Covid e Castigo.

O brasileiro não respeita as regras mais básicas de combate à pandemia, e a punição… bom, ela não existe. Sally e Somir concordam que do jeito que está não dá, mas não na forma de lidar com o problema. Os impopulares pensam num castigo.

Tema de hoje: qual seria a melhor forma de punição (no Brasil) para quem desrespeita as normas contra a Covid?

SOMIR

Multa. Uma das poucas coisas que o Brasil ainda consegue fazer é arrancar dinheiro dos seus cidadãos, então vamos nos concentrar nisso. É claro que eu gosto de ideias mais didáticas e “poéticas” para punir esse povo sem noção, mas há pouca ou nenhuma organização para tornar isso realidade. Até para punir precisa de competência, e como vemos no Brasil, o melhor que conseguiram fazer foi perder as cadeias para facções criminosas.

Já a simples cobrança financeira ainda funciona. Nem sempre, mas considerando a indústria de multas que sustenta boa parte do serviço público tupiniquim, eu diria que o bastante. Não podemos esquecer que o brasileiro médio pode até querer ser esperto, mas normalmente não o é.

A parcela mais pobre e ignorante da população costuma ter bastante medo de tudo o que é oficial. Pudera: o Estado só aparece para cobrar na vida deles. Morrem de medo de tomar processo porque não conseguem entender nada do que está acontecendo. É horrível, eu sei, mas é uma das poucas coisas protegendo a sociedade toda de anarquia absoluta.

A classe média está sempre sob o risco de perder esse pequeno status, e normalmente é a que mais paga imposto proporcionalmente. Quando você escapa da precariedade, mesmo que um pouco, começam a te cobrar por basicamente tudo o que você faz. E esse povo paga muito para o Estado.

Quem normalmente ri de multas são os ricos. Ou porque são fáceis de pagar, ou porque tem os recursos necessários para escapar delas. Injusto, claro, mas é importante ressaltar que essa é uma minúscula parcela da população. Quem está na classe média (provavelmente a maioria dos leitores do Desfavor) tem uma exposição maior a essa parte da população, por isso acha que existem mais do que realmente é o caso. É um país muito desigual, quase todo mundo pertence ao grupo dos pobres.

Então, quando eu falo de multar quem não respeita as regras de proteção contra a Covid, eu falo de apontar para a maioria quase que absoluta dos pobres e da classe média, é complicado punir rico em qualquer país do mundo. Países mais organizados conseguem fazer isso com mais frequência, mas eu tenho certeza que se você conversar com pessoas de qualquer país do mundo, vão te dizer que ricos escapam de punição com muito mais frequência no lugar onde moram. É uma regra (podre) da humanidade.

Conhecendo o brasileiro médio, as multas não vão evitar que a pessoa faça a coisa errada, afinal, sensação de impunidade é parte integrante da experiência brasileira, mas quando a pessoa for pega, vai finalmente gerar uma consequência real. Aquela pessoa vai ser desencorajada a ficar bundeando pelas ruas, e vai acabar influenciando algumas pessoas ao seu redor. Quando você conhece alguém que pagou uma multa, multas parecem bem mais reais. Estaríamos trabalhando em duas frentes: quem viu gente morrendo de Covid e quem viu gente pagando a multa da Covid.

E novamente, considerando o Brasil, policiais e agentes públicos em geral funcionam bem melhor quando estão aplicando multas. Ou podem converter isso em propina, o que não é ideal, mas cria um custo para manter o comportamento errado do cidadão, ou podem estar pressionados por corruptos mais acima na cadeia de comando a sair canetando o máximo possível de pessoas. Já funciona na indústria das multas de trânsito, só estaríamos criando outra, a da pandemia.

O dinheiro mexe muito com o cidadão médio. Até mesmo uma multa leve pode começar a acumular para incomodar a pessoa, é menos dinheiro para a cervejinha. Reincidentes podem pagar mais e mais até ficar inviável sair de casa para espalhar o vírus. Estabelecimentos que se recusam a fechar podem virar alvos de agentes públicos, de forma legal ou ilegal, e perceberem que vale mais a pena não abrir as portas.

