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Transcels.

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| Somir | | 30 comentários em Transcels.

Sally achou uma matéria e mandou para mim, como faz algumas vezes por semana. Ela tinha achado absurdo, minha reação foi bem menor. Não pelo teor, que prega que não se relacionar com pessoas trans é sinônimo de transfobia, que é de arrepiar os cabelos, mas porque eu já tinha sido exposto à essa insanidade anteriormente. Para variar, brasileiros imitam maluquices de americanos (lacradores ou conservadores) depois de algum tempo. Pelo visto essa está chegando, então é hora de falar disso: não é direito de ninguém ser atraente, e nunca vai poder ser.

Se você leu a matéria, já deve estar ciente da confusão apresentada, mas se não quis sofrer, eu resumo: a pessoa argumenta que genitália não define gênero, que brasileiro adora pornografia com transexuais e que é uma maldade negar um relacionamento amoroso com uma pessoa trans por ela ser trans.

Infelizmente eu vou ter que ser um tanto quanto escroto em algumas partes do texto, a verdade pode ser bem desagradável às vezes, mas como uma prova de que não há intenção maligna neste texto, vou começar tentando me aproximar o máximo possível do estado mental do argumento que pretendo desconstruir.

Algumas pessoas realmente só conseguem ser quem são de verdade se trocarem o gênero que lhes foi imposto ao nascer. Sobre isso eu não quero discutir: é absurdo limitar o direito à existência de alguém. Se João se sente Maria, ou se Maria se sente João, quem somos nós para discutir? E digo mais, se a pessoa não se sentir homem nem mulher, não tem o que discutir também. Deixa a pessoa ser o que é. Mesmo eu que discuto, e muito, o uso de linguagem neutra, jamais vou querer impor ao outro uma forma de ser. Desde, é claro, que respeite as leis, como todos nós precisamos respeitar.

Para quem não acredita em amigo imaginário e cobra falante, não há nenhum problema inerente à condição do outro em relação à autoimagem de gênero. Não acho bonito nem feio, é literalmente problema da pessoa. Tem gente branca, tem gente preta, tem gente homem, tem gente mulher, e tem todas as combinações possíveis. Gente é gente, e tem direitos humanos assim como eu. Você pode concordar ou discordar de vários pontos de pensamento dessas pessoas, mas no final das contas, o denominador comum é a humanidade.

Proibir ou obrigar uma pessoa de fazer alguma coisa por uma característica como cor, gênero ou credo? Não, não pode. Essa é a base da humanidade moderna. Tem que ser a rede de segurança mínima. Agora, quando a gente começa a considerar a sociedade, todo direito tem um limite claro: o direito alheio. Seu direito humano a alguma coisa não pode passar por cima do direito humano de outra pessoa.

Mesmo que argumentemos que é um direito humano poder formar relações de afeto com outros seres humanos, ainda estamos falando desses limites. Você tem o direito de poder buscar relações legais com outras pessoas, e também tem o direito de negar relações legais com outras pessoas. Só funciona se ambos os seres humanos tiverem seus direitos preservados. Por isso é impossível garantir uma relação amorosa para uma pessoa: invariavelmente essa relação passa pelo direito do outro de aceitar ou negar essa relação.

É virtualmente impossível num mundo de quase 8 bilhões de pessoas, mas existe a possibilidade sim de nenhuma outra pessoa querer se relacionar amorosamente com você. Nenhuma pessoa pode ser obrigada a se sentir atraída por você, assim como você não pode ser obrigado a se sentir atraído por nenhuma outra pessoa. É por isso que o direito de formar relações existe no sentido de não ter nenhum impedimento externo à vontade de duas pessoas legalmente capazes. Nem Estado nem indivíduo tem poder de proibir duas pessoas de formarem um relacionamento, se essa for a vontade das duas pessoas e ambas forem oficialmente capazes de tomar essa decisão. Eu estou escrevendo essas ressalvas para tirar pedófilos e abusadores de incapazes em geral da jogada, a partir daqui, considere-as feitas.

Quando eu discuto o argumento do texto referenciado, não estou discutindo só a ideia da pessoa em questão, porque eu já tinha lido isso em inglês várias vezes antes disso. Sob o risco de ser repetitivo: é impressionante como acompanhar a pauta de costumes americana é como ver é a brasileira com alguns meses de antecedência. Tudo o que começam a falar por lá invariavelmente vem pra cá. Os conservadores cristãos do governo brasileiro atual são o Trump com dois anos de atraso. O governo do Bolsonaro é basicamente o mesmo do Trump, mas num país mais pobre e relativamente insignificante no cenário mundial.

