Festas clandestinas.

Num mundo ideal, com a regra de evitar aglomerações por causa da pandemia, as pessoas não deveriam estar dando festas. O mundo passa longe de ser ideal, especialmente em países como o Brasil. Sally e Somir discordam sobre o papel do cidadão ao presenciar uma situação dessas. Os impopulares protestam.

Tema de hoje: vale a pena denunciar festas ou reuniões clandestinas?

SOMIR

Não. Você só vai ficar puto da vida mais uma vez, a primeira por causa da festa que está te incomodando e a segunda porque não vai dar nada. Durante a pandemia, a polícia fez pouco, praticamente nada, para coibir esse tipo de aglomeração. E quando o fez, foi em momentos de auge de mortes diárias, muito pela pressão de superiores incomodados pela imprensa.

Já estamos em outra fase da pandemia, a do “já acabou”. O brasileiro médio enfiou na cabeça que duas mil mortes por dia é aceitável e que se baixar de mil é porque o problema desapareceu. Percebe-se o clima mudando para vistas grossas coletivas, como se a aceleração da aplicação da primeira dose já fosse o golpe final contra a doença. Se já era meio inútil denunciar na época que as pessoas levavam o tema um pouco a sério, agora o grau de inutilidade vai às alturas.

Infelizmente, esse país vive num delicado equilíbrio entre respeito mínimo às leis e balbúrdia total. E isso vem de muito longe, é parte da identidade nacional relativizar leis de acordo com o incômodo gerado por elas. O brasileiro se importa um pouco com crimes que levam a morte ou violência pesada no curto prazo, e quase nada com o que tem potencial destrutivo pequeno. Não é à toa que estamos há séculos destruindo aos poucos o potencial de uma das nações naturalmente mais ricas e estáveis do mundo.

Não é parte da cultura brasileira se importar muito com a quebra das leis. Sim, o governo agiu da pior forma possível no combate ao coronavírus, mas sem a anuência do povo, não teríamos chegado aos números absurdos de mortes que chegamos. O mesmo povo que é comunista na expectativa do Estado cuidar dele vira libertário de carteirinha quando defrontado com responsabilidades pessoais.

E por isso, não se furta de fazer suas festinhas mesmo sabendo que está piorando, e muito, a situação de uma pandemia que mata centenas de milhares de pessoas. Acredita no direito inalienável de fazer o que bem entende e reclamar de todo mundo logo depois. Até por isso, a pessoa que se importa com a manutenção de uma ordem mínima social deve sempre ter em mente que está na minoria por aqui.

E estar na minoria vem com uma série de riscos. Ser a pessoa que denuncia uma festa pode pintar um alvo no seu peito. No país dos contatinhos, é importante manter em mente que a pessoa que deu a festa pode ser amiga de algum policial. Aliás, não é nem um pouco difícil que a festa tenha algum policial envolvido. Você não está na Noruega… existe um risco real de você receber retaliações por atrapalhar o crime alheio. Normalmente nesses casos estamos falando de festas criadas por vizinhos, afinal, se você chegou ao ponto de perceber, existe uma proximidade.

Você não sabe o tipo de pessoa que está nessa festa. E pra ser bem honesto, quanto mais barulhenta e incômoda a festa, maior a chance de ter gente perigosa nela. Vem no pacote do bandido essa completa falta de pudor com o incômodo alheio. Quanto mais a festa te irrita pela falta de noção com som alto e avanço rumo à madrugada, maior a possibilidade de gente muito ruim estar nela.

Gente que mora ou frequenta sua rua. Gente que pode ou não estar ligada com policiais. Eu que moro numa cidade do interior tenho que prestar atenção nisso, imagina só quem vive num lugar como Rio de Janeiro ou São Paulo? Festa de família barulhenta normalmente sossega eventualmente, mas festa de bandido (policiais envolvidos) é justamente a que mais inferniza a vida da vizinhança. Você nunca sabe quem está lá. Sempre tem um maluco.

Então, chegamos à conclusão que é muito provável que a polícia ignore solenemente sua denúncia, até porque a polícia brasileira que presta está sempre com falta de gente e equipamento para lidar até mesmo com crimes muito sérios, quanto mais festas incômodas. A chance maior é que não venham, e se vierem, podem demorar horas e no máximo dar um pito nos festeiros. E pela mentalidade mais comum entre gente que faz aglomeração em pandemia, é bem provável que retomem a festa logo depois.

