Skip to main content

Colunas

Variante local.

A humanidade está jogando um perigoso jogo de espera contra o coronavírus e suas variações. Especialmente os lugares mais assolados por desigualdade social. Sally e Somir discutem quais desses locais é mais perigoso, os impopulares tentam desenvolver seus anti… suas opiniões.

Tema de hoje: qual é o lugar mais provável de surgimento da variante do coronavírus que escapa às vacinas?

SOMIR

África. Sim, eu sei, África não é um país e apostar num continente todo parece meio bizarro (senão apelativo), mas eu tenho a nítida impressão que o mundo está mais uma vez esquecendo que ele existe, e como consequência disso, com a guarda muito mais baixa do que deveria.

O “continente negro”, apesar de berço da espécie, ainda sofre as consequências de ter sido um dos últimos lugares do planeta a escapar das garras da exploração europeia. Cabe lembrar que até a Segunda Guerra Mundial, virtualmente todo o continente estava sob controle de colonizadores, e nem tão pouco tempo atrás, a maioria do povo sequer era considerada humana pelos conquistadores.

O que obviamente deixa marcas: boa parte do pacote que consideramos básico para sociedades modernas (re)começou há pouco tempo por lá, e ainda por cima com o ônus de divisões nacionais pra lá de arbitrárias traçadas pelos exploradores antes de finalmente saírem. O próprio hábito de se referir ao continente como um todo ao invés de países específicos é prova de que o mundo ainda entende pouco das peculiaridades locais.

Até por isso por lá temos uma concentração absurda de tragédias humanitárias da metade do século passado pra cá: tudo o que pode fazer mal para a humanidade é potencializado na bagunça que os colonizadores deixaram para os locais. E um desses fatores com certeza são as doenças. Boa parte das doenças que consideramos erradicadas no resto do mundo ainda estão em algum canto do continente.

Justiça seja feita, na Índia também, mas normalmente temos mais informações sobre essa igualmente ex-colônia tornada independente na metade do século passado do que do conjunto de países muito mais abandonados à própria sorte no continente africano. Há uma diferença primordial na forma como os continentes se desenvolveram, e o quanto tiveram chances de se estabilizar desde então.

Prova disso é que o mundo começa a falar sobre os riscos envolvidos no espalhamento da Covid-19 no país asiático, mas até agora temos um quase apagão de informações sobre o caminho do vírus pela África. Tirando a África do Sul, que sempre recebeu um pouco mais de atenção que seus vizinhos, pouco se fala sobre a situação da doença na região.

E nesse pouco de atenção, já descobrimos a variante sul-africana. Isso foi o que conseguiram achar até agora. O que mais pode estar acontecendo por lá? A África é imensa, e mesmo que tenha menos infraestrutura de conexão entre seus países do que encontramos no resto do mundo, seu povo ainda sim se move o suficiente para espalhar um vírus tão contagioso. E aqui, o problema: se o último ano é demonstração do grau de interesse dispensado à evolução da Covid na África, podemos acreditar que há muito acontecendo naquele continente que não temos a menor ideia.

Como eu tenho certeza que a Sally vai argumentar, o povo africano está mais espalhado, mas isso não quer dizer que viva pouca gente por lá, e sim que o continente é gigantesco, fomos criados com mapas que escondem o tamanho real do que está mais próximo da linha do equador. A África, apesar de ter bolsões de civilização mais espalhados em seu superlativo território, ainda sim tem densidade populacional enorme neles.

Cidades grandes africanas são grandes de verdade. Muita gente amontoada em condições precárias, muitas das vezes ainda mais precárias que em outros locais pobres desse mundo. Cuidado para não achar que a África são aldeias no meio da savana: já temos muito da população em áreas urbanas, numa bomba relógio de contágio parecida com os países que achamos mais perigosos agora.

Mas é aí que se soma o baixo grau de atenção destinado ao continente pela comunidade internacional: é bem provável que demoremos muito mais tempo para perceber uma variação perigosa na África do que no resto do mundo. A já citada falta de infraestrutura significa que a vacinação por lá vai demorar muito mais que no resto do mundo, mesmo que as populações não sejam tão superlativas como na Índia.

Seja como for, o país asiático tem estrutura econômica e indústrias o suficiente para ser um dos maiores exportadores de matéria-prima para vacinas no mundo. Na África não temos nenhum país com a mesma capacidade. Isso quer dizer que em vários de seus países, não só as variações vão levar mais tempo para serem descobertas como também não vão ter sequer a vacina para se preocupar enquanto isso.

A história humana na África é a mais antiga de todas. Por lá, não existem mais animais “curiosos” com o ser humano, a nossa presença está tatuada em seus genes há milênios. Podemos dizer o mesmo sobre vírus e bactérias: em nenhum outro lugar do planeta tiveram tanto tempo para se adaptar a nós. Some-se a isso o baixo interesse no desenvolvimento local demonstrado por outros países e temos um combo assustador.

O perigo de variantes africanas é que só vamos ter real noção delas quando tiverem saído do continente. Quando for tarde demais. E como é um continente, fica muito mais complicado aplicar medidas restritivas: basta um governante maluco dentro dezenas para quebrar todo o planejamento. A Índia pode ser pressionada como um todo, a África não.

Por lá, dependemos da sorte mesmo. E a sorte não costuma ligar para o que queremos…

Para dizer que meu texto é preconceituoso, para dizer que a pior doença que a África espalhou foi o ser humano, ou mesmo para dizer que a variação vai sair da Noruega para trollar todo mundo: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é o lugar mais provável de surgimento da variante que vai ferrar com o mundo todo, que escapa às vacinas?