E a oposição (no campo dos costumes) é só uma cópia carbono das lacrações ianques. Sério, não tem uma fibra de originalidade em nenhum dos lados, são os americanos traduzidos para português. Nos EUA isso até gerou uma meme de trollagem contra os lacradores, uma orientação sexual chamada Super Hétero. Pra você ver, o assunto já surgiu, virou meme e foi ridicularizado pelos americanos antes de sequer aparecer aqui. O Super Hétero era uma pessoa que só se relacionava com o sexo oposto, excluindo transexuais. Surgiu meio sério, meio de brincadeira entre os jovens do TikTok, e é claro que acabou virando briga ideológica entre as pessoas mais velhas que esqueceram como adolescentes gostam de sacanear quem leva as coisas muito a sério.

Seja como for, é indicativo que já tinha gente preocupada com essa história de chamar de transfóbico quem não quer se relacionar com transexuais. Toda brincadeira tem seu fundo de verdade. Vários transexuais reclamam do preconceito de outras pessoas com sua condição, especialmente quando falamos de relacionamentos sérios. Tem gente que não topa nada, tem gente que acha que é só para sexo, e uma aparente minoria aceita namorar ou ter algo mais sério.

E ao analisar essa situação, é importantíssimo separar sua empatia da sua racionalidade. Sim, eu quero que todo mundo consiga encontrar um par e se sentir amado. Sim, eu torço para que ninguém fique sozinho contra sua vontade. Mas não, isso não significa que alguém deva ser pressionado para ficar com aquela pessoa. Eu posso ter toda a boa vontade do mundo com uma transexual, torcer para ela ser muito feliz, mas não querer ser eu o par dela. São sentimentos compatíveis. Da mesma forma que eu quero que meus amigos tenham relacionamentos felizes e saudáveis sem querer mudar o meu status de amizade, eu posso sentir a mesma coisa por um transexual.

Porque atração sexual não se controla. O máximo que você faz é controlar a expressão dessa atração, mas ela determina o que você quer ou não. Sim, pode ser muito complicado para quem não se aceita como é, mas esse problema nem precisa estar conectado com os gêneros. O ser humano é complicado, nem sempre o que a gente quer é o que a gente pode ou o que a gente acha que tem que fazer. E tudo bem.

Você pode querer o bem de pessoas que trocaram de sexo sem sentir atração sexual por elas. Argumentar – mesmo que por vias transversas – que rejeição é uma expressão de transfobia é absurdo. Não sei o quanto isso já está instaurado no Brasil, mas o papo de que não se sentir atraído por pessoas gordas é gordofobia já surgiu na mídia lacradora americana faz tempo. E é tão bizarro quanto: em tese, se você não for uma pessoa ruim e preconceituosa, tem que se sentir atraído por qualquer formato de corpo possível.

Não se sentir atraído, na opinião de quem defende esse argumento, é apenas uma expressão de preconceito. Como se você não soubesse o que quer, apenas estivesse se limitando por pressão social externa. E aí, vão surgindo os bizarros argumentos racionais pela atratividade. No exemplo do texto em questão, tem o da popularidade da pornografia com transexuais. E é verdade que tem muita gente que gosta de ver. Agora, isso quer dizer que todo mundo quer fazer na prática? Acho que é importante dizer para isso as novas gerações: pornografia não é vida real. É uma versão exagerada e muitas vezes estilizada dos desejos sexuais humanos.

Mesmo que um cidadão assista filmes pornôs com transexuais, isso não quer dizer que ele queira ter uma relação amorosa com um transexual. Essa conexão não pode ser feita em nenhuma categoria de pornografia, o que é fantasia e o que é desejo prático podem ser bem diferentes na vida real. Começo a desconfiar que gente que passou a vida toda na internet já esteja tendo dificuldades de separar as coisas. Não sei quanto a vocês, mas mesmo que eventualmente pareça divertido, eu não queria a vida sexual de um ator pornô pra mim. Na prática seria cansativo e provavelmente repetitivo. E com certeza com muita coisa ruim e perigosa que a câmera não pega.