E no pior dos casos, pode ser que o policial dedure quem fez a ligação, criando um inimigo para você, um que mora perto. A pessoa que faz a festa tem no seu pacote a escrotidão necessária para te confrontar ou se vingar de outra forma. Afinal, gente babaca nunca está errada, a culpa é sempre dos outros. Se não for do tipo de pessoa que você sabe que vai parar a festa se você for reclamar direto com ela, grandes chances de que não vai dar em nada com uma denúncia.

E adivinha só se quem dá festa na pandemia é o tipo de pessoa que é capaz de reconhecer um erro? Claro que não. Pra que sofrer mais? Você já vai ter que aguentar a festa, não precisa ficar irritado ou correr mais riscos denunciando num país onde as coisas simplesmente não funcionam.

Só tem um caso onde você pode denunciar: se quem estiver dando a festa for rico ou famoso. Aí a polícia fica com os olhos brilhando com a possibilidade de arrancar um dinheiro ou dar entrevista para a TV. Mas normalmente estamos falando daquela gente barraqueira e metida com bandidos da sua vizinhança. Gente que não interessa à polícia e que vai dar um jeito de te encher o saco (ou pior) se descobrir que você denunciou uma festa.

É melhor jogar um saco de cocô pegando fogo no meio da festa e sair correndo do que perder tempo denunciando. Quem faz festa em pandemia só entende a língua da baixaria.

Para dizer que eu já desisti, para dizer que eu sou o Brasil que deu errado, ou mesmo para dizer que a solução é ficar rico e sair de perto dessa gente: somir@desfavor.com

SALLY

Vale a pena denunciar festas ou reuniões clandestinas?

Óbvio. É dever de qualquer pessoa minimamente consciente denunciar. Se as autoridades vão fazer seu papel ou não, problema delas, a sua parte você tem que fazer, se não essa merda de país não melhora nunca.

Uma coisa é denunciar um estupro, que gera um ônus enorme para a vítima: maus tratos, desconfiança, estigma, um processo que vai reviver o trauma, ter informações íntimas para sempre registradas e documentadas. Eu compreendo perfeitamente quem não o faz. Ninguém é obrigado a ter forças para, por cima de um trauma, se expor a mais experiências traumáticas. Em um mundo ideal, o correto é denunciar para, quem sabe, evitar que outras mulheres passem por isso. Mas o custo é altíssimo.

Bem diferente de denunciar uma festa clandestina. O custo emocional de denunciar quem fura a quarentena é zero, pois, se for o caso, dá para fazer uma denúncia anônima – por bem ou por mal. Não sei se todos os estados permitem uma denúncia formalmente anônima, mas, se algum não permite, pode fazer com meu nome e meu número de documento que eu quero ver o seu vizinho vir até aqui me dar porrada.

Falando sério, tem que denunciar. Você acha que não vai dar em nada? Pode ser que você tenha razão sim, mas a sua parte você fez. Eu já estou batendo nessa tecla faz tempo aqui: seja a mudança que você quer ver no mundo. A única coisa que você pode mudar na sua realidade é você. Você não pode mudar o seu vizinho, você não pode mudar a pandemia, você não pode mudar o mundo – mas pode mudar a sua cabeça e as suas atitudes.

Se todo mundo pensar igual, que não adianta denunciar, ninguém vai denunciar e nunca nada vai mudar. Eu sei que a polícia brasileira é sofrível, mas porra, no meio de tanta gente, será que não tem ao menos 1% de pessoas decentes que irão até o local e tomarão uma providência contra a festa clandestina?

Talvez tenha. Talvez a sua ligação acabe com uma festa clandestina. Talvez ao chegar lá a polícia ache outras coisas mais graves e alguns filhos da puta acabem presos ou tenham uma baita dor de cabeça. Talvez já existam pessoas procuradas pela polícia ali, por outros motivos, e elas acabem presa. Talvez… talvez… talvez… Não sabemos. Só vamos saber se a denúncia for feita.

