Vergonha Geral da ONU

A Missão do Brasil na ONU acaba de decidir encerrar a participação presencial do país este ano na Assembleia Geral, devido à contaminação por Covid-19 do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Os diplomatas foram orientados há pouco a não ir mais a partir de amanhã para a sede da ONU. LINK


Essa é a notícia que encerra uma participação (vergonhosamente) histórica do Brasil na Assembleia Geral da ONU. Desfavor da Semana.

SALLY

Observando de longe as notícias sobre o Brasil eu estava confusa sobre parâmetros, limites e linhas. Até que ponto o Brasil continua a mesma zona de sempre ou até que ponto cruzou um patamar de insanidade?

Para resolver o problema, estabeleci um balizador. A cada evento bizarro que acontece eu me pergunto: “Isso é algo que qualquer pessoa faria?”. Se a resposta for “não”, eu me pergunto “Isso é algo que o Rafael Pilha faria” e, se a resposta for “sim”, eu considero que se saiu da bagunça habitual para transitar pela insanidade.

Vamos analisar a participação do Brasil na cúpula da ONU e aplicar meu padrão?

O Presidente da República de um país banânico, que depende de seus parceiros comerciais e que puxa o saco dos EUA (cujo governo é totalmente pro-vacina) resolve ir a Nova Iorque sem se vacinar. É algo que qualquer pessoa faria? Sim, eu vejo brasileiros fazendo isso, adequação nunca foi o ponto forte. Bizarro, inconveniente e inadequado, mas não se pode dizer que seja uma novidade.

Porém, quando o Prefeito de Nova Iorque diz que “se não quer se vacinar nem venha”, aí eu começo a pensar que, na média, se alguém famoso declara para o mundo todo ouvir que você não é bem-vindo e que ela prefere que você não pise no território dela, eu suponho que, apesar da esculhambação brazuca, a maioria das pessoas não iria. Inclusive se sentiriam ofendidas ou com raiva.

Bolsonaro foi. Foi a um lugar onde sabia não ser bem-vindo, ser desprezado, onde entrou sem cumprir as regras do local. Eu entendo um zé merdinha ou uma maria neurótica fazendo isso no desfavor, mas porra, a nível internacional com o mundo todo vendo? Uma pessoa média não faz isso. Contudo, é algo que o Rafael Pilha faria.

Na viagem, apesar de saber que a exigência de máscaras é uma regra não apenas no país de destino como em seu próprio país, Bolsonaro quis mostrar resistência. O que uma pessoa média faria? Usaria uma máscara fina que não incomode, usaria uma máscara da forma errada, com o nariz para fora ou talvez até pendurada no pescoço, só subindo para o nariz e boca na hora de embarcar.

O que Bolsonaro fez? Decidiu não usar máscara e ponto. Obviamente, quando se viu compelido a cobrir o focinho teve que ceder e acabou usando uma máscara que pegou emprestada do Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, doravante denominado Pazuello 2, por seguir a mesma linha do seu antecessor (fazer o que o Presidente manda, por mais anticência que seja). Pegar uma máscara com outra pessoa é algo que o Pilha faria? Sim, apesar de que tenho minhas dúvidas se, mesmo o Pilha, faria uma coisa dessas.

Foi a comitiva do Brasil, a maioria sem vacina. Como estavam descumprindo regras do local (na verdade, do planeta, pois o mundo todo está se vacinando e quer que a pandemia acabe), sabiam que teriam uma série de restrições. Até aí, eu consigo compreender: frequentar um lugar mesmo que te sejam impostas algumas restrições é algo que muitas pessoas topam.

Mas, tentar entrar onde não pode e, ao ser escorraçado, comer no meio da rua é um novo patamar. Pilha faria. Se o Pilha quer, o Pilha vai, o Pilha entra e o Pilha fica. Foda-se que é proibido, foda-se que ele sabe que é proibido, foda-se que vai dar confusão. Pilha faria.

Bolsonaro pagou para ver, provavelmente achando que o mundo é uma grande Bananolândia e foi barrado em um restaurante. O que uma pessoa média faz se for enxotada de um lugar? Alguns iriam embora e não voltariam nunca mais, outros iriam embora e pediriam a comida do restaurante (ou outra, por um aplicativo) para comer no hotel. Na média geral, pessoas enxotadas se retiram e não querem mais saber de quem as enxotou.

