Caminhos.

Jorge estava com dores no estômago há semanas, o médico sugerira uma endoscopia para entender melhor o que acontecia. Deitado numa maca na sala de pré-cirurgia, esperava o anestésico fazer efeito. O anestesiologista acabara de pedir para que ele contasse de dez até um.

“Dez, nove, oito, sete… seis… cinco… qua…”

Ele foi cedendo à escuridão aos poucos, sentindo uma onda de relaxamento atravessar o corpo. Logo sentiu um susto, que o fez abrir os olhos rapidamente.

Não tinha mais sensação física, e diante de sua visão, enxergava o próprio corpo deitado na mesa de operação. A equipe médica parecia desesperada, aplicando uma massagem cardíaca vigorosa. Enfermeiras corriam com tubos, injeções, demorou algum tempo para fazer senso da situação. Olhou ao redor, viu as paredes do hospital, era como se estivesse flutuando próximo ao teto. Braços e pernas ainda estavam ali, mas não tinha controle sobre os membros. Ainda vestia o avental azul.

Deveria ser uma cena angustiante, mas não mexia com seus sentimentos. Era como observar um estranho. Seu corpo parecia estar lá embaixo, mas não sentia mais conexão com ele. Nem mesmo a ideia de posse. O verdadeiro ímpeto do momento era sair dali. Jorge tenta se mover.

Sem sucesso. Quanto mais tenta controlar seu corpo, mais lenta a cena abaixo dele se torna. Médicos e enfermeiros se movem de forma mais e mais lenta até finalmente ficarem estáticos. É como se o tempo tivesse parado. E só aí que ele se sente livre.

Primeiro um avanço na direção da parede, depois um giro de corpo que o coloca diante do teto da sala de cirurgia. Ao se virar, percebe que o corpo está atravessando as luminárias, como se fosse imaterial. São mais alguns minutos ou horas até finalmente entender a nova forma como se movimentava. Ele gira para uma posição mais confortável, pelo menos no ângulo da visão. Se vê de pé num canto da sala, o mundo fazendo mais sentido enxergado de onde estava acostumado.

Ainda sem interesse real no corpo que os médicos tentavam reanimar, parados no tempo com expressões compenetradas, Jorge se volta para as portas do centro cirúrgico, prevendo que seria capaz de atravessá-las, mesmo estando fechadas. O que realmente acontece.

Está na sala de pré-cirurgia, e logo depois num dos corredores do hospital. Uma enfermeira parecia apressada no momento que foi congelada, corpo inclinado e passo muito mais largo que suas pernas presumiriam. Ele não pode deixar de notar como ela é atraente, especialmente chamativa pelos seios volumosos por baixo do uniforme. Ele se aproxima, e depois de olhar para os lados, coloca a mão no busto da mulher.

A mão atravessa o corpo dela como se não existisse. Um tanto quanto frustrado, completa a ação atravessando o corpo da enfermeira. Enquanto está passando por ela, tudo fica escuro. Do outro lado, dá de cara com outra mulher.

“Homem não presta mesmo!”

Ele se assusta. A mulher tinha a pele bem morena, grandes olhos negros e cabelos presos num coque, ela vestia o mesmo tipo de avental que ele.

“Você está aqui também?” – Jorge pergunta, ainda assustado.

“Eu ia te perguntar a mesma coisa, antes de você tentar passar a mão na enfermeira.” – ela está com um olhar de reprovação, mas não passa uma imagem agressiva, há um certo humor no tom da voz e nas expressões.

“Eu queria saber se eu podia tocar nas pessoas…” – ele explica.

“E a primeira coisa que você tenta é pegar no peito dela?”

“Eu não estava pensando… e…”

“Deixa pra lá, tem coisa mais importante para pensar.”

Jorge rapidamente entra no assunto mais desejável:

“Você também estava numa cirurgia?”

“Não, eu estava com um problema no pulmão, internada aqui perto, comecei a passar mal agora de pouco… só lembro da minha colega de quarto gritando, e depois, tudo parou.”

“Você se viu por cima do seu corpo?”

“Sim, demorou um pouco para conseguir me mexer.”

“Igual. Acho que a gente morreu… mas… é estranho, eu não sinto nada.”

“Eu tenho duas filhas pra criar, não posso morrer não. Mas eu também… eu também não estou sentindo nada de verdade. É só algo que eu sei, não que eu sinto…”

“Eu quero sair daqui pra ver o que tem lá fora. Vamos?”

“Não sei, vai que a gente tem que ficar perto do corpo?”

“Você sente vontade de ficar perto dele? Porque eu estou com uma vontade enorme de sair…”

“É… eu também.” – a mulher olha pra baixo, pensativa por alguns momentos. Logo ela se vira e começa a flutuar pelo corredor.

Jorge acompanha, seguindo a mulher. Depois de alguns momentos, ela se volta para ele:

“Você está olhando a minha bunda, né?”

De fato, Jorge estava. A roupa da sua colega de anomalia temporal tinha uma conveniente fenda na parte traseira, e a mulher tinha lá seus predicados por esse ângulo. Ele olha para ela como não estivesse entendendo, e rapidamente se posiciona ao seu lado.

“Meu nome é Jorge, e o seu?”

“Camila.”

“Você sabe onde é a saída?”

“Não… mas, por que a gente está usando os corredores? É só atravessar numa direção até sair.”

“Verdade!”

Os dois seguem na mesma direção, Jorge começa a ganhar um pouco de frente.

“Bundinha bonita a sua.” – ela diz com voz de deboche.

Jorge se volta para ela, expressão envergonhada. Ele tenta fechar a fenda, Camila ri. Mais alguns cômodos atravessados até que os dois se veem do lado de fora. O sol está brilhando, pessoas paradas onde estavam quando o tempo parou, eles estavam na altura do segundo andar. Mas a altura não gerava desconforto.

Camila aponta para um pássaro congelado no tempo, asas abertas um pouco acima de suas cabeças. Por alguns segundos, os dois contemplam a cena.

“Se a gente morreu mesmo, por que só nós dois estamos nos vendo? Não deveria ter mais um monte de gente morta?” – a mulher se volta para Jorge.

“Será que a gente morreu ao mesmo tempo, e é por isso que estamos juntos aqui?”

“Eu não sei como isso funciona. Mas… olha… a gente está voando!”

Jorge sorri. Com um movimento brusco, ele se ergue alguns metros no ar.

“Talvez… talvez dê para ir para o espaço!”

“Não parece uma boa ideia, e se a gente se…”

“Eu já volto!”

Jorge se lança céu acima, numa velocidade que parece só aumentar. Ele não sente resistência nenhuma em seus movimentos. O céu, do azul claro da manhã vai escurecendo aos poucos até se tornar negro. Ele pode enxergar as estrelas, e ao se voltar para a direção da qual veio, vê o planeta Terra ocupando sua visão. Primeiro vê a cidade da qual saíra perder a definição, depois vai começando a ver o cinza das construções se tornar o verde da natureza, e depois o azul toma conta.

A visão é espetacular. Ver em fotos é totalmente diferente de presenciar a cena ao vivo. Depois de alguns giros, consegue enxergar a Lua. São meros segundos até chegar nela. A Terra ainda à vista no horizonte torna tudo muito mais impressionante. Não sente frio, não sente fome, não sente medo