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Tragédia anunciada.

Tragédia anunciada.

| Desfavor | | 20 comentários em Tragédia anunciada.

Continuamos quebrando tradições: normalmente o Desfavor da Semana cobre um tema que já aconteceu, mas dessa vez vamos colocar o foco no futuro. Sem medidas duras o suficiente para cancelar o feriado e coibir a circulação de pessoas, é certeza que vamos ver o brasileiro aprontando nesse Carnaval. Desfavor da Semana.

SALLY

Vocês não têm ideia de quantos temas bons a gente deixou passar para esta coluna pois eram eventos que estavam prestes a acontecer e, portanto, eram incertos. Vai que a coisa não acontecia ou acontecia de forma diferente do que a gente imaginava… já pensou que pisada de bola?

Pois bem, hoje, pela primeira vez, o Desfavor da Semana vai ser um evento futuro, só que nós temos certeza absoluta de que ele vai acontecer, e esse é justamente o Desfavor da Semana: ter a certeza absoluta de que o brasileiro vai fazer merda sobre um assunto importante, sério e grave.

O brasileiro não vai se comportar no carnaval. Vai ter aglomeração, vai ter bloquinho de rua, vai ter praia lotada, vai ter todo tipo de situação que majore o contágio de covid, que já está bastante alto no país. É muito triste que tenhamos certeza absoluta de que isso vai acontecer, pois além de ferrar com um país já em calamidade (falta leito, falta oxigênio, falta vacina), ainda prejudica o mundo todo.

Quanto mais contágios, mais chances do vírus sofrer mutações. Eu sei que a preocupação de todos é uma mutação que venha a interferir nas vacinas, mas a essa altura do campeonato eu já acho que isso seria o castigo básico pelo que estão fazendo. O problema de verdade virá se o vírus mutar de forma a ficar mais letal. Se um vírus com 1% de letalidade já está fazendo esse estrago, imaginem o que acontece se isso aumentar.

Quando o brasileiro não tinha noção de coletividade botando música alta e impedindo um vizinho com um bebê pequeno de dormir era uma coisa, o que vemos agora é uma falta de noção de coletividade que coloca o mundo todo em risco. Uma hora alguém vai cansar, uma hora alguém vai tomar uma atitude drástica. Um país está colocando em risco a vida, a economia e a saúde de outros 190 países, tem como isso acabar bem?

Não importa o quanto milhões de vozes se esforcem para tentar avisar quão grave é a situação, é fato que o brasileiro não vai abrir mão de um prazer vulgar, temporário e vazio em nome do bem-estar de uma humanidade que cruza uma pandemia. Passou dos limites. Passou dos limites do aceitável. Arriscar mais colapso no sistema de saúde, mais mortes e mais mutações do vírus difíceis de conter para pular carnaval?

É o cúmulo do egoísmo, da futilidade, da falta de senso de sacrifício. Cientistas do mundo todo se matando para tentar desenvolver vacinas, profissionais da saúde exaustos, adoecendo e morrendo na tentativa de salvar vidas, países inteiros arrebentando suas economias em lockdown para tentar evitar ainda mais mortes e o brasileiro pulando carnaval.

Brasileiro pulando carnaval enquanto o resto do mundo se sacrifica para conter uma pandemia que já matou milhões de pessoas é apenas um exemplo entre muitos da mentalidade do povo. Quando acontece algo que precisa da união de todos, de sacrifício, de esforço, o Brasil caga no pau.

Não há esperanças de que o brasileiro não faça merda neste carnaval. Não há esperanças de uma conduta melhor. Não há esperanças de aprendizado mesmo depois de tantos mortos, do colapso no sistema de saúde, da tragédia humanitária e da nova variante mais contagiosa chegando.

Não importa o que aconteça, o brasileiro não aprende a lição. E, quando não se aprende uma lição, a tendência é que aconteçam coisas cada vez mais duras para que essa lição seja aprendida. Vem mais aprendizado hard por aí.

É ruim para o mundo ter um país de dimensões continentais jogando contra, é ruim para o Brasil ter que suportar consequências cada vez piores da própria irresponsabilidade. É o tipo de situação que é uma panela de pressão: há um limite para o quão irresponsável se pode ser antes de acontecer algo de proporções catastróficas. E o Brasil está flertando de perto com esse limite.

Uma panela de pressão não fica muito tempo fechada, em algum momento ela explode. Em algum momento a explosão (de uma forma, ou de outra) vai chegar no Brasil. Não dá para passar mais de um ano se portando de forma irresponsável com uma pandemia e esperar que tudo fique como está, que tudo continue sendo empurrado com a barriga. Não dá. Vai explodir. E periga queimar o mundo todo.

Essa pandemia só trouxe à tona a descrença, a desesperança e a falta de confiança que o brasileiro desperta. O brasileiro está sendo obrigado a se olhar no espelho sem maquiagem. O brasileiro está sendo visto pelo mundo todo sem maquiagem: um povo que, diante do esforço e da morte de milhões para salvar a humanidade, joga contra para poder ir pular carnaval, encher a cara e dar uns beijos na boca. Se você não sente vergonha no Brasil, você é parte do problema.

Quando se chega ao ponto de ter certeza absoluta de que o brasileiro vai jogar contra o resto da humanidade em troca de batuque, cerveja e bunda, fica difícil continuar maquiando o brasileiro como povo alegre e festivo. A máscara cai e passamos a ver claramente um povo egoísta e irresponsável. Não tem mais como dourar a pílula, não tem qualquer chance desse país dar certo e agora o mundo sabe a verdade sobre o Brasil – e vai se portar conforme ela.

Então, este texto é para te dizer que quando a coisa chega nesse ponto, não há mais espaço para inércia: continuar fazendo as mesmas coisas vai trazer resultados novos cada vez piores. Não fazer nada vai continuar trazendo resultados novos, cada vez piores. Empurrar com a barriga ou contar com a sorte vai trazer resultados novos cada vez piores.

Um povo que topa aumentar o número de mortos, em seu país e no resto do mundo, em troca de batuque, cerveja e bunda não vai colher coisas boas. Quem puder sair do país, saia. Essa conta vai ser cara de pagar.

Para dizer que não vai ter carnaval, para dizer que vai ter carnaval mas não vai aumentar o número de mortes ou ainda para dizer que só agora percebeu que o brasileiro é um grande Alicate: sally@desfavor.com

SOMIR

Você sabe que está diante de um desafio quando nem a Igreja Católica tem coragem de encará-lo. O Carnaval foi adaptado de festas de outras religiões mais antigas, o que já seria um segredinho sujo para os cristãos; mas no Brasil a coisa desandou de vez, com o festival de baixaria com o qual nos acostumamos aqui bem próximo de uma boa e velha orgia da antiguidade. A igreja acabou tolerando, afinal, não adiantava teimar demais contra a vontade do povo.

A festa foi se tornando progressivamente mais hedonista, e mesmo com o crescimento das religiões evangélicas, em tese mais fundamentalistas, o Carnaval não pode ser derrotado. Começo meu texto com esse ângulo para demonstrar um pouco de solidariedade com as autoridades brasileiras: não é algo simples como mandar oxigênio para um estado cuja maior empresa de produção de oxigênio avisou que ia faltar com várias semanas de antecedência. Não, no caso do Carnaval, eu estou disposto a aceitar que realmente era uma tarefa complexa mesmo. Nem ameaçando esse povo de queimar no fogo do inferno pela eternidade conseguem segurar o Carnaval.

Claro, não é muita solidariedade: dificuldade não é desculpa para deixar de fazer algo. Embora tenham-se tomado medidas para tirar a chancela pública das comemorações, sabemos que leis no Brasil “pegam ou não” de acordo com o grau de repressão aplicado pelo Estado. Vamos ver algumas festas canceladas, mas é certeza que não vão ser o número suficiente para deixar as pessoas com medo de começá-las. Vamos ver alguns blocos desafiando as medidas de segurança e pouca polícia para controlá-los.

