Caminho das Índias.

A Índia registrou nesta quinta-feira (29) mais um recorde mundial de novos casos de Covid-19 — o sétimo nos últimos oito dias — e levou o mundo a passar pela primeira vez dos 900 mil infectados em 24 horas. Foram 379.308 novos casos no país e 904.893 no mundo, superando o recorde mundial anterior, de 899.755 infectados do dia 22. Os dados são do governo indiano e do “Our World in Data”, projeto ligado à Universidade de Oxford. LINK


Os olhos do mundo começam a se voltar para a Índia, mas pode ser tarde demais. Desfavor da Semana.

SALLY

Tenho duas notícias, uma boa e outra ruim. A boa é todas as bostas que o Brasil faça de agora em diante tem grandes chances de passar abaixo do radar. A ruim é que surgiu algo muito pior, mais perigoso e mais grave. Uma pandemia sem controle na Índia.

Daqui pra frente, será inevitável falar menos do Brasil. Já deixo um resuminho para vocês guardarem, estilo “cenas dos próximos capítulos”: a situação vai melhorar (não vai ficar boa, vai ficar menos merda), aí todo mundo vai relaxar achando, pela segunda vez, que o pior já passou e virá uma nova onda ainda pior, provavelmente no inverno. Esse é o ciclo: morre gente pacarai, fazem alguma coisa (menos que o necessário), melhora alguma coisa (menos que o necessário), todo mundo relaxa, morre gente pacarai.

Vamos falar de quem preocupa mais: a Índia. Eu nem vou entrar na questão humanitária, pois o que está acontecendo lá ultrapassa todos os limites de sofrimento humano que eu poderia cogitar. É apenas informação deprimente, sem qualquer utilidade a não ser entristecê-los e desesperá-los. Não precisamos dessa sobrecarga agora, precisamos? Não, não precisamos. Vamos falar do que pode ter alguma utilidade prática: como essa tsunami avassaladora que está varrendo a Índia pode afetar o Brasil e o mundo.

A primeira coisa que você precisa saber é que a situação na Índia ainda vai piorar muito. Mesmo que, por um passe de mágica, todos os indianos pudessem ficar trancados em suas casas, o mês de maio já tá pago – e a conta é absurdamente cara. Então, é provável que nas próximas semanas vejamos recordes de números de casos e mortes que façam o Brasil parecer a Suíça. Não é uma questão de “se” e sim uma questão de “quando”.

Isso afeta o Brasil e o mundo de várias formas. A que mais me preocupa é a criação da maldita variante que escape às vacinas. Isso significaria ter que revacinar toda ou boa parte do planeta, SE a nova variante não for letal o suficiente para matar boa parcela da população antes da nova vacina ficar pronta e ser distribuída.

Não é um cenário provável, mas é um cenário possível. Já temos variantes que escapam parcialmente de vacinas e já temos variantes que combinam aumento de transmissibilidade com aumento de letalidade, então, já está acontecendo em uma escala com a qual podemos lidar. Se acontecer em uma escala maior, não vai ser bonito.

Portanto, ainda que não seja algo provável, não me parece uma boa opção correr esse risco. Seria o momento do mundo fechar as fronteiras com a Índia, ou, da própria Índia, em um lapso de consciência, fechar suas fronteiras e impedir que as pessoas saiam de lá. E tem muita gente querendo sair, pois não tem mais hospital para atender as pessoas, nem mesmo na capital, nem mesmo se você for rico.

Mas, o que estamos vendo é países demorando para fechar as fronteiras com a Índia, inclusive os pamonhas da América Latina que estão se ferrando por este mesmo erro, tomados pela variante de Manaus por não ter fechado fronteiras com o Brasil. Ninguém aprendeu nada. Não sei se à data da publicação deste texto o Brasil estará com as fronteiras abertas, mas tudo me leva a pensar que sim.

Outro problema é que a Índia é um dos maiores fabricantes mundiais de medicamentos e vacinas (ela fabrica cerca de 60% das vacinas do mundo). Isso implica em um leque de danações que dá até tristeza começar a abrir. Como o país está um caos, obviamente todas as vacinas fabricadas serão destinadas a eles, atrasando a entrega de vacinas no mundo todo. Além disso, a capacidade de produção de vacinas está começando a ficar comprometida, considerando o alto número de pessoas doentes e mortas.

A Índia não tem condições de fazer lockdown. São muitas pessoas para fiscalizar, são muitas pessoas pobres que se não saírem de casa não comem, são muitas pessoas morando juntas em um mesmo ambiente (muitas vezes sem banheiro). Portanto, a principal medida emergencial para conter um surto não pode ser usada. Mesmo as outras, testes e rastreio de contatos, são difíceis de aplicar, considerando a pobreza local e a quantidade de habitantes.

Como se tudo isso não fosse suficiente, a Índia enfrenta um colapso funerário grave. O país não consegue lidar com seus mortos e eles estão sendo incinerados em pilhas, no meio das ruas. Daí para surgir algo mais grave, como uma contaminação dos lençóis freáticos ou coisa pior, é um pulo. E, a cereja no sundae é: o mundo compra muitos medicamentos deles, portanto, ao menos no que diz respeito à parte comercial, não vai dar para fechar as fronteiras 100%.