Índia é o combo ideal de aglomeração, ignorância e pobreza. Se o Brasil era um celeiro de variantes, a Índia é a fazenda toda.

Vamos começar por dados objetivos. A África tem 30.370.000 km2 de extensão, enquanto a Índia tem 3.278.000 km2 de extensão. Mesmo quem, assim como eu, é muito ruim de matemática, consegue perceber que o território do continente africano é muito maior do que o território da Índia, certo? Agora o dado final: tem mais gente na Índia do que na África. Vocês conseguem mensurar o grau de aglomeração?

África tem muito espaço e pouca gente. Índia tem muita gente e pouco espaço. Nessa altura você deve saber que o principal problema para a transmissão de covid é o amontoado de pessoas. Nessa altura você também deve saber que quanto mais transmissão, mais chances de surgir uma variante perigosa que ferre com toda a humanidade.

É só ligar as informações: Índia tem mais gente e menos espaço, portanto muito mais aglomeração, portanto, muito mais circulação do vírus, portanto, muito mais chances de ser o cenário dessa desgraça.

Some-se a isso o fato de que a Índia não tem sistema público de saúde e uma quantidade de médicos (0,78 médicos a cada mil pessoas) e leitor hospitalares (0,7 a cada mil habitantes) simplesmente ridícula quando comparado ao tamanho da população. Não que a África seja exemplo de cuidados com a saúde, mas ter tão poucos médicos e leitos em uma população aglomerada é uma temeridade maior.

A aglomeração e a precariedade nos cuidados com a saúde que existem na Índia, em conjunto com a pobreza, vão fazer com que a maioria dos casos de covid fique sem diagnóstico e sem atendimento. Quando não há diagnóstico, não se isolam os contaminados dos demais, favorecendo um contágio massivo (pois são pessoas que vivem amontoadas) e, portanto, dando mais chances para o surgimento de novas variantes.

Outro fator é a devoção religiosa que acontece na Índia. As cerimônias religiosas em sua maioria implicam em contato, aglomeração e, o que é pior, em peregrinação. Então, além do contágio esperado, ainda sincronizam o país todo com a doença, espalham o vírus por todos os cantos. Tem cerimônia que junta mais de 150 milhões de pessoas em uma aglomeração marchante, praticamente uma procissão da morte. Não sou especialista em religiões africanas, mas até onde eu sei, elas não costumam promover aglomeração de milhões de pessoas.

Para piorar ainda mais a situação, a Índia não é propriamente conhecida por seus hábitos de higiene. Pessoas mergulham e nadam em rios que um saco de lixo vomitaria se caísse dentro. A chamada “defecção ao ar livre” é uma prática comum (sim, cagam na rua), lembrando sempre que fezes podem carregar o vírus e gerar contágio. Novamente, não que a África seja padrão mundial de higiene, e que os indianos excedem todos os limites mesmo.

Não é como se a população indiana fosse uma tribo que dá um rolê na savana e corre de leão. São pessoas que trabalham exaustivamente em fábricas, porões e ambientes fechados. É um país altamente denso e industrializado com condições precárias de trabalho e com zero preocupação pela saúde do trabalhador.

São pessoas que não podem se dar ao luxo de deixar de trabalhar quando adoecem e o governo não parece ter essa preocupação. Ao menos na África existe algum distanciamento, algum ar puro. O sujeito pode morar em uma casa de palafita, mas não respira ar viciado, não fica costurando tênis da Nike em um porão com outras 5 mil pessoas.

A população da Índia tem a saúde deteriorada por falta de higiene, má alimentação e falta de cuidados médicos. Não que os africanos sejam super saudáveis, não são, mas ao menos são mais saudáveis pelo estilo de vida que levam, pelo simples fato de uma palafita ficar mais distanciada da outra.

Além disso, a África está “isolada” do mundo. Salvo engano, só tem fronteira por terra para outros continentes por uma tripinha no Egito, coisa que, como dizem os bolsonaristas, um tanque e um soldado resolvem. É mais fácil isolar a África se algo acontecer, impedindo que eventuais variantes saiam dali e se alastrem para o resto do mundo. Sim, tem fronteira aérea e marítima, mas não é como se alguém pudesse vir nadando ou voando por conta própria, essas podem ser mais facilmente controladas.

Já a Índia, faz fronteira com vários países, inclusive com a China, outro país densamente povoado que espalharia uma nova variante na velocidade da luz. Não se enganem: os chineses conseguiram conter aquele primeiro coronavírus raiz, que era café com leite. Esse atual até a Europa está com dificuldades de segurar.

E, mesmo que se confie no pulso de ferro da China, a Índia faz fronteira com vários países bem pobre e precários que certamente não vão ter infraestrutura para conter o vírus. Ela está no meio da Ásia, o continente mais povoado do planeta. Alguém aqui acha que países como Paquistão e Bangladesh vão dar conta de uma variante mortal?

As chances de surgir uma nova variante terrível são maiores na Índia. As chances de, se surgir uma nova variante terrível, se espalhar rapidamente pro resto do mundo também são maiores na Índia. Existe um motivo para o mundo todo estar com medo, olhando e ajudando o país: ele é a melhor chance do corona.

Para dizer que agora que o Brasil não é o risco maior, mudou de ideia e acha que tem que jogar bomba em país que pode criar nova variante, para dizer que esta postagem deveria ser patrocinada por antidepressivo ou ainda para dizer que ainda tem fé que o Brasil ganha essa corrida: sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

África, coronavírus, Índia

Comentários (18)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: