar situações que não são sua praia para passar a imagem de alguém mais bem ajustado. Num mundo ideal dá para fazer como a Sally e sair negando tudo o que não quer fazer sem sofrer por isso, mas na prática as pessoas tomam isso como uma ofensa pessoal. Talvez elas nem estejam muito conscientes que estão fazendo rituais para conquistar números ao invés de boas relações, mas seja como for, não muda o resultado: você acaba mal visto por elas.

Isso é incômodo quando se fala de amizades e possíveis relacionamentos amorosos, mas pode ser desastroso quando falamos da vida profissional. Recusar convite de chefe ou parceiro de negócios reduz sua capacidade de avançar na carreira, porque muitas vezes o que a pessoa está fazendo é um teste do próprio valor: quem aceitar o convite a respeita. Infelizmente temos que lidar com muita gente insegura com mais dinheiro e poder do que a gente na vida cotidiana.

E são essas as situações que o isolamento social ajuda a resolver. Nem estamos em quarentena de verdade ainda, mas o coronavírus é a desculpa perfeita para você não precisar encarar essas situações. Sim, tem muito negador por aí que acredita piamente que não tem problema fazer festa ou coisas do tipo agora, mas essas pessoas ainda se sentem uma minoria. Mesmo se ficarem incomodadas com sua recusa, vão acabar colocando a culpa na Globo, na China, nos Illuminatti… você vai ser só mais uma vítima da conspiração global na qual acreditam, e não alguém que não tem interesse nelas ou na situação social que criaram.

E pra quem entende que não é hora de socializar, nem sonha em te forçar a socializar. É uma oportunidade valiosa para muita gente descobrir que fazia muita coisa no automático, que valorizava coisas desnecessárias. Sem poder fazer os rituais do passado, agora vamos saber bem quem tem interesse honesto em você e quem só queria mais um número na vida social. Bons relacionamentos consideram que nem toda hora é hora, que às vezes é melhor negar um contato se você não tem como dar atenção devida a ele. No isolamento, você sabe quem te valoriza.

E quem só se importava com a sensação de poder derivada de fazer outras pessoas girarem ao seu redor vai ter que se acostumar a merecer sua atenção. Acabou o “power move” de fazer pessoas irem à sua festa ou reunião inútil só para reforçar o ego, o coronavírus está aí para ser a desculpa perfeita. Algo me diz que muita gente que diz se preocupar com a economia está mesmo se sentindo fraca sem poder forçar os outros a se movimentarem ao seu bel-prazer. Quando sua desculpa é inescapável, essa gente não tem o que fazer, nem mesmo sabe como ficar irritada com você pelo tamanho da ginástica mental necessária.

Socialização tem que ser algo honesto, relevante. Não uma dança coreografada feita para saciar egos frágeis. Preferia que não tivéssemos essa desculpa, mas já que temos, vamos aproveitá-la ao máximo.

Para me chamar de antissocial, para dizer que espera que a doença dure uns 20 anos, ou mesmo para dizer que a melhor parte são as heranças: somir@desfavor.com

SALLY

Home Office.

É algo que já deveria ter sido instituído faz muito tempo, por diversos motivos: evitar trânsito, evitar transporte público cheio, qualidade de vida do funcionário, corte em despesas para empresa e muitos outros. Infelizmente, o brasileiro é chucro, tem resquícios de pensamento escravocrata, é tosco e obriga o funcionário a comparecer à empresa mesmo quando seu trabalho pode ser feito de forma remota.

Pois bem, com a “quarentena” (o Brasil não está em quarentena) as empresas tiveram que enfiar o galho dentro e deixar quem pode trabalhar de casa trabalhar de casa. Acho graça em ver patrãozinho com cabeça de merda sendo obrigado a se atualizar pelo universo. Adoro quando essas guinadas do destino dão uma marretada na cabeça de quem não evoluí por bem e a pessoa é obrigada a mudar na marra.

“Mas Sally, brasileiro é foda, faz corpo mole, não trabalha bem de casa”. Então o erro está em quem contrata, que contratou errado. Demite e contrata outras pessoas, até achar quem seja responsável e trabalhe bem de casa. Sim, essas pessoas existem, por sinal, tem muitas delas desempregadas loucas por uma oportunidade. Se a pessoa é incompetente na hora da contratação, assuma isso em vez de colocar Home Office como algo inviável no país.

Essa lógica da chibata, do controle, de querer seu funcionário ali, ao alcance do seu olhar, é de um atraso absurdo. Chega a dar vergonha alheia esse pensamento. Tá com medo da pessoa render mal? Estipula uma meta de produtividade diária ou semanal, assim a pessoa tem a certeza matemática de que o funcionário está rendendo em casa o mesmo que rendia na empresa. Mas não, o patrão brasileiro quer exercer o posto de patrão: ser bajulado, estar em um ambiente onde ele é superior. Ego frágil, gente medíocre que precisa desse micro-poder de merda para se sentir bem.

