Desfavor do Ano: Repetição.

2021 está acabando, e como é tradição aqui no Desfavor, vamos escolher o pior acontecimento do ano para comentar. O problema é… ficou quase impossível diferenciar 2021 de 2020. Os mesmos problemas, muitos piorados.


2021: o ano repetido e o Desfavor do Ano.

SALLY

Esta pandemia está sendo um grande Dia da Marmota: alternam-se momentos de confiança, achando que ela acabou, seguidos por descuidos e flexibilizações precoces com momentos de nova variante que mostra que não só não acabou como que o vírus está se adaptando muito bem ao ser humano.

2021 está se mostrando um 2020-B:mesmos erros, mesma mentalidade, mesma negação. Com a diferença de que em 2021, já com vacinas disponíveis, o Brasil teve mais mortes do que em 2020, quando ainda não existiam vacinas. O que explica que um país tenha mais mortos quando há vacinas? O péssimo comportamento das pessoas.

O Brasil está no topo da lista de números de mortos e número de mortes absolutas e também do número de mortes proporcionais. É o segundo país de todo o mundo onde mais morrem crianças. Aprendeu alguma coisa? Nada. Está todo mundo se reunindo no Natal, vai todo mundo comemorar réveillon e provavelmente vai todo mundo pular carnaval, para, em março, com todo tipo de vírus na rua, mandar crianças não vacinadas para a escola.

O que mais entristece não são os erros, apesar de que mais de 600 mil mortes (sem subnotificação passa do milhão) entristecem bastante. O que mais entristece são as mortes em vão, pois ninguém aprendeu nada. O grau de desconexão com a realidade é absurdo: mesmo gente que perdeu uma pessoa amada continua achando que não é nada, que já passou, que a Omicron “não é perigosa, pois não mata”. É desesperador.

Estava olhando os comentários com IPs programados para caírem na nossa pasta de spam (tem certas pessoas que preferimos nem ler, vão automaticamente para lá) e comparando os comentários de 2020 com os de 2021. Iguais.

Alguns literalmente iguais, quase um corta-cola: nós somos alarmistas, exagerados histéricos e alguns inclusive nos chamando de “hipocondríacos”, o que mostra o total desconhecimento da palavra. Aí vem um período de muita merda, esse tipo de comentário para e quando os casos caem, os mesmos comentários voltam. As pessoas têm uma enorme deficiência cognitiva, não conseguem entender o que é uma doença que vem em ondas.

Então, mais do que dizer que 2021 foi igual a 2020, o Desfavor do Ano é que ninguém aprendeu NADA, o que torna muito provável que 2022 também seja uma repetição de 2020 e de 2021. Provavelmente, seja menos dramático, por existirem vacinas, mas se fosse depender do comportamento do povo, seria um holocausto. Ninguém aprendeu nada. Quando o brasileiro quer acreditar em algo, você pode mostrar as evidências mais contundentes que, mesmo assim, ele se recusa a rever seu pensamento.

Talvez dessa vez o povo se safe pelas vacinas, mas eventualmente, vai acontecer alguma situação em que a sobrevivência coletiva dependa de aprendizado. E, quando ela chega, eu vou assistir o brasileiro ser extinto com um saco de pipoca nas mãos, pois, francamente, salvo honrosas exceções, ele merece. Qualquer animal que não seja capaz de aprender com as experiências vividas está fadado à extinção.

2021 e ainda tem gente (inclusive o Presidente da República, que continua no cargo) defendendo tratamento precoce, tomando Cloroquina, tomando Ivermectina, colocando em dúvida a eficácia ou segurança das vacinas e até duvidando da existência ou do perigo que o vírus representa. Zero evolução.

Mesmo entre os brasileiros que se vacinaram, poucos o fizeram por consciência. A maioria o fez pelo status de tomar a vacina X, pela fotinho em rede social, por ser grátis ou por todo mundo estar fazendo. Quantos % da população foi a um posto consciente da importância das vacinas como um pacto coletivo? Pouquíssimos, pois se tivessem essa consciência, saberiam que não adianta tomar vacina e ficar bundeando, pois, mesmo vacinados, os contágios continuam: “se EU não vou morrer, então foda-se, vou ao shopping, vou à praia, vou fazer a unha”.

Este texto não é sobre a pandemia, é sobre a consciência (ou a falta dela) do brasileiro médio. A pandemia é apenas um dos muitos problemas que vai decorrer disso. Um povo consciente é a base de qualquer sociedade decente e, no entanto, isso não parece ser uma meta e nem ao menos é valorizado no Brasil. Mesmo quando vai trocar de país o brasileiro pensa em tudo, menos nisso: vou para o país X que tem a economia boa, vou para o país Y que fala o mesmo idioma.