É feio? É muito feio. Mas estamos em guerra, e poucas coisas estão fora dos limites numa guerra. Usar a corrupção do sistema brasileiro contra o brasileiro é uma alternativa viável, até porque outras seriam basicamente impossíveis de aplicar na prática. Multas funcionam praticamente sozinhas, baseadas numa burocracia que já existe, e podem ir buscar dinheiro do cidadão mesmo que ele se esforce em escondê-lo do Estado.

Dizem que é fácil sonegar imposto e não pagar multas no Brasil, mas não dizem que você precisa ter estrutura para isso. Quem faz isso de qualquer jeito está apenas brincando com a sorte, torcendo para não virar alvo de alguém ganancioso. Grandes empresas e investidores sabem o caminho das pedras, e só sabem porque pagam altas somas para especialistas em esconder lucros e aproveitar falhas na legislação. Isso não está disponível para o cidadão médio tomando cerveja no bar durante a pandemia.

Precisamos ser realistas: umas das poucas vulnerabilidades dessa gente que se recusa a fazer o básico para conter a pandemia é o bolso. Algo que o Estado sabe fazer e que não precisa de muito esforço para se tornar prático. Se você fizer qualquer outra medida, precisaria de um mínimo de competência para realizar, e sabemos que isso está muito em falta nesse país. Sem um computador para fazer as contas e um incentivo de ganho pessoal de agentes públicos, quase nada funciona no Brasil.

Não adianta prender, primeiro porque teríamos que tornar o crime sério ao ponto de realmente virar tempo na cadeia (o que travaria todo o processo), e mesmo que fosse possível, só colocaria muita gente na mão das facções criminosas. Medida educativa? O Brasil nunca conseguiu fazer isso, transforma quase tudo em multa por total incapacidade de vigiar e acompanhar essas medidas. Não tem gente capaz o suficiente. Agora, arrancar dinheiro do cidadão? Isso ainda funciona! Basta observar a carga tributária imensa que pagamos.

Vai no bolso ou para de fingir que se importa.

Para dizer que já estamos aplicando pena de morte, para dizer que a solução é uma bomba atômica para recomeçar, ou mesmo para dizer que o problema sempre é ser pobre: somir@desfavor.com

SALLY

Qual seria atualmente (no Brasil) a melhor punição para quem desrespeita as normas contra covid?

Ser condenado a uma pena de prestação de serviços em UTIs dedicadas ao tratamento de pacientes com covid. Vendo a realidade horrorosa do que está acontecendo em hospitais, sentindo o medo e a exaustão dos médicos e vendo pacientes morrerem em sofrimento essas pessoas finalmente vão entender quão grave é a situação. E, mesmo que não entendam, ao menos ajudam os profissionais de saúde.

Já que não pode enfiar a porrada, como faz, por exemplo, a polícia indiana, submete a pessoa a uma tarefa extenuante que só é necessária graças a ela e a outras pessoas que, como ela, se comportaram de forma a propagar o vírus. É mais do que justo.

Não consigo vislumbrar outra punição possível. Prender não é opção pois aglomerar presos vai piorar ainda mais a pandemia. Multa não é opção pois não acontece nada com quem não paga multa no Brasil (não pode ser convertida em prisão), portanto, ninguém pagaria e ficaria tudo por isso mesmo.

E, mesmo que se tentasse cobrar uma multa tomando bens da pessoa, demoraria anos e o Estado provavelmente não conseguiria dar conta. Pobre não pagaria alegando ser pobre, rico pagaria rindo ou não pagaria rindo. Bater não pode, pois o Brasil se acha país de primeiro mundo e faz leis como se primeiro mundo fosse. Só resta colocar essas pessoas cara a cara com a realidade.

“Mas Sally, o Estado pode obrigar alguém a correr risco de vida?”. Olha, a partir do momento em que a pessoa desrespeita as normas de prevenção ao vírus, ela mesma optou por se colocar em risco e, o que é pior, colocar em risco outras pessoas. É apenas justo que um propagador da doença seja obrigado a reparar o mal que fez cuidando de quem adoece. Além disso, a pessoa receberia todos os equipamentos de proteção para trabalhar com doentes.

