Indefensável.

A Defensoria Pública da União (DPU) entrou com uma ação civil pública nesta segunda-feira (5) contra o Magazine Luiza pedindo indenização de R$ 10 milhões por danos morais coletivos em razão do programa de trainees promovido pela empresa, com vagas apenas para candidatos negros . O defensor público-geral federal em exercício, Jair Soares Júnior, responsável pela ação, alegou que o processo seletivo violaria o direito de milhões de trabalhadores, que teriam sido discriminados por motivos de raça ou cor, inviabilizando o acesso deles ao mercado de trabalho. A ação do Magalu é encarada como “marketing de lacração”. LINK


Está errado? Não está errado. Deveria ter sido feito assim? Não! Desfavor da Semana.

SALLY

O defensor público federal Jovino Bento Júnior entrou com uma Ação Civil Pública contra o Magazine Luiza por seu programa de trainee exclusivo para negros. Ele pede R$ 10 milhões de indenização da rede de varejo por racismo e danos morais coletivos, alegando que a inclusão social de negros é “desejável”, mas não pode ocorrer “às custas do atropelo dos direitos sociais de outros trabalhadores”.

Tá errado? Não está, ele tem razão nos seus argumentos, mas obviamente está postulando isso do lugar errado e criando um tremendo desfavor.

Não nego: eu ri. Depois de ver aquele perfil medonho com aquela boneca dos infernos chamada Magalu afirmando a legalidade da medida, vir um Defensor Público, grupo nacionalmente reconhecido por defender minorias, dizer que não, que a medida é desproporcional e racista lavou minha alma. É como se uma mãe com seu bebê no colo falasse “eu sei que meu filho é horrível”. Quão feio teria que ser esse bebê?

Os argumentos do Defensor são todo muito coerentes, mas, ainda assim, ele foi muito inocente ou errou feio. É óbvio que no Brasil, um país onde a maioria esmagadora da população tem cor de papelão, sempre vai ter muito esperto para se beneficiar do subjetivismo que é a cor da pele. Quem é negro? E se houver alguém não tão negro, mas com condições econômicas muito inferior? Não é pela cor da pele que se escolhe nada, se você quer reparar desigualdade, o medidor deve ser esse: a desigualdade.

Mas, o que saiu na imprensa foi o Defensor dizendo que era “marketing de lacração” e uma série de falas fora de contexto para fazer parecer que a iniciativa é uma aberração. Ou seja, em vez de ajudar, deu munição para mais vitimismo.

Não dá para trabalhar em uma instituição como a Defensoria Pública e se posicionar dessa forma, é pedir para se foder e para o tiro sair pela culatra. Está dando argumentos para que as pessoas se vitimizem ainda mais, dizendo que o preconceito vem de cima, que essa ação é a materialização da crise civilizatória e mais uma penca de bosta vinda de pessoas que não leram a ação que não tem formação em direito, portanto, não tem aval para falar da legalidade de uma iniciativa.

Qualquer outra pessoa que fizesse isso, eu aplaudiria de pé, mas um Defensor Público? Porra, irmão, você está obviamente no lugar errado. É como se nós do Desfavor processássemos alguém por uma piada politicamente incorreta. Saiba onde você está. Quando você trabalha para um lugar, obrigatoriamente veste a camisa, queira você ou não. Não dá para estar uniformizado de defensor de minoria e fazer uma porra dessas, é óbvio que a pessoa vai virar vidraça e um monte de argumentos válidos vão cair ralo abaixo.

Eu entendo e sei que este Defensor acha que está protegendo as minorias, ao pretender que o critério de reparação seja com base no grau de desigualdade de cada um: quem teve menos oportunidades, por um conjunto de motivos que vão muito além da cor da pele, mereceria mais facilidades. Mas não é isso que vai se consolidar como pós-verdade. O que ele fez, apesar de muito correto e coerente, soou mal e, quando isso acontece, imediatamente aparecem lacradores saindo até do bueiro para te jogar debaixo do ônibus, de modo a parecerem boas pessoas.

Obviamente os colegas de trabalho estão repudiando esta ação e o Defensor que a apresentou. Obviamente também estão fazendo um escândalo em torno disso, o que faz pegar muito mal para qualquer juiz dar ganho de causa ao Defensor. O circo que se criou com esta iniciativa fora de lugar só serviu para assegurar que a ação não vai ser julgada com imparcialidade. O juiz que pegar já viu o apedrejamento que o Defensor sofreu, dificilmente vai querer passar por isso ele também.

Quando você faz algo público, de grande repercussão, não é inteligente fazê-lo de uma forma que pareça um ato preconceituoso e de traição. O mérito importa, mas a forma também, pois se for da forma errada, cobre de merda o mérito e ninguém nem ao menos se dá ao trabalho de ler. Ou vocês acham que os lacradores que estão criticando essa ação a leram?

Quando se é pessoa pública é preciso tomar cuidado em como se fazem as coisas, pois, por mais corretas que sejam, se forem feitas da forma errada, se voltam contra você e causam mais danos do que benefícios. Se havia qualquer chance dessa atrocidade da Magazine Luiza ser considerada inconstitucional, agora não há mais. Este Defensor, por cinco minutos de fama, soterrou essa possibilidade.

Quem perde? Sou eu? Não. Perdem as milhões de pessoas que estão em condições de desigualdade, vulnerabilidade e serão cortadas de uma iniciativa inclusiva que usou um critério escroto, que não incluí todos os que precisam. Pessoas que, se o assunto tivesse sido abordado de outra forma, teriam uma chance, mas agora não tem mais.

O Defensor critica quem quer lacrar, mas ele mesmo se portou assim. Prestou um enorme desserviço a quem precisava de sua proteção e, por uma postura bélica, desnecessária e inadequada para com a sua função cagou o direito de muita gente. Sujou de merda um direito legítimo por agir de forma inadequada. Impressionante como no Brasil até quem acerta erra.

Falta coerência. Se você acha isso um lacre, não trabalhe na Defensoria. Se você é vegano, não vai trabalhar em um abatedouro cortando a garganta de vacas e depois vai fazer protesto contra crueldade animal, certo? Se o fizer, vai desmoralizar tanto o abatedouro quando o movimento contra crueldade animal. É demente fazer uma coisa dessas. É egoísta.

Se não gosta de lacre, está trabalhando no lugar errado. Defensoria Pública é basicamente isso. Permanecer em uma instituição e fazer atos em nome dela contra os ideais dessa instituição é um tiro no pé, não apenas no seu pé, mas de todos os que precisavam que esse lacre fosse contestado. Está feliz? Teve seus cinco minutos de fama e soterrou qualquer discussão saudável sobre o assunto com sua postura inadequada.

Para dizer que só quer ver a treta, para dizer que se tudo mais der errado torra no sol uma tarde e pleiteia reparação histórica ou ainda para dizer que quem usa essa cartada para entrar, também a usa contra a empresa depois: sally@desfavor.com

SOMIR

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

Título I – Dos Princípios Fundamentais

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.


Não tem muito o que discutir, está logo ali no começo da Constituição como objetivo fundamental do país. O Estado não poderia se omitir diante de uma violação clara do princípio de não discriminação por raça. Quando a Magalu cria um programa de trainees cujo primeiro filtro de seleção é baseado em cor de pele, está sendo racista.

Como já escrevi em outros textos, você pode até argumentar que “é só dessa vez” para corrigir injustiças históricas, o que, apesar de não enxergar vantagem alguma sobre critérios puramente sociais, pelo menos traz alguma honestidade intelectual para a discussão. Se pelo menos for feito com a consciência que fere os princípios fundamentais do sistema democrático moderno de não discriminação por raça, podemos continuar discutindo e tentando encontrar formas cada vez melhores de reduzir a imensa desigualdade brasileira.

Porém, se o argumento vira para o ângulo de “não existe racismo reverso”, estamos entrando no campo do terraplanismo sociológico. Isso é, quando você tenta redefinir a realidade de acordo com sua ideologia custe o que custar. Depois de alguns milênios de confusão, a humanidade parecia finalmente entender que somos a mesma espécie e aplicar legislações que proibiam a discriminação racial de qualquer tipo. Quer dizer, isso até o câncer ideológico da interseccionalidade se alastrar pela esquerda. De repente, passamos a aceitar oficialmente de novo comportamentos discriminatórios.

Quando a defensoria pública vai atrás da Magalu pelo seu programa de trainees racista, não está prestando atenção no ambiente cultural: boa parte do ativismo lacrador vive de gritar “opressão!” nos amplos espaços conquistados na mídia de massa. A empresa obviamente só está fazendo isso pelo valor que pode agregar na marca, mas o faz em momento muito conveniente: o brasileiro médio estava começando a repetir o discurso de ativistas americanos sobre a questão de racismo reverso. Essa foi a isca perfeita.

Ao entrar com a ação, fez com que diversas pessoas sedentas pela chance de explicar a ideia de que negros não podem ser racistas com brancos começassem a berrar a ideia por aí. Sally aponta com razão a falha da defensoria de manter sua identidade, mas eu vou além: foi algo tão desastrado que espalhou o vírus do intereseccionalismo para muito mais gente. E num país conhecido por ter um povo que agarra com unhas e dentes qualquer chance de levar vantagem sobre o outro.

Diga para uma população enorme de negros e pardos brasileiros que eles têm a oportunidade de discriminar pessoas de outras cores e eles vão amar a ideia. Ainda mais com chancela legal e defesa da ideia por formadores de opinião, especialmente na grande mídia. A caixa de Pandora foi aberta: a ideia chegou no povão e quem a abriu foi a defensoria. Pode demorar um pouco para você ver isso na prática, mas é tão “vantajoso” que o brasileiro com certeza vai adotar assim que ouvir pela primeira vez.

Quer dizer que os brancos estão perdidos? Não. Se eu estivesse só preocupado com a parte que me cabe nessa história, sequer estaria escrevendo sobre o tema. Enquanto não estivermos sob uma ditadura comunista ou algo do tipo, sua capacidade pessoal ainda vai ser um dos fatores mais determinantes para uma vida de sucesso. Meu medo não é dar “muito poder para os negros”, na verdade, é a constatação que se o caminho da justiça social continuar sendo essa maluquice de reescrever significados de palavras e “cancelar” quem não defende que tudo na vida é uma questão de opressão (o que é basicamente a interseccionalidade), estamos na verdade jogando fora os avanços conquistados a ferro e fogo no século XX e voltando para um mundo segregado de povos extremamente racistas, mesmo que alguns achem que não podem ser racistas nem se quiserem.

Eu detesto ver regressão na humanidade. Constituições que definem logo no começo a função do Estado de garantir que não haja discriminação são uma conquista gigantesca da humanidade. É parte do caminho mais eficiente rumo a uma sociedade menos dividida, mais equilibrada e mais segura para todos. Jogar tudo para o alto porque está “demorando demais” é um passaporte carimbado para o fracasso. Nunca funcionou na história, é por isso que eu chamo essa mentalidade de maluquice: fazer as mesmas coisas esperando resultados diferentes.

Justiça social é um processo irritantemente lento, eu sei. Podemos tentar alguns atalhos aqui e ali, desde que a ideia geral se mantenha sólida. Quando a proposta toda é um grande atalho, como a ideia de fingir que racismo não existe mais de acordo com a raça discriminada, vai se tornando cada vez mais difícil manter o curso estabelecido depois do trauma gigantesco gerado pelo nazismo na primeira metade do século passado. As leis com as quais os lacradores limpam a bunda hoje foram influenciadas por quem viu na prática os horrores de decidir que um grupo de pessoas é culpado por todos os problemas de uma sociedade e decidiu que nunca mais poderíamos ser assim.

Infelizmente, a memória do ser humano é curta. Discriminação gera discriminação, e não vai ser uma teoria estúpida como a da inexistência do racismo reverso que vai segurar o ser humano médio quando a situação começar a ficar mais e mais violenta. Mas, como o “marketing de lacração” ainda dá dinheiro, passa por cima do bom senso de muita gente. Tem que saber fazer o contraponto, não basta agir como a defensoria pública agiu: era óbvio que usariam isso para espalhar ainda mais a mensagem de divisão racial, e como a maioria das pessoas vivas hoje em dia não tem memórias reais ou estudo sobre um mundo oficialmente racista, não percebem o buraco onde estão se enfiando.

Para dizer que isso é fragilidade branca, para dizer que entender o significado de palavras é um privilégio, ou mesmo para dizer que o precedente está aberto e não tem mais volta: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Olhando melhor esse Banner do programa de Trainne, achei que a moça está com uma cara de sofrência. Talvez trabalhar no Magalu dê essa cara de sofrência nos funcioários, melhor não.

  • Eu-sou-uma-minoria

    Um-defensor-público-que-fala-ABERTAMENTE-que-isso-é-”marketing-de-lacração”-não-parece-ser-do-tipo-que-defende-”minorias’-querida-$ally…

  • Xoxota com carninha pendurada do lado de fora

    Já que estamos falando da área jurídica, jurei que o absolvimento do estuprador da Mari Ferrer seria desfavor da semana e nem teve destaque aqui no Blog. Qual sua opinião Sally?

  • Enquanto isso, o Magazine Luiza continua na vibe Natura só faturando as custas do factoide tirando vantagem dos lacradores. Se eventualmente o juiz der ganho de causa, vai ser mais uma rolada até o STF e daí a se ver o dinheiro, mas outro tanto de tempo.
    Esses 10 milhões não são muito mais do que o que se gasta em algum tempo de contratos publicitários.

  • Existem tantos pontos a serem comentados no caso da Magazine Luiza que eu nem sem por onde começar, vamos por partes..
    1. Primeiro de tudo é necessário saber o que é racismo: discriminação de uma coletividade por conta da cor. Seguindo essa lógica, se um grupo não pôde participar da seleção em função da cor, a empresa cometeu crime de racismo. Logo, essa história de que racismo reverso não existe é mera ilusão, só serve para silenciar aqueles que não possuem a pele escura.
    2. Injúria racial é o crime cometido contra uma pessoa em particular por conta da pele ou aspectos fenotípicos de uma determinada etnia, pode ser cometido contra qualquer um. Branco azedo, macaco, loira burra, água de salsicha, qualquer insulto desse tipo, quando dirigido a um indivíduo, pode ser caracterizado como injúria racial.
    3. A Magazine Luiza viu nesse lacre uma oportunidade de ganhar: fama, lucro, entrar nos trends. Falem bem ou falem mal, mas falem de mim.
    4. A Ação Civil Pública pode ser proposta pelo Ministério Público, pela defensoria, pelos entes da federação, etc, e é usada para proteger direito difuso ou coletivo (CF. Art. 129, III). Assim, o defensor era a defensoria era um dos legitimados a propor a ACP, porém concordo com a Sally que seria melhor se a iniciativa tivesse partido do MP.
    5. O sonho do oprimido é ser opressor. É esperar para ver a escalada que essas condutas terão. Infelizmente, prevejo um país destinado a ser como os EUA nesse sentido.

  • Algumas pessoas dizem (por puro coping) que “as empresas vão se prejudicar, estão contratando pessoas incompetentes por causa da cor/sexualidade”. Embora eu ache ridículo e uma manobra de puro marketing, creio que não vai ter um “backfire” nesse sentido. Queira ou não as minorias vão se inscrever e, como qualquer processo seletivo, serão selecionados os mais competentes. Nem toda minoria é esse estereótipo de descompensado mental. Além disso, 99% das rotinas de uma empresa qualquer criatura minimamente funcional pode executar. A maioria dos empregos hoje em dia é puro faz-de-conta, o livro Bullshit Jobs desenvolve bem isso.

  • Fazendo isso eles meio que admitem que, num processo normal com pessoas de todos os tipos, preferem contratar brancos, não?

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