Falar sobre a popularidade da pornografia trans é tentar racionalizar atração. São coisas que não se misturam. Atração existe como existe, e não pode ser forçada. E agora a gente entra na parte mais escrota: não tem boa vontade que faça uma pessoa que está vendo um homem de peruca achar que aquilo é uma mulher. Infelizmente, alguns transexuais realmente não conseguem entregar um pacote feminino o suficiente para ligar a atração de quem gosta de mulher. E, infelizmente, algumas transexuais não conseguem ser masculinas o suficiente para atrair quem gosta de homem.

Não é que eu não queira que a pessoa viva como se enxerga, é que eu, o indivíduo, não estou concordando visualmente com a imagem que ela quer projetar. E aí, não tem como forçar atração. Se para você uma imagem feminina é essencial para iniciar atração, não são muitos transexuais que conseguem fazer isso. Até voltando à pornografia: quase sempre são os exemplos mais geneticamente propensos e pessoas mais esforçadas com a aparência que aparecem nesses filmes. O transexual médio não é parecido com atores e atrizes pornôs, assim como a maioria de nós não é.

Não dá para ver uma pessoa com características masculinas óbvias usando roupas e maquiagem tipicamente femininas e seu corpo reagir aquilo como se fosse uma mulher. Não dá. Eu até gostaria que fosse possível: ninguém tem mais oportunidades que o bissexual. Adoraria ter duas vezes mais chances de encontrar uma pessoa compatível, mas a natureza é como é. Estou limitado às mulheres por questões de atração sexual, e não adianta teimar. Quem prega que as pessoas devam ser como acreditam que sejam não pode se punir por sentir o que sente, não é mesmo?

E mesmo que a pessoa trans seja excepcionalmente hábil em apresentar a imagem do gênero ao qual se diz pertencer, ainda temos toda a questão das genitálias. Em tese eu entendo que é uma bobagem se prender por isso, mesma lógica da bissexualidade no parágrafo anterior, mas se eu só me sinto bem tendo o monopólio do pênis numa relação, não tem motivo nenhum para achar que estou sendo uma pessoa ruim. Ninguém é obrigado a ficar comigo e eu não sou obrigado a ficar com ninguém. Impossível ser culpado por uma escolha que você nem pode fazer.

Nunca force uma pessoa a se apresentar com o sexo que não quer se apresentar, nunca force uma pessoa a se relacionar com o sexo que não quer se relacionar. Muito me admira que justamente quem prega a liberdade de ser do sexo que quiser pregue que os outros sejam forçados a enxergar alguém com um sexo que não concordam estar vendo. Se você se diz mulher, eu não tenho direito de te proibir, e nem quero te proibir. Agora, se eu te vejo como homem mesmo você dizendo que é mulher e a única coisa que eu te impeço de fazer é ter uma relação comigo, algo que você nunca teve direito pra começo de conversa, onde está o problema?

Eu sempre pude fazer isso. Tem mulheres que viram bodybuilders e ficam tão masculinizadas que mesmo vendo elas nuas você ainda registra como forma masculina na cabeça. Tem homens tão femininos de corpo que mesmo vendo que tem um pênis sua mente fica confusa: “se eu não tivesse visto aquilo…” O que a sua mente vê é incontrolável. E não existe transfobia na atração de um ser humano pelo outro.

Existe talvez na forma como a pessoa externa isso: eu entendo que tem muita gente que queria se relacionar com transexuais, mas tem vergonha ou medo. Muitas vezes essas pessoas até viram conservadores horríveis para esconder o sentimento, mas é absurdo achar que a maioria de nós somos assim. E é absurdo achar que o cidadão médio não enxerga diferenças evidentes entre o sexo aparente e o declarado. A maioria das pessoas não chega nem perto de ser unanimidade em questão de atração sexual, não há motivo algum para achar que trocar de sexo mudaria isso.

Continuamos todos dentro da mesma lógica de sempre: não podemos ser proibidos de ter relações legais, mas não existe obrigação nenhuma de ninguém querer ficar com você. Esse papo furadíssimo de obrigação me cheira a argumento de incel, e esse era o último lugar que eu esperaria uma convergência…

Para dizer que são vários parágrafos para dizer “dã”, para dizer que precisamos experimentar de tudo (experimenta um pote de veneno), ou mesmo para dizer que não sabia que pornografia não era vida real: somir@desfavor.com


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