Infelizmente pessoas rudimentares precisam sentir na própria pele as consequências de seus atos para que compreendam o motivo de eventuais proibições. Não adianta conversar, explicar ou ameaçar. Quem desacredita da seriedade desta pandemia está fora do diálogo e qualquer outra punição seria munição para a pessoa ficar falando em “ditadura” e outros argumentos negacionistas.

Também seria uma forma de mitigar o problema com pessoal da saúde (que cada vez mais cai doente ou por exaustão) e de quebra conscientizar na marra quem acha que é exagero tomar tantas precauções com covid. Todo mundo sai ganhando: os pacientes terão mais pessoas para atendê-los, os profissionais de saúde terão mais ajuda e a sociedade receberá de volta um negacionista que foi ao inferno e voltou e não terá mais coragem de menosprezar o vírus.

“Mas Sally, pode essas pessoas sem formação em medicina cuidar de pacientes?”. Diretamente não, mas tem muitas tarefas que eles podem fazer dentro de uma UTI, supervisionados. Desde limpar o chão até ajudar a virar os pacientes na cama, o que não falta é coisa para fazer – e algumas bem desagradáveis. E, no meio dessas tarefas, será educativo ver criança, adolescente, bebê e jovens morrendo sufocados em extremo sofrimento, para acabar com esse discurso de que só morre gente jovem se tiver comorbidade.

Quanto mais tosca é a pessoa, melhor ela responde ao medo. Não é a forma ideal de aprendizado, mas não tem tempo nem condições de pensar no ideal agora. Não sei quantos de vocês já viram um ser humano morrendo, o exato momento que a vida deixa o corpo da pessoa, mas é uma cena impactante, é muito difícil ficar indiferente a isso. A pessoa que sairia dessa experiência com certeza não seria a mesma que entrou.

E, ainda que a pessoa fosse totalmente psicopata e não mudasse nada a sua forma de pensar, se ela voltasse a infringir as normas de prevenção ao contágio, poderia receber uma pena dobrada por reincidência, sendo obrigada a ficar o dobro de dias cuidando de doentes. Pior dos mundos o pessoal da saúde ganha uma mãozinha extra, que certamente seria muito bem-vinda.

Vai lá limpar bunda, trocar fralda cagada, limpar chão vomitado, lavar roupa de cama mijada e fazer tudo que o pessoal do hospital está de saco cheio de fazer. Fica à vontade para decidir se ir a barzinho “pela saúde mental” vale 30, 60, 90 dias limpando merda contaminada de doente. Vai lá colocar a vida em risco todo santo dia, passar 20 minutos vestindo EPI, mijando em fralda pois não tem outro EPI se descartar o que está usando para ir ao banheiro. Vai lá ver de perto as consequências do que a sua irresponsabilidade fez com o Brasil.

Vou além: a experiência deveria ser filmada, tipo um reality show, e todo dia ser exibida para quem quisesse ver. O malandrão que tava na praia, a bonitona que foi para academia, o sem noção que foi ao barzinho, chorando, desesperados, tendo que carregar corpo de pessoa morta no hospital. Seria muito didático, tanto para que faz, como para quem assiste.

A pena alternativa já é uma realidade no Brasil, inclusive a pena vinculada ao crime cometido: marido que espanca esposa por ela ter queimado o feijão pode ser condenado a cozinhar feijão por 6 meses. Está perfeitamente de acordo com a lei. Garanto que o número de pessoas bundeando na rua diminuiria, se não pela consciência do quão grave é a situação, pelo medo de ter que desempenhar tarefas difíceis e desagradáveis que levam a pessoa à exaustão.

Reflitam comigo: multa impede brasileiro de alguma coisa? Impede de fazer merda no trânsito? Impede de dar calote? Não. Não há mecanismo coercitivo para fazer valer o pagamento da multa. Fora a total impossibilidade de cobrar os pobres e desempregado e a arrogância dos ricos, que pagam qualquer multa rindo para fazer o que quiserem.

