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Liberdade em termos.

Liberdade em termos.

| Somir | | 12 comentários em Liberdade em termos.

Trump foi banido do Twitter. As redes sociais mais famosas fecharam o cerco contra a “direita” americana, e as alternativas correm um sério risco de ficarem sem infraestrutura. Um grupo cada vez maior de justiceiros virtuais está caçando todo mundo relacionado com a invasão do Capitólio semana passada… e muita gente está comemorando como se finalmente estivéssemos colocando ordem no mundo de novo. Será?

Regra de ouro do jornalismo: a resposta de toda manchete que termina em interrogação é sempre “não”. Não é muito diferente na introdução de um texto de opinião: evidente que eu vou dizer que não, esse surto de repressão ao discurso conspiratório de uma parte da direita (americana ou brasileira, ultimamente não faz muita diferença) não significa que o mundo esteja corrigindo um problema, mas chegar até essa conclusão é muito mais complicado do que só defender liberdade de expressão.

Até porque em tempos de polarização, liberdade de expressão é um meio, não um fim. Em ambos os lados do espectro político existe uma tendência ao autoritarismo, gente que acredita tanto na sua visão de mundo que está disposta a usar a força para garantir que outros ajam de acordo. Não importa se você pegar o caminho da direita ou da esquerda, os caminhos se encontram numa ditadura. Claro, existem os caminhos anárquicos, mas não é surpresa que nenhum desses grupos consiga se unir o suficiente para ser uma força real na sociedade…

Ficamos então com dois grandes grupos de pessoas interessadas em instalar um governo forte e fazer de suas convicções leis inescapáveis. Mais do que ter a voz dominante, querem ter a única voz. Só que isso não acontece da noite para o dia: existe um longo caminho até conquistar o poder necessário para censurar a maioria das vozes dissidentes. Se já era complicado antes da internet, ficou muito pior depois. Ambos os lados têm um desafio monumental pela frente.

E para conquistá-lo, precisam de liberdade de expressão. Não para sempre, mas pelo menos durante a fase de consolidação de poder. Se você não consegue colocar sua ideologia no mundo, não vai conquistar aliados. Da mesma forma que a esquerda se beneficiou imensamente da liberdade concedida após a queda da União Soviética para emplacar suas agendas, especialmente as comportamentais, a direita soube contra-atacar com uma forte presença online na última década.

E aqui, um ponto de vista que talvez incomode nossos leitores mais alinhados à direita: a liberdade de expressão concedida à esquerda – especialmente nos anos 90 – foi algo benéfico para a humanidade. O medo do comunismo durante o pós-guerra travou muitas das discussões sobre liberdades pessoais que deveriam ter vindo logo após a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Era para ser o marco da humanidade moderna. A ideia do ser humano médio ter direitos inatos era uma novidade das grandes.

Mas, de ambos os lados da cortina de ferro, o incentivo era para manter um certo conservadorismo comportamental, para não dar munição para a propaganda capitalista ou comunista. Ninguém queria ser visto como fraco ou decadente. Só quem já tinha alguma consciência do mundo nos anos 90 sabe como as coisas avançaram rápido: em menos de uma década, misoginia, homofobia, racismo e até mesmo ambientalismo realmente se desenvolveram como temas dignos de discussão social. Nos anos 80, era tudo mato ainda.

E isso foi muito por causa da redução da pressão sobre a esquerda: não era mais o lado da repressão, e sim da liberdade. A direita, que tinha o monopólio das liberdades pessoais durante muitas décadas pelo simples fato de não serem comunistas, começou a ficar para trás. Essa primeira onda real de liberdade de expressão fez com que ambos os lados políticos saíssem da zona de conforto e permitiu uma série de avanços que a humanidade estava devendo faz tempo dentro dessa nova ética pós Direitos Humanos.

Não sei se você lembra, mas não tinha direita “viável” até pouco tempo atrás nessas últimas décadas. Tínhamos capitalismo e comunismo, direita e esquerda essencialmente econômicas. A parte comportamental era basicamente centro ou centro-esquerda para os dois lados. O Brexit, em 2015, foi o primeiro movimento sério de um mundo que começava a reagir contra essas décadas de liberdade de expressão da esquerda. Depois disso, tivemos Trump, Bolsonaro… era a fadiga do discurso vigente.

E como eu dizia antes no texto, esquerda e direita se encontram no autoritarismo. O centro começou a mudar cada vez mais para a esquerda no campo dos costumes, muito mais rápido para as elites do que para o povão, que não gostou nem um pouco disso e começou a dar mais poder para a direita nessa área comportamental. Para cada líder “empoderade transbinárix”, um crente e/ou conspirador raivoso para compensar. E cada vez mais agressivos sobre seus pontos de vista. Não era mais uma batalha pela alma das nações, era uma batalha pela dominância de corpos e mentes.