E ainda mais considerando que todo mundo sabe que se fosse só pelo presidente o Carnaval estaria correndo solto, fica um pouco mais fácil se rebelar contra governos locais. Se a turma da conspiração chinesa e da cloroquina estão em cargos altos do governo, não é mais uma posição impensável de defender, não? Então, sim, existe um componente de culpa do Estado brasileiro nisso tudo que não pode ser ignorado.

Mas, como a religião cristã descobriu na prática, não tem muita coisa a se dizer para impedir que essa gente vá encher a cara e fazer sexo nas ruas durante o Carnaval. A pandemia vai conseguir segurar muita gente em casa, nem tanto por responsabilidade, mas porque exige mais organização para criar ou encontrar uma aglomeração. Mas não vai segurar gente o suficiente para evitar um provável aumento no número de casos daqui há algumas semanas.

Pelo o que vimos até aqui, não dava nem para impedir que o brasileiro médio frequentasse a festa do final de semana no auge do medo da pandemia, o que dizer agora que a festa mais tradicional do país acontece e boa parte das pessoas já se acostumou com o coronavírus? Não se acostumou a vencer a doença, se acostumou a pagar o preço em mortes por elas, para deixar mais claro. E ainda tem a vacina para gerar uma ilusão de proteção.

O desfavor dessa vez é a constatação que não dá para depender desse povo para agir em prol do bem comum. Vão te vender pelo preço mais barato assim que puderem. Se isso fosse uma guerra tradicional, o país já teria caído com 90% da população virando colaboradora do exército inimigo. E o curioso é que o brasileiro nem é um povo frio e insensível: quando vê alguém passando sufoco, é relativamente comum que ajude. Que chore pela desgraça alheia, que faça esforços incríveis para ajudar. Tem muito povo por aí que não tem uma fração dessa passionalidade na hora de salvar o outro do perigo ou do abandono.

Mas desde que seja algo que caiba na sua visão de curtíssimo prazo. Pular carnaval na segunda e na terça feira não mata ninguém na segunda e na terça feira. Por isso não tem problema. Na verdade, é nisso que estamos amarrados aqui. Quando não há uma consequência imediata para a ação, o brasileiro se torna um monstro. E mesmo que a informação da consequência da ação já exista e seja muito bem difundida, parece que simplesmente não consegue se fixar na mente das pessoas.

Ela só lembra disso quando é tarde demais e a merda já está feita. Eu não acho que seja possível ter uma mutação genética nesse povo em meros 500 anos, ainda mais considerando o tanto de imigração que precisou para compor a população, mas algo influencia essa visão limitada de consequências dos seus atos. Enxergar longe, mesmo que estejamos falar de duas ou três semanas, parece fora das capacidades médias da população.

Eu realmente acredito que se você disser para esse povo que vai se aglomerar no Carnaval que fazer isso vai matar mil pessoas amanhã, eles ficariam preocupados e tentariam se organizar de alguma forma a reduzir o impacto. Mas, dizer que no mês seguinte a pandemia vai piorar? Parece que mês que vem e um bilhão de anos no futuro dá no mesmo. Não sei se é um mecanismo de defesa da mente de quem vive preocupado com a próxima refeição, talvez seja uma forma “estável” de funcionar num país desigual.

Quem consegue enxergar um pouco mais longe e se preocupar agora com o que vai acontecer no futuro tem que ver, impotente, essa massa de gente que não é necessariamente ruim agir de forma muito ruim sem poder fazer muito para impedir. O Brasil desanima quem olha para frente. Existe um risco razoável do vírus continuar evoluindo por aqui até o ponto de burlar as vacinas. Quem está vendo isso está preocupado. Quem deveria ver isso para tomar medidas mais severas só se preocupa com a próxima eleição.

E quem precisa aprender a enxergar essas coisas está procurando onde passar o Carnaval sem ser incomodado pela polícia…

Para dizer que cansou desse tema (todo mundo cansou), para dizer que prefere a minha versão Alborghetti, ou mesmo para dizer que o mundo acaba em Carnaval: somir@desfavor.com


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