A solução é esse esquema de empatia forçada: obrigar a pessoa a ficar por semanas sentindo na pele o que passam os profissionais de saúde, vendo o que passam os doentes e com constante medo de morrer daquela forma sofrida. O constante medo de morrer se coçar o nariz e a máscara sair do lugar. Se tem solução melhor do que essa, por favor me digam nos comentários.

Para dizer que uma solução melhor seria uma bomba atômica, para dizer que porrada estaria de bom tamanho ou para perguntar como se obrigaria a pessoa a cumprir essa punição (condução coercitiva com auxílio de força policial): sally@desfavor.com

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Comments (14)

  • Das duas, considero a multa como sendo a única minimamente factível de se aplicar e cobrar. Além do mais, o cara que está tão focado no próprio umbigo a ponto de ir pra praia e festas pra fazer transfusão de secreções mesmo com a atual situação não vai se compadecer da situação dos médicos e das vítimas. Afinal, “cada cachorro que lamba a sua caceta”.

  • Multa não resolve, ainda é fácil falsificar comprovante de pagamento. Só apresentar e pronto, ninguém vai checar se foi pago mesmo. Seria mais educativo a prestação de serviço pra quem descumpre o isolamento e pros cloroquiners antivacina transmissores de fake news, que tb são responsáveis pela baixa adesão ao isolamento e medidas de prevenção. Apesar da falácia virtual negacionista, já teve assalto com roubo de vacinas em um posto de saúde em Natal, até os bandidos confiam mais na ciência do que o cidadão comum.

    • Conspiracionismo é um grande negócio tanto pra “esquerda” lulista/psolista quanto pra “direita” bolsonarista/olavista.

      O compromisso desse povo não é com os fatos e sim com a narrativa mais conveniente pra reforçar seu rebanho.

  • Malandro foge dos dois. Quando muito topa pagar a multa porque judicializar a questão muitas vezes não vale a pena, mas se tiver PISTOLÃO, pode usá-lo pra minar o parco controle colocado.

    • Só foge da punição judicial de prestação de serviços se fugir do país, caso contrário, vai policial na casa do vagabundo escoltar para cumprir a ordem.

      • Se tentassem aplicar tal pena, ia dar ruim. Logo ela teria processo até de inconstitucionalidade pesando contra e daí pra um retrocesso, pouco custa.

        O que funciona, e ainda assim com limitações, é o que o Somir colocou.

        • Essa pena é perfeitamente compatível com o sistema jurídico brasileiro e o STF tem simpatia zero pelo Bolsonaro, portanto, certamente a declarariam constitucional se isso fosse questionado.

    • A solução não está em político não. Não fiquem esperando que chegue alguém e resolva o problema, essa é a causa dos males do Brasil e dos brasileiros: esperar por um salvador.

      • Eu posso até estar enganado, mas acho que o Anônimo aí de cima estava sendo irônico, Sally. Imagino que seja por isso que ele usou aspas em “certo”. Também suponho que esse tal “político certo” seja alguém de esquerda e que conte com a benevolência da assim chamada “grande mídia”. Se esse “político certo” assumir no lugar do Bolsonaro, essa mesmíssima “grande mídia”, que agora bate sem parar no atual governo, muito provavelmente iria mudar de discurso e começar a passar pano mesmo se este atual descalabro que vivemos com pandemia de coronavírus continuar.

      • Ele quis dizer de outra coisa… Quis dizer que a questão pode no fim ficar abafada e deixar de ser assunto nas manchetes jornalísticas.
        Nada a ver com “salvador da pátria” e sim com o bom e velho fisiologismo político do “toma lá, dá cá”.
        E nessa toada, que se foda os milhares ou quiçá milhões de mortos que parecerem sem atendimento médico.

      • Bem por aí. Ano passado a mídia (tanto gringa como tupiniquim) fizeram um cataclisma sobre a gestão do Corona nos Estados Unidos. Biden assumiu, e não levou nem um mês pra eles mandarem um “a vacinação fez efeito” e não tocarem mais no assunto.

        Aqui vai ser a mesma coisa. É ganhar um Lula ou algum outro político que siga a tradição de manter os jornalistas no bolso e assim que ele subir a rampa do Palácio do Planalto o assunto vai passar de protagonista a figurante. E qualquer ingerência, culpa da crise financeira mundial.

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