Um povo sem consciência, sem educação, sem noção de coletividade se afunda, cedo ou tarde. O que hoje está ótimo, amanhã pode estar uma merda. Tudo oscila: economia, inflação, política, moda e até os pactos sociais, mas um povo consciente, educado e com o olhar voltado para preservar a coletividade sempre vai se sair muito bem diante de quaisquer mudanças. E o brasileiro não almeja isso, ele deseja bens materiais, ele deseja estar certo, ele deseja não ser contrariado. O brasileiro foca em satisfazer seus desejos imediatistas.

Em resumo, um povo com escolhas e prioridades erradas, convicto delas. Um povo que não aprende com os erros. Um povo incapaz de escutar, refletir e mudar de opinião. Um povo que, para estar certo, descarta qualquer evidência que lhe desagrade. O que vocês acham que o futuro lhes reserva?

O futuro do país não depende de quem vença as próximas eleições presidenciais. O futuro do Brasil não depende da economia. O futuro do Brasil não depende de nada se não que o brasileiro pare de se comportar como quem tem titica de sabiá amarelo na cabeça. E o brasileiro não percebeu isso. E vai continuar culpando fora. E vai continuar se fodendo. E talvez foda o mundo todo junto.

Parabéns pelo zero aprendizado. Nem mesmo manadas ou matilhas de animais conseguem esse tipo de imbecilidade: perceber o que está matando seus membros e persistir nisso.

Para dizer que eu tenho inveja das praias do Brasil, para dizer que eu sou exagerada ou ainda para dizer que quer ir morar nos EUA pois lá tem a Disney: sally@desfavor.com

SOMIR

O difícil de escrever o texto nesse ano não foi decidir o tema, Sally e eu sugerimos a mesma coisa ao mesmo tempo. Era óbvio assim. O difícil mesmo é não ser repetitivo. Segue a minha tentativa:

Ninguém gosta de ficar em estado de alerta muito tempo. O corpo humano sabe o que fazer quando estamos nos sentindo ameaçados, mas isso tem um custo. Um coquetel de substâncias, hormônios e afins é disparado, o sangue começa a se concentrar em locais onde vai ser mais necessário, o cérebro aloca tudo quanto é recurso para nossos sentidos ficarem afiados… do ponto de vista do organismo, uma pandemia e um leão correndo na nossa direção não são muito diferentes.

Embora sejam, e muito. A evolução da vida na Terra resolveu tratar doenças como fatos da vida, instalou sistemas imunológicos nos seres mais complexos e foi pra briga. Na maior parte do tempo, um ser como um cão, um gato, um golfinho ou um humano não tem a menor noção do que acontece nessa guerra infinita entre micro e macroorganismos. O bicho doente fica quieto, evita gastar energia e espera o problema sumir.

Doença não é algo que deveria estressar a mente de nenhum animal. Afinal, não tem pra onde correr. Você não sabe que tem até ter. Instintos selecionaram os indivíduos que tinham rejeição às fontes mais óbvias de doenças (não é à toa que coisa estragada tem cheiro ruim para nós), mas depois que a contaminação já aconteceu, aconteceu. Torce para suas defesas funcionarem, talvez coma um matinho e pronto.

O ser humano evoluiu num caminho alternativo: um cérebro sedento por energia que pensava em milhares de coisas a mais que seus companheiros de planeta. Assim, começamos a pensar nas doenças não mais como meros fatos da vida, mas como algo que podemos evitar ou tratar. Isso trouxe para o cérebro um problema para o qual não tinha sido projetado para lidar. Todo ser humano vivo tem alguma noção sobre doenças, mesmo os mais isolados do resto da sociedade.

Mas quanto mais civilizados, maior a percepção sobre a capacidade de ajudar o corpo a se curar. Com a ideia de que se pode agir, vem uma série de sentimentos instintivos junto. Não é mais algo que acontece, começa a se parecer mais com uma ameaça imediata. O ser humano consegue tratar uma ameaça invisível como se fosse um predador próximo.

Ainda bem. Sem isso não teríamos medicina e a expectativa de vida da espécie não seria pelo menos o dobro do que era poucos séculos atrás. Mas nada é de graça nessa vida: doenças nos fazem agir como se estivéssemos enfrentando um perigo imediato. E isso, para voltar ao começo do texto, tem um preço na quantidade de estresse que fazemos o corpo passar.

Ninguém gosta de ficar estressado muito tempo. Ninguém foi feito para ficar estressado muito tempo. É meio como se o corpo estivesse te dizendo: se depois de tanto tempo o leão ainda está na sua cola, é porque você não tem chance mesmo. Corpos e mentes estressados começam a desistir do estado de alerta. Não faz parte do plano original do corpo ficar tanto tempo assim fugindo do predador: você deve estar fazendo algo errado.