O que Bolsonaro, um Chefe de Estado acompanhado por toda imprensa (cujos atos repercutem mundialmente e afetam a economia do Brasil) fez? Comeu na calçada. Isso é uma coisa que o Rafael Pilha faria? Certamente. Ficar puto por ter sido barrado e só de birra sentar e comer afrontosamente a comida na calçada, em frente ao restaurante, olhando para dentro e sorrindo debochadamente.

Ao se deslocar pela cidade, a comitiva encontrou manifestantes brasileiros descontentes pela forma como o Brasil conduz a pandemia e também pessoas no geral descontentes por ver símios de país criador de variante circulando sem máscara. Claro, ninguém gosta de ser criticado em público e aos berros, portanto, acho natural que uma pessoa média não tenha a finesse de não reagir. Pode virar a cara, pode tentar argumentar, pode ter diversas reações.

O que o Brasil fez, representado pelo Pazuello 2? Mostrou o dedo médio para as pessoas que protestavam. Nem se trata da falta de educação, é mais pela vibe quinta série mesmo. Mostrar o dedo médio? Com o mundo todo vendo? Tendo nas costas mais de meio milhões de mortos? Sério? Bem, sem dúvidas é algo que Rafael Pilha faria, como já o fez muitas outras vezes (ah, A Fazenda, que saudades!).

Lá foi a comitiva passar vergonha em reunião na ONU. A gente sabe que nenhum político faz um discurso totalmente sincero, nem na ONU nem em lugar nenhum, é esperado algum grau de mentira, maquiagem, diplomacia e falsidade. Todos nós, pessoas comuns, eventualmente temos que reajustar o discurso quando falamos em público, sobretudo se falarmos de um evento onde o mundo todo está vendo.

Mas Bolsonaro novamente subiu um degrau a mais e fez um discurso absurdamente mentiroso negando coisas facilmente comprováveis como o desmatamento, a crise econômica e a ineficácia de Cloroquina. O sujeito vai discursar na ONU, com o mundo todo vendo, e fala como se estivesse falando com seus apoiadores, com caipira do agro que anda de BMW tunado com chifre de boi no capô ou como miliciano do Rio de Janeiro que usa dente de ouro por cima do incisivo. Discurso suicida? Pilha faria.

Mas não termina aí. A comitiva brasileira tinha contaminados com covid-19! Ok, eu sei que qualquer um de nós pode estar contaminado sem saber, por mais cuidadosos que sejamos (que não é o caso deles). Mas, o próprio Ministro da Saúde (que é médico) estava contaminado, aquele que emprestou a máscara para o Bolsonaro, lembra?

É mais um degrau da anticiência que se escala: o sujeito sabe estar indo para um evento importante com líderes mundiais, o sujeito é médico, detém todas as informações técnicas, e não faz uma porra de um PCR 4 dias antes de viajar e outro 2 dias antes de viajar? Só descobriram que estavam contaminados quando foram testados lá, e, a essa altura, já haviam interagido com vários líderes mundiais.

É algo que o Pilha faria? Sim, é algo que o Pilha faria. Ir ao plenário, discursar, ter contato com Chefes de Estado de vários países e nem se tocar de que estava contaminado e pouco se foder para isso. Conclusão: a participação do Brasil foi encerrada assim que descobriram que a comitiva tinha mais germes que o macaquinho do filme “Epidemia”. Ainda foram apelidados de “Comitê da Covid”.

Foram gentilmente convidados a se retirar e a não voltar mais. A bancada do Brasil ficará sem nenhum diplomata durante os trabalhos da Assembleia Geral, a única vazia. Normalmente político gasta rios de dinheiro público para ir participar desses eventos e ser inútil, mas desta vez, gastaram rios de dinheiro público para serem expulsos e nem poder participar. Rafael Pilha faria, com certeza.

Acho que a gente desejou com tanta força que o Pilha fosse Presidente que o desejo chegou, por vias transversas. Só que o Pilha seria melhor, pois ele tem mais carisma. Sim, eu estou dizendo que Rafael Pilha seria melhor Presidente que o Presidente atual, e não estou fazendo uma piada.

Diz que isso acontece em qualquer lugar, diz. Diz que “problemas todo país tem”, como se esse combo tenebroso fosse algo recorrente em vários países…

Para dizer que também preferia o Pilha como Presidente, para dizer que acha bom o mundo todo ver a esculhambação que é o Brasil ou ainda para dizer que não a toa o Pilha defende o Bolsonaro: sally@desfavor.com

SOMIR

É surpresa que Bolsonaro e sua trupe façam coisas bizarras e nos envergonhem diante do resto do mundo? Não, não é mais. Mas essa viagem a Nova Iorque alcançou um grau de bizarrice tão alto que eu duvido que vá ser batido por qualquer outra delegação do mundo no decorrer da história. Nós vimos um evento especial.

Como eu sei que não vou bater a Escala Pilha de Excelência em Insanidade da Sally ao descrever os eventos ocorridos, eu vou seguir por outra linha: há algo por trás dessas atitudes aparentemente desconexas, algo que contaminou direita e esquerda nos últimos anos de tal forma que a discussão política virou uma piada. Esse algo pode ser chamado de vários nomes, mas eu vou escolher um que acho especialmente engraçado.

Flanderização. Se procurar no dicionário, não vai achar. Flanderização é aportuguesamento de uma expressão americana: Flanderization. É uma expressão que roteiristas e analistas de filmes e séries usam para descrever o processo de exagerar uma característica de uma personagem até ela tomar conta de toda a personalidade dessa personagem. O termo existe por causa da personagem Ned Flanders dos Simpsons: o vizinho de Homer começou o desenho como o vizinho careta e religioso, contraponto engraçado com o jeito relaxado da família Simpson, mas com o passar das temporadas, foi se tornando cada vez mais radical e exagerado na sua religião, tornando-a basicamente sua personalidade.

Os mais atentos podem estar pensando que eu poderia simplesmente dizer que direita e esquerda estão virando caricaturas de si mesmas sem precisar fazer esse aparte maluco sobre os Simpsons, mas eu argumento que o termo é Flanderização mesmo: o cenário político é cada vez mais definido por narrativas basicamente ficcionais sobre personagens criadas para cativar o povão. Não é que Bolsonaro e seus seguidores estão ficando exagerados por pura radicalização, é que na cabeça deles se formou uma historinha que precisa ser escrita para o resto do mundo.

E, é claro, estou falando de Bolsonaro por causa do tema da coluna, mas isso é válido para as outras vertentes da direita e esquerda modernas. Existe uma narrativa na cabeça dessa gente, eles acham que estão numa obra ficcional, batalhando pelo futuro da humanidade. Que são personagens de um épico onde bem e mal se desafiam na guerra pela alma das pessoas. E provavelmente sem ter noção real disso.

O ser humano é louco por uma boa história. Inventa uma onde pode, e adora fazer parte delas. O que a política descobriu nas últimas décadas, muito ajudada pela comunicação instantânea providenciadas pela internet, é que existe um potencial imenso de engajamento do cidadão médio desde que ele acredite que está dentro de uma dessas histórias.

Já percebeu que o “final triste” que esquerda e direita contam para as pessoas caso o outro lado vença é muito parecido com obras de ficção apocalípticas? Se a direita ganhar, vamos viver no mundo de Mad Max, com a natureza destruída e todo mundo oprimido ou abandonado. Se a esquerda ganhar, vamos viver em algo parecido com o mundo de 1984, com um Estado controlando seu pensamento e todo mundo vivendo na pobreza. Não são ideias minhas, são resumos básicos do que sempre ouvimos falar dos dois lados.

Bolsonaro está vivendo esse processo de Flanderização: o que era uma característica mediana dele, a baixaria no SuperPop e em discussões com outros políticos, acabou virando sua característica principal no governo. A gente já falou outras vezes que tem uma incompetência galopante na administração Bolsonaro, mas uma parte disso é a narrativa que eles querem estabelecer.

Se Bolsonaro e o Pazuello 2 fazem essas maluquices, provavelmente o fazem porque já internalizaram seus papéis na história que a direita quer contar: a da rebeldia contra um sistema controlador. Hoje em dia, esse bloco político é formado por muitos teóricos da conspiração, desconfiados de elites antigas (ou alienígenas, vai saber) controlando o mundo pelas sombras. Faz parte da ideia de combate a esse inimigo ser rebelde contra o que se diz ser bom senso.

A delegação brasileira vai à Nova Iorque totalmente Flanderizada, certa de que seu papel nessa grande série onde são mocinhos é quebrar regras para enfraquecer o vilão. Era só uma parte da proto-direita do século XXI há algumas décadas, mas acabou virando a sua característica definidora. É claro que eles são contra máscaras, distanciamento social e vacinas: é o que aprenderam ser elementos narrativos de uma história distópica. É claro que o vilão vai impor comportamentos aparentemente inocentes que no fundo são malignos, é assim que sempre escrevem esse tipo de história na ficção.

É assim que gerações expostas a uma tonelada de conteúdo ficcional tende a enxergar a realidade se não tiver ninguém para trazê-los de volta para o normalmente entediante mundo real. Na vida que vivemos, quase tudo é mediano e raramente as pessoas têm planos muito complexos. O que é progressivamente mais chato com o passar das gerações. O mundo ficou chato para quem quer viver a intensidade de uma narrativa ficcional.

E por isso, precisam Flanderizar suas personalidades para manter a coisa divertida o suficiente. Boa parte da esquerda internalizou o papel de vítimas, lutando para serem protagonistas sofridos mais interessantes uns que os outros. A direita quer viver numa aventura de luta contra o sistema opressor, por isso exageram suas opiniões e ações para reforçar essa ideia de realidade.

Mas quando a vida real entra nessa história, acabam parecendo completamente malucos para quem ainda não está contaminado por essa necessidade de transformar tudo numa obra de ficção. O problema é que a gente percebe, mas para o público-alvo de Bolsonaro, só reforça a diversão: ele enfrentou o sistema fazendo esse monte de merda. E isso vai gerando esse ciclo vicioso, quanto mais ele Flanderiza, mais reforça a crença de seu público na história que conta. E quanto mais seu público acredita na história, mais radicalização exige.

E quanto mais eles radicalizam, mais influenciam a visão distorcida da realidade do outro lado, que começa a acreditar que o mundo vai acabar mesmo se deixarem eles correndo soltos. Aí, se vitimizam mais, o que reforça a ideia do outro lado… e sinceramente, não sei o que vai ser necessário para tirar toda essa gente de dentro da ficção compartilhada que resolveram viver.

Espero que não seja nada que atrapalhe demais a vida da gente que está aqui no mundo real.

Para dizer que sua crença é muito mais divertida que meu papo chato, para dizer que meu centrismo está Flanderizado, ou mesmo para dizer que pelo menos dá pra rir: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Ficou sabendo que o Dudu Carnaval Paes entrou na fila pra ser vice do Lula? Sim, tem fila! Eu acho que a dupla tem tudo a ver com o que brasileiro gosta, ambos roubam mas fazem. Lula foi o maior ladrão da história e mesmo assim a situação econômica do país não era tão fodida na inflação e o Nervosinho tá dando um banho na gestão Crivella. Resumindo: Deixem os meninos roubarem!

  • Eu nem estava acompanhando esse assunto por motivos de que tenho coisa mais útil pra fazer e porque Bolsonaro e sua trupe me dão náuseas, mas lembro que há poucos dias passei por uma postagem no LinkedIn (outra rede mal aproveitada que virou reduto de discussão política etc.) com essa foto, dizendo algo como “enquanto outros líderes mundiais comem lagosta, o presidente do Brasil come pizza” – obviamente, enaltecendo o presidente “gente como a gente” que não esbanja.
    Agora que li o Desfavor e conheci a história da foto, só me resta rir, então com licença:

    HAHAHAHAHAHA

    (rindo de nervoso e de raiva, obviamente)

  • Concordo bastante com o Somir, a vida não é tão interessante e emocionante assim.

    A propósito, eu sempre tive o pensamento de que cada mandato político afeta majoritariamente apenas 20% da população, os 10% mais pobres e os 10% mais ricos. O resto da curva de Bell não vê muitas mudanças nas suas vidas, seja o governo de esquerda ou direita, e não percebe mudanças bruscas causadas por uma mudança de presidente, prefeito ou o que for.

    Claro que é um pensamento muito generalizado, e eu mesmo posso apontar algumas decisões políticas que possuem grandes impactos imediatos e efeitos de longo prazo. Mas estou falando de coisas do cotidiano geral, pra maioria das pessoas a vida simplesmente continua e vai continuar a mesma, ao menos na maior parte. Pra maioria das pessoas, a vida atual não está tão diferente de como estava no mandato político anterior.

  • O Bozo é o reflexo dos BR. Brasileiro empresta máscara, eu já vi. Tinha uns jovens na frente da lanchonete, uma mina pegou a máscara da outra pra entrar e comprar um açaí, depois o copo passou de boca em boca, eram mais de 6. Ainda bem que já tão vacinando os jovens.

  • Também fico preocupado, Somir, em como tirar esse povo todo desse delírio coletivo que resolveram se meter. Me pergunto também se alguns não vão acordar, vão ficar pra sempre afundados nessa narrativa ficcional e romper mesmo com a realidade de vez.

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