A Índia é a tempestade perfeita: muitos habitantes, muita pobreza, muita ignorância, muita religião. Se o Brasil fosse um incêndio em uma casa de dois quartos, a Índia seria uma fábrica de fogos de artifício pegando fogo. Por qual motivo vocês acham que países que, até agora, não se dignaram a ajudar ninguém, como os EUA, estão movendo céu e terra para mandar ajuda para a Índia? O mundo sabe que o país é um barril de pólvora no seu quintal.

Então, nada de relaxar pensando que “está longe” e “não vai chegar aqui”. Bastou um chinês infectado para a coisa se espalhar pelo mundo todo. Não é para perder noites de sono pensando no que pode acontecer, é para que, caso aconteça, vocês se encarreguem de redobrar o isolamento social que estão fazendo. Uma nova variante pode chegar da Índia para o Brasil em questão de horas. Basta um voo. Basta uma pessoa.

Se isso acontecer, nós vamos gritar alto, dar todos os avisos, falar exaustivamente sobre o assunto. Mas pode não dar tempo. O vírus é mais rápido que os humanos, demoramos para descobrir quando ele chega, demoramos para perceber quando ele muta. Por isso, estejam prontos. Pensem em plano B, C, D.

Comecem a se planejar para, se for necessário, reforçar os cuidados. Vão surgir variantes novas vindas da Índia, não é questão de “se”, é questão de “quando”. Vamos torcer para que não sejam variantes preocupantes, mas sempre preparados, caso sejam.

Fecho o texto com uma última ressalva: não acabou no Brasil. Não relaxem. Não se descuidem. Pode ser que falemos menos no Brasil a partir de agora, pois o epicentro da pandemia vai mudar de lugar, mas o fato de um coleguinha estar pior do que você não quer dizer que você esteja bem. O Brasil só tem 6% da população vacinada com duas doses, o que quer que chegue ao país, vai entrar rasgando.

Para dizer que está feliz pois agora vai ser a Índia a tomar uma bomba atômica, para perguntar ao Japão se ele quer mesmo fazer Olimpíadas ou ainda para dizer que preferia outro texto sobre notícias de cu: sally@desfavor.com

SOMIR

A Índia é uma versão hardcore do Brasil no quesito desigualdade. Não só porque os pobres de lá são ainda mais pobres, mas também porque o são em números absurdamente maiores. E as semelhanças continuam até mesmo no ambiente natural: clima, tipos de florestas, grandes rios… tudo misturado com desenvolvimento urbano descontrolado.

E como eu disse, versão hardcore: a parte rica da Índia também é muito rica. Em pouco tempo, saltou vários postos rumo às maiores economias do mundo, deixando o Brasil muito para trás. Mas o país também é assolado por governantes incompetentes e corrupção, afinal, tem muito mais gente para explorar.

Agora, misture as péssimas condições de vida para uma maioria da população com a sexta maior economia do mundo… você terá um ambiente fértil para cultivar e disseminar doenças. Não só temos inúmeras oportunidades de criar variações da Covid-19, como temos muita gente também com capacidade de sair dali infectada rumo ao resto do mundo.

Na agora quase maior população do mundo, a poucos milhões de ultrapassar a China, o vírus que tomou o resto do planeta de assalto vai ter sua melhor oportunidade até aqui. Os chineses controlaram a disseminação com duras atitudes que só foram possíveis pelo seu sistema ditatorial, o que não vai acontecer no vizinho.

No Brasil, passamos de 400.000 mortos porque lidamos com um desinteresse generalizado de evitar o pior, seja pelo governo federal que na melhor das hipóteses fez uma aposta absurda em imunidade de rebanho, seja pelo povo que decidiu que não frequentar festas era preço alto demais para pagar… o Brasil fez por onde criar o caos que vivemos. A Índia talvez não tenha sequer a escolha.

No país onde Peste Negra e Varíola ainda não estão realmente erradicadas, temos centenas de milhões de pessoas presas a um padrão de qualidade de vida e atendimento médico muito mais ancestral até mesmo do que em países pobres como os da América Latina. Mesmo com ampla ajuda internacional, pode ser que não consigam controlar uma explosão do número de casos que rivalize com o resto do mundo todo, combinado.

Se esse caldo de cultivo de vírus não render uma variante muito mais letal ou resistente às vacinas, pode ser que seja um problema local, mas a natureza sempre tenta. E com tanta gente economicamente dependente dos indianos, talvez essas tentativas sejam acompanhadas de viagens livres para o resto do planeta. Tudo o que temíamos no Brasil sobe a níveis muito maiores quando falamos de Índia. Brasileiro está proibido de entrar em quase todos os países do mundo, mas os indianos não. Cuidado.