“Mas Sally, eu não consigo trabalhar de casa, me distraio, não rende”. Aí é um problema seu. Cresça. Seja adultinho, aprenda a se planejar, a ter produtividade e responsabilidade. E sugiro que faça isso rápido, pois em breve não será mais uma opção ir para a empresa trabalhar. Vamos ficar um bom tempo no Home Office e quem não produzir bem será demitido. Aprender a ter foco, organização e produtividade é inerente a um adulto funcional.

Não estou exagerando quando digo que Home Office é win/win, é realmente bom para todo mundo. Trabalhando de casa o funcionário não gasta com comida na rua, com transporte, não passa por uma viagem de ida e outra de volta muitas vezes cansativa, com trânsito ou transporte público lotado, está mais protegido da criminalidade, pode se alimentar de forma mais saudável e não é obrigado a conviver com colegas de trabalho pau no cu e faz as coisas no seu tempo.

Em contrapartida, a empresa não precisa manter uma sede física, economizando em aluguel, condomínio, contas, pessoal terceirizado, vale transporte, vale refeição e muitas outras despesas. Esse dinheiro economizado, que não é pouco, pode ser revertido em prol da própria empresa, que pode investir em publicidade ou no que quer que queira para majorar seus resultados.

Só um quadrúpede não vê que, se for possível desempenhar o mesmo trabalho de casa, é melhor para a empresa e para o funcionário. Mas não tem problema, se o quadrúpede quer ficar com a cabeça nos anos 80, vem a realidade e o obriga a se atualizar. Esse vai ser o grande legado da quarentena: perceber que é melhor para todo mundo (salvo erros na escolha) se os funcionários puderem trabalhar de casa.

Somir diz que a melhor parte da quarentena é não ter que socializar, mas, quando eu não quero socializar, eu simplesmente digo que não quero ir e ponto final. Quem for meu amigo vai entender e respeitar e pau no cu de quem não o fizer. Meus amigos me conhecem e respeitam. Então, se eu não quero socializar, eu apenas digo que não. Já o Home Office… não dá para botar o pau na mesa e dizer ao seu chefe que você não vai até a sede da empresa trabalhar, é uma relação de hierarquia.

Mesmo para aqueles casos onde a socialização é um compromisso, há um cardápio de desculpas para não comparecer, ou até mesmo mandar a real e dizer que não gosta e não sai. E não acontece todo santo dia. Trabalho é todo santo dia e não dá para meter 300 desculpas por ano. E mesmo que eventualmente você tenha que sair e socializar, você escolhe com quem conversa, que horas chega, que horas vai embora.

Então, dá para não socializar com relativa facilidade. E mesmo que você não escape, é algo pontual, que deve ser feito de vez em quando. Já se deslocar para seu ambiente de trabalho é algo diário, que consome, muitas vezes duas, três, quatro horas do seu dia e te obriga a conviver com gente muito pau no cu e com relação de hierarquia.

Talvez, se você for um privilegiado que trabalha perto de casa ou em um local cujo deslocamento seja tranquilo e confortável, não entenda exatamente o que eu estou falando. Só quem tem que acordar muito cedo para chegar ao trabalho na hora sabe o quanto isso desgasta, só quem tem que enfrentar duas horas de pé no transporte público exausto depois de um dia de trabalho sabe como isso é ruim, só quem tem que fazer maratona para chegar na hora e cumprir suas outras obrigações sabe o quão estressante é.

Trabalhar de casa é vida. Funcionário feliz é funcionário que produz mais, que adoece menos e que tem mais capacidade criativa para ser usada a favor da empresa. Uma pena que seja necessário um vírus mortal para que o brasileiro chucro, parado no tempo, obtuso, seja forçado a uma situação onde vai perceber isso. Uma pena que quando o Home Office não dá certo os quadrúpedes não percebam que foi erro deles na escolha e não uma condição imutável da sociedade brasileira.

Um plus: o Home Office derruba qualquer máscara, impede que aquele funcionário cu que se garante no social continue engambelando a todos e impede que patrão cu que escolhe errado continue empurrando funcionário merda com a barriga. Home Office aniquila todos os penduricalhos do ambiente de trabalho: foda-se se a pessoa é legal, é gente boa ou é bonita, a única coisa que aparecerá é seu trabalho, como, por sinal, sempre deveria ser.

Pode ter certeza, o Home Office é a melhor coisa que o Covid-19 vai fazer por você.

Para dizer que se avaliarem apenas a sua produtividade você vai ser demitido, para dizer que o ambiente na sua casa é um inferno ainda maior do que no trabalho ou ainda para dizer que a melhor coisa da quarentena é não ter que ir almoçar na casa da sogra: sally@desfavor.com


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