E, como eu disse antes, eu não vou deixar de fazer o que eu julgo correto me escorando no argumento de que o outro não vai fazer o que é correto. A polícia não vai? Não vai dar em nada? Pois muito bem, a minha parte eu vou fazer, pois eu não me pauto na conduta dos outros para tomar uma decisão. Eu estarei com a minha consciência tranquila de que não me omiti e que minha omissão não contribuiu para um mundo pior.

“Ah mas podem rastrear minha ligação e descobrir que eu liguei”. Amigo, a polícia brasileira, incluindo membros de sua tropa de elite, passou quase um mês para achar um maluco no meio do mato e gastou três milhões de reais para isso. Sério mesmo que você acha que a polícia tem tempo, condições e infraestrutura para rastrear a sua ligação e ir contar para o dono da festa clandestina quem ligou? Meu anjo, nem você é tão importante, nem a polícia brasileira é tão competente.

Comunica esta porra, nem que você tenha que pedir para que outra pessoa ligue, nem que ligue e passe dados falsos, nem que mande sinais de fumaça. Faça a sua parte e comunica que tem algo que prejudica toda a rua, todo o bairro, toda a cidade, todo o estado, todo o país, todo o mundo acontecendo. Você não sabe se nessa festa clandestina vai surgir uma nova variante. Faz o seu papel, se não der em nada, você dorme com a consciência tranquila de que, a sua parte, você fez.

Não adianta bater o martelo dizendo que nada vai acontecer, você não é Deus para antever com certeza absoluta o que vai acontecer, isso é uma desculpinha para fazer o fácil, para ficar na inércia. Há um universo de possibilidades do que pode acontecer, muitas das quais nós nem sequer conseguimos imaginar.

Pode não dar em nada oficialmente, mas tudo é possível quando falamos da polícia brasileira. Talvez dê em algo pelos motivos errados. Por mais corrupta que a polícia seja, ela pode ir até lá e exigir um dinheiro dos vagabundos que estão dando a festa para não levar todo mundo pra delegacia. Veja bem, dar um prejuízo financeiro nos sujeitos pode ter sua função socioeducativa também, a pessoa vai pensar antes de fazer festa, pois custa caro subornar a polícia.

E, nessa brincadeira, se os donos da festa forem arrogantes e escrotos, mesmo que a polícia estivesse determinada a não fazer nada, podem ficar com raiva e acabar fazendo, só de sacanagem com o arrombado que os tratou mal. Levar umas porradas da polícia não é o ideal, mas também pode ter sua função socioeducativa. Como eu disse: um universo de possibilidades e nem você nem ninguém é capaz de antever ou aventar todas elas. Faça a sua parte, do resto o universo se encarrega.

Achar que só erra quem faz festinha clandestina é não entender nada sobre coletividade, sobre como as coisas funcionam. Há erros por ação e erros por omissão, mas o brasileiro tende a acreditar que só erra quem age, mas quem se cala é cúmplice e erra junto. Pode acontecer de existirem situações em que calar e ser cúmplice é um mal necessário? Sim. Mas não é o caso de algo tão banal como uma festinha clandestina.

Não sejam cúmplices. É muito pouco trabalho pegar o telefone e fazer uma denúncia (talvez seja até possível fazer online). É algo muito simples, rápido e gratuito para se eximir de fazer. Agir só quando se tem a certeza de que o desfecho vai ser exatamente aquele que você gostaria que fosse é algo bastante mimadinho.

Tem que agir para fazer a coisa certa, independente do desfecho ser aquele que você esperava ou não. Tem que parar de se omitir para que essa bosta de país, quem sabe, seja menos bosta um dia. Quem se omite apenas fortalece quem está fazendo a coisa errada.

Para dizer que dá muito trabalho fazer uma ligação, para dizer que você é a pessoa que faz festa clandestina ou ainda para dizer que no seu bairro não adianta ligar pois a polícia está participando das festas clandestinas: sally@desfavor.com

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Comments (14)

  • A resposta é NÃO, NÃO VALE… Ao menos no que diz respeito a BR.
    Mesmo que a denúncia seja feita a polícia e eles venham, dificilmente vão fazer alguma coisa e se o fizerem, na prática, vai ser uma solução que pode ser revista facilmente com um habeas corpus, salvo se encontrarem drogas ilícitas no evento.
    E aí, bem… Depende do grau de conivência e de corrupção da polícia pra se ter uma atitude no caso.