E antes que venham nos falar sobre como o Brasil não foi tão mal assim em comparação, cabe lembrar que nossa população é 7 vezes menor e mesmo considerando o quanto não se registra oficialmente de mortos e casos, estamos mais ou menos equilibrados. O Brasil deixou de agir de forma minimamente aceitável por teimosia, burrice e corrupção em níveis que se fossem espelhados em países como a Índia, já teriam matado algumas milhões de pessoas em poucos meses.

Já tínhamos avisado sobre isso: que o país asiático tomaria as manchetes pelo seu potencial em números, e que muita gente usaria isso para diminuir o tamanho do fracasso brasileiro. Bom, está chegando a hora dessa previsão se concretizar. Estamos aqui avisando mais uma vez: se a Índia agir duas vezes melhor que o Brasil contra o coronavírus, ainda sim vai bater, e de longe, os nossos números.

Isso não significa que as coisas se normalizaram no Brasil. Isso não quer dizer que mil mortes por dia sejam um número aceitável só porque outro país tem cinco mil. Países com populações tão superlativas sempre estão no topo das estatísticas, seja lá quais forem, é inevitável. Se morrem cem pessoas por ano por contaminação por Césio 137 na China todo ano e 50 no Brasil, não é só porque o número é menor que podemos dizer que o Brasil não tem um problema sério com Césio 137, não? (Goiânia feelings)

Quem quiser te vender uma narrativa de “morra em nome do presidente” vai usar e abusar dos números indianos daqui pra frente. Mas os números indianos pouco dizem sobre as nossas mazelas, são situações bem diferentes, e até segunda ordem, mesmo igualando ou passando um pouco os nossos, eles estão indo sete vezes melhor. Não se esqueça disso.

Para dizer que sempre pode piorar, para dizer que sábado é o dia da depressão aqui, ou mesmo para dizer que se ignorou o que aconteceu no Brasil até aqui ignorar outro país é fácil fácil: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • “Mas, o que estamos vendo é países demorando para fechar as fronteiras com a Índia, inclusive os pamonhas da América Latina que estão se ferrando por este mesmo erro, tomados pela variante de Manaus por não ter fechado fronteiras com o Brasil”.

    Em 4 de abril, de um voo de Nova Delhi para Hong Kong, foram testados (pelo menos) 53 passageiros positivos para Covid-19, além de diversos outros relatos similares de diversos voos vindos de Mumbai. Resultado: em 21 de abril, foi decretada a proibição de voos vindos da India e Paquistão.

    Além de apresentar testes negativos para Covid-19, quem (eles ainda deixam) chegar lá deve submeter-se a um período obrigatório de três semanas de quarentena, o que permitiu a detecção desses passageiros indianos. Só assim para conter a covid-19, já que lá apenas 10% da população foi vacinada, mais ou menos como aqui…

  • Se morrem cem pessoas por ano por contaminação por Césio 137 na China todo ano e 50 no Brasil, não é só porque o número é menor que podemos dizer que o Brasil não tem um problema sério com Césio 137, não? (Goiânia feelings)

    Se o acidente com o césio 137 tivesse acontecido em 2020, ia ter gente criando a “cesioterapia”, um tratamento alternativo pra várias doenças, inclusive covid. Basta expor o paciente à luz azul terapêutica. E quem criticasse ou questionasse a eficácia seria agente da indústria farmacêutica malvada, que não quer que as pessoas se curem com um tratamento barato, acessível e eficaz, e por isso manda o governo proibir o acesso ao pó cinzento milagroso.

  • Pode colocar nessa conta, a chegada do verão no hemisfério norte. Acho muito difícil o europeu médio ter bom senso e ficar em casa no verão, eles não vão sossegar e, com isso, a possibilidade de disseminar o vírus pode tomar outras proporções, ainda mais levando-se em consideração uma possível variante indiana. Também não sei se os governantes europeus terão colhões para trancafiar a população em casa num dos períodos que a economia é mais movimentada, o povo vai chiar, vai dizer que estão limitando a liberdade, etc – prevejo!
    Posso dizer, com algum tipo de certeza e pedantismo que o que está acontecendo na Índia vai alcançar o mundo inteiro, é só esperarmos o fim do verão europeu (entre maio e setembro) para passarmos pela, sei lá, quarta onda de covid.

    Alguém sabe como os países da África estão lidando com o vírus?

  • Em breve, as notícias sobre a pandemia de Coronavírus vindas do Brasil já não vão alarmar tanto o mundo não porque as nossas “otoridades” enfim agiram de acordo com a gravidade do problema, mas porque a situação da Índia é ainda – muito – mais desesperadora. Que merda, hein?

  • Estava falando inclusive que se a história de que o COVID seria uma arma química fosse crível e a China utilizasse a mesma com tal objetivo, a tendência seria a mirar o Tibete, sendo que os principais países a entrarem na rota de contagio na sequência seriam o Nepal e a ÍNDIA.

  • Não se tem um minuto de paz.
    Brasil não fechou as fronteiras antes, agora ficou mais difícil já que dependemos da India para o IFA e remédios.
    Tenebrosas as cenas de cremação… parece cena de filme medieval. Mesmo cremado ainda pode afetar lençol freático? O fogo não mata tudo?

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