Os leitores mais atenciosos já devem ter percebido onde eu quero chegar: é natural baixar a guarda depois de tanto tempo de pandemia. É natural porque não tem energia que dê conta de estar pronto para fugir do leão depois de dois anos de perseguição. Sim, tratar doenças como algo que podemos prevenir e enfrentar com algo além das nossas defesas naturais é uma das maiores vantagens da espécie, mas ao mesmo tempo, gera um problema de percepção da realidade. O instinto não foi feito para lidar com questões complexas da vida em sociedade.

Mas a sua mente racional foi. 2021 foi um clone de 2020, na pandemia e nas reações da maioria das pessoas. Isso se explica por motivações políticas e desinformação, mas também pelo esgotamento de pessoas vivendo à base da reação instintiva. A pessoa cansa de ter medo, faz besteira, volta a ter medo, cansa de novo…

O Desfavor do Ano é a falta de aprendizado, especialmente no que tange o lugar da mente onde se guarda a informação sobre a pandemia: não é mais no instinto, é na razão. Se você deixou de ter medo, é compreensível. Cansa ficar com medo. Cansa mais do que qualquer outra coisa, porque esgota o corpo e a mente ao mesmo tempo. Agora, o que cansa muito menos é trazer isso para o campo racional e encarar um problema com o melhor da sua lógica.

Se você acha que não devemos ficar com medo da pandemia, eu concordo com você. Mas não que possamos ignorar sua existência. O medo esgota sua função no momento, é o planejamento e a disciplina que te carregam dali pra frente. Você pode deixar o medo para trás e continuar tomando cuidados para não se contaminar do mesmo jeito. Só muda o comportamento de lugar da mente: não faça por medo, faça por ser um hábito mais eficiente para se manter saudável.

Podemos ficar escrevendo aqui coisas que podem te dar medo, mas escolhemos compartilhar informação. Informação que vira comportamento mais seguro. O problema da repetição de 2020 em 2021 é justamente esse ciclo de medo e esgotamento que tanta gente passa sem entender. Medo cansa. Ninguém se segura dois anos com medo, e como estamos indo para o terceiro com esse problema, se você ainda não trocou o medo pela razão, sugiro que comece a fazer.

Olhe para os dois lados antes de atravessar a rua, use máscara em lugares fechados. Não coma fast-food todos os dias, vacine-se quando for sua vez. A pandemia tende a acabar, talvez a vacina já dê conta disso nos próximos meses, mas talvez não. Enquanto isso, a melhor coisa a se fazer é parar de se guiar pelo que te dá medo ou não, porque o medo vai variar de acordo com sua energia disponível a cada momento.

Quando essa merda acabar, vai ser fácil de saber. Não precisa se preocupar em perder tempo. Por enquanto, o problema ainda existe, e para lidar com ele, existem regras relativamente simples que podem te ajudar a sofrer menos. Não caia nessa repetição irracional que tanta gente caiu. Não precisa ter medo, só precisa tomar atitudes mais seguras por algum tempo. Deixa o cérebro relaxar um pouco do modo reativo e dê para ele algumas regrinhas simples pra seguir e toque o resto da sua vida do melhor jeito que puder.

O tempo do medo passou. A pandemia não. Se estiver preso nesse ciclo vicioso de pânico e apatia por esgotamento, a saída está na razão com ações previsíveis e replicáveis no longo prazo. Máscara, limpar a mão, evitar aglomeração e tomar vacina. Só fazer isso e missão cumprida. Vamos sair de 2020?

Para dizer que a gente se vê no Desfavor do Ano 2022, para dizer que dois anos falando da mesma coisa é doença, ou mesmo para dizer que nem percebeu que o ano estava acabando: somir@desfavor.com

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Comments (22)

  • Que o ano que está começando agora não seja só um replay desse que passou. Porque ninguém aguenta mais tanta desgraça.

    • Só depende de você, de como você vai lidar com o que vai acontecer. Tente aprender algo e será um ano de aprendizado.

  • Sally e Somir, espero e desejo encontra-los aqui em 2022.
    Agradeço pelos textos, todos, incluindo os que não li ou não apreciei tanto, valeu!!
    Abraços à ambos, e boas considerações aos impopulares por suas contribuições.
    Que venha 2022!!!

  • O problema de aprendizado do Brasil vai além da incapacidade de aprender com os próprios erros. O Brasil também é incapaz de praticar a observação e replicar aqui modelos que deram certo em outros lugares, e evitar modelos de gestão que se apresentaram falhos em outros cenários. E isso não se refere apenas à pandemia. Várias outras áreas, como educação, economia, segurança…muitas vezes, basta olhar que determinada ideia não deu certo em outros lugares, e antever que não dará certo aqui também. Mas aí, a razão pela qual não trilhamos esse caminho foge à minha compreensão. Seja pela teimosia de achar que aqui “é diferente do resto do mundo, então não vai ser a mesma coisa” (ignorando o fato de que embora não existam 2 países completamente idênticos no mundo, quem fez mais ou menos a mesma coisa em prol de vacinas e isolamentos se saiu bem), seja por mera rejeição conspiradoida a determinadas atitudes (vide à postura anti-lockdown do governo), nossa maior dificuldade não foi apenas aprender com nossos próprios erros. Foi também aprender com os erros dos outros. O que é ainda pior, pois aprender quando o outro erra nos permite a vantagem de analisar antecipadamente o que acontece quando fazemos tal coisa. Aprendizado deveria ser a palavra de ordem para 2022. Mas eu duvido pra caralho que isso vá ocorrer.

    Boa sorte a todos em 2022. Porque no que depender da (in)capacidade do brasileiro de mudar de rumo, é de sorte que vamos precisar

    • Concordo com cada palavra sua, Gui. E assino embaixo com uma frase que eu já usei várias vezes em outros comentários meus aqui: “Brasileiro Médio: nasceu burro, não aprendeu nada e ainda esqueceu a metade”.

  • Obrigada, Sally e Somir.
    Desfavor foi de grande ajuda nesses dois anos no caso da COVID. Não que eu não soubesse a respeito, mas ler e reler cada post a respeito me fez repassar para a família, onde atualmente sou vista como “cagona”, mas tá bom, falei e falei e falei, não me arrependo, era minha missão fazer todos acordarem para um melhor comportamento.
    Óbvio que alguns viajaram com crianças todo final de semana para bundear, para a praia e fins de mundo cheio de gente iguais a eles. Meu espanto é não terem se contaminado ainda, se acontecer eu vou dizer: – eu avisei!
    Como não ter medo? Tenho sim. Não quero ficar doente, nao gosto de dor. Medo é sinônimo de preservação da espécie, e na minha família só tem gente linda.
    Em Março / 2022 já serão 2 anos saindo apenas para o necessário.
    Desfavor me acompanhou nessa jornada e por isso sou grata.
    Que venha 2022, que seja melhor, mas se for igual e ainda estivermos saudáveis já será um grande lucro, quem sabe com a quarta ou quinta doses de vacina.
    Vacina salva vidas sempre foi o meu Mantra.
    Obrigada pelos toques, pela acolhida e pelos lembretes que me ajudaram a ficar mais alerta.
    Até 2022.

  • Precisei ir no supermercado dia 24 de dezembro… já sabia o inferno que estaria, dito e feito. Peguei o que precisava e sai em 3 minutos, eu com minha melhor máscara, tentando manter distância e o povo lá, bem confortável na aglomeração, máscara no queixo, baixando a máscara para falar, respirando no cangote da pessoa à frente na fila… é triste, mas eu não tenho mais tanta pena quando escuto que morreram x pessoas. Darwin e eu gargalhamos.

    • Desculpa, você está falando da gente?
      Eu não tomei Pfizer (no meu país nem pode escolher vacina) e nunca pisei em Cancun (ondeio praia)

      • Acho que o anon estava se referindo a alguns influencers que passaram esse tempo todo pagando de certinhos e engajados mas não cumpriram nada, um monte de posts e vídeos de festinhas de celebridades por aí… E sim, teve gente preferindo Pfizer porque sempre foi a mais aceita internacionalmente, pelo menos até o dia em que escrevo isto.

  • Antivaxxer NÃO!

    Se pra ter a vacina a disposição eu tivesse que pagar e tivesse condições para tanto, fazia questão.
    Felizmente, por mais capenga que tenha sido a organização da vacinação, bem ou mal temos uma estrutura que nos fornece a vacina sem ter que paga diretamente por isso.
    E eu já esperava que tivessemos a bomba que tivemos no inicio do ano por meio de indicadores como o desfavor e uma amiga que estava trabalhando no front. Cantei em Fevereiro a bola pra mimja ex de que iamos ultrapassar no periodo de Março-Abril a faixa das duas mil mortes diárias. Dito e feito.
    E olha, comigo papo de antivaxxer não cola. Uma pessoa que conheço de infância tem problemas sérios pra caminhar por conta da Poliomielite.
    Quem diz que os EUA só fazem coisas ruins não sabe a luta de anos com o March of Dimes, que começou com o apoio do presidente dos EUA na época… Franklin Delano Roosevelt. Foram quase duas decadas pra se chegar na primeira vacina e duas décadas e meia pra chegarmos na vacina contra a Poliomielite como conhecemos.

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