  • Aqui onde eu moro, toda sexta e sábado tem bate estaca. A polícia sabe disso, mas ninguém faz nada. Eu não denuncio mais. Infelizmente, cheguei num ponto da pandemia que faço apenas a minha parte que é me isolar, usar máscara n95 quando saio e rezar para não me contaminar. Os meus estão parcialmente vacinados (o que não quer dizer muita coisa) e isolados.
    Não vejo mais tv e ignoro tudo e todos que estão indo contra o isolamento. Minha sanidade mental em primeiro lugar.

  • Eu tentei denunciar o arrombado da quadra vizinha da minha casa, ano passado. Filmei, formalizei na prefeitura. A resposta? “Devido à impestividade da data, não há medidas a tomar”. Era dia dos namorados, pior época da pandemia ano passado.

    São poucos vizinhos na rua, e quem vive em pé de guerra com esses putos sou eu. Mesmo que eu fosse denunciar e fosse dar certo, eu tenho medo, porque não sei do que essa gente é capaz. Então eu desisti.

    • É horrível quando isso acontece. Dá uma sensação de desamparo, de não ter a quem recorrer. De que adianta denunciar se quem recebe a denúncia não pode fazer nada?

  • Eu compreendo a preocupação do Somir com a possibilidade de se acordar com a boca cheia de formiga por denunciar festas clandestinas nas quais gente que não presta está invariavelmente envolvida, mas fico com a Sally nessa. Fazer o certo nunca é fácil – muitas vezes, é até arriscado – e pode ser que ou a denúncia nem dê em nada ou que coibir aglomerações em plena pandemia seja apenas “enxugar gelo”, mas creio que, no longo prazo, seja pior se omitir. Já dizia o velho ditado “quem cala consente” e, muito por causa do comportamento dessa cambada que parece que “apertou o botão do foda-se” para tudo é que o coronavírus segue circulando por aí criando cepas mais perigosas, prejudicando a todos nós e fazendo com que este pesadelo que vivemos continue sem prazo para acabar.

  • Deve ser muito frustrante viver sem o apoio de quem deveria nos proteger. Moro no RS e aqui a visão que temos da brigada militar é bem diferente. Claro que tem suas falhas e agentes corruptos, mas em sua maioria a BM faz um bom trabalho (dentro de suas possibilidades) e a população a apoia bastante.

    Na pandemia pipocaram matérias na mídia sobre festas clandestinas encerradas pela polícia, muitas a partir de denúncias. Provavelmente foi como enxugar gelo mas, se evitaram que pelo menos uma pessoa tenha se contaminado, já valeu a pena.

    • Mesmo a pior brigada militar do mundo pode decidir acabar com uma festa clandestina, ainda que pelos motivos errados (por corrupção, egoísmo ou vingança, que seja). A gente simplesmente não sabe se vai dar em alguma coisa ou não. Não prevemos o futuro, pode ser que não dê em nada, mas pode ser que algo aconteça. Tem que tentar, se não for algo que coloca em risco a pessoa ou causa algum sofrimento insuportável, tem sempre que tentar.

  • Somir ta certíssimo, só faz passar raiva, não dá em nada. Aqui ainda tem o plus dos guardas frequentarem e quem denunciou passar a ser o x9 da treta e se foder.

    • Você não sabe. Você não é Deus. Você não prevê o futuro. Pode dar em alguma coisa ou pode não dar em nada. Seu papel é denunciar. Fazemos as coisas certas por elas serem certas, não esperando um resultado que desejamos.

  • Então, no meu município dá pra fazer a denúncia por aplicativo, gera até protocolo. No início da pandemia, tinha um vizinho que fazia festa com aglomeração e barulho todo final de semana. Denuncie todas as vezes (7 finais de semana) Nunca vieram. Parou pq o vizinho se mudou. É frustrante.

    • Sim, deve ser muito frustrante. Mas você fez a sua parte, sua consciência está tranquila.
      Não devemos agir visando o resultado e sim fazer aquilo que acreditamos ser o correto.

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