Você vai ver muita gente da esquerda e da direita vivendo uma relação de amor e ódio com a liberdade de expressão atualmente. Querem liberdade de falar tudo o que quiserem e a censura total do que não quiserem ouvir. Não que o ser humano tenha mudado para ficar imbecil assim agora, mas os tempos modernos explicitam muito mais essa compreensão torta sobre o significado de liberdade de expressão.

Liberdade de expressão é meio para esse gente. Meio de conseguir apoiadores o suficiente para acabar com a liberdade de expressão dos adversários. Pode até parecer que hoje em dia é a direita que está lutando com mais afinco pelo conceito, mas é apenas uma ilusão causada pelo momento: quem está mais fraco quer liberdade para conquistar o poder, quem está mais forte quer controle para manter o poder. O mesmo grupo de pessoas que reclama do Trump ser censurado provavelmente agiria da mesma forma contra seus adversários assim que tivesse o poder.

É muito por isso que não devemos misturar orientações políticas com a ideia de liberdade de expressão, ela é inimiga de quem estiver no poder. Sei que já escrevi isso várias vezes, mas é bom repetir de tempos em tempos: liberdade de expressão verdadeira não agrada ninguém. Muito pelo contrário, a única forma de garantir que as pessoas tenham direitos iguais nessa área é deixar todo mundo incomodado ao mesmo tempo.

Desconfie demais de defesa de liberdade de expressão que não venha de um centrista ou libertário (pessoas mais alinhadas com o anarquismo). É só uma ponte temporária até o objetivo final de autoritarismo que vemos, explícito na direita e nas entrelinhas da esquerda. Quem acredita em mundo perfeito não pode conceber a ideia de liberdade de expressão verdadeira.

Eu adoraria que os conspiradores e negadores da ciência calassem a boca, de verdade. Mas infelizmente eles fazem parte do pacote da humanidade real. Muito embora eu até concorde com algumas dessas censuras aplicadas pelas gigantes de tecnologia contra esse lado maluco da direita, não me parece que seja uma correção de curso da humanidade, e sim parte de um processo de controle da informação.

Porque junto com quem argumenta que as torres do 5G são ferramentas de controle mental, atacam junto quem diz que tem algo de estranho em deixar crianças e pré-adolescentes trocarem de sexo. Até aqui, tratavam direita conspiratória e centrismo comportamental da mesma forma: com alguma agressividade, mas com a presunção de liberdade de argumento. O que será que acontece quando se abre as porteiras para a censura da direita conspiratória? É para confiar que vão ficar só na turma do QAnon ou será que vai entrar mais coisa no pacote?

Pode ser que tenha calhado de gente realmente maluca que pode se organizar para atacar a democracia tenha caído dentro do grupo que a esquerda comportamental (que é muito representada nas gigantes de tecnologia) não julga digna de liberdade de expressão. Não seria algo focado só nesses grupos extremistas de verdade, seria o primeiro passo para reduzir liberdade de expressão em geral para os dissidentes do que se considera politicamente correto. O que, infelizmente nos dias atuais, não é mais garantia de ser cientificamente correto, especialmente quando falamos de teoria crítica interpretada por gente que faz de política sua religião.

Não se enganem, prefiro mil vezes estar num mundo onde o cristianismo, islamismo e outras doenças mentais (termina em ismo, não?) não sejam base do funcionamento da sociedade. O conservador médio vai odiar 90% das minhas visões de mundo. Mas isso não quer dizer que eu vou tolerar autoritarismo, mesmo que só discorde de mim 10% das vezes. A onda de censura e controle da internet que começa a se instalar agora pode até parecer uma correção de exageros das últimas décadas, mas o viés político não pode ser ignorado.

Assim como eu teria medo se o Bolsonaro resolvesse usar o poder do Estado para calar os lacradores, eu tenho medo dos lacradores usarem o poder privado das gigantes de tecnologia para calar o Bolsonaro, por exemplo. Não por simpatias e antipatias pontuais pelo o que ambos os lados dizem, mas porque é complicado não ver a relativização de liberdade de expressão que fatalmente está no caminho de uma sociedade cada vez mais autoritária. Não tem muito centrista ou libertário em posições de poder atualmente, porque eles não andam representando muito da nossa população. E esse é o perigo.

Quando encontrar aquele amigo isentão ou mesmo o rebelde sem causa, tenta não forçar sua opinião política para cima dele. São essas as pessoas que vão te salvar do “inimigo” assumir o poder e acabar com suas liberdades. Liberdade de expressão não pode ser meio de acabar com a liberdade de expressão do outro, e só quem não está totalmente investido num projeto de poder ideológico que pode ser guardião dela.

Os radicais são parte do mundo, podem até ser úteis eventualmente, mas se eles forem a maioria, a gente nunca vai sair do lugar.

Para dizer que aqui no Desfavor não tem liberdade de expressão (pode entrar qualquer pessoa na sua casa?), para dizer que centrista é só uma pessoa confusa, ou mesmo para dizer que o Trump já tinha perdido a graça mesmo: somir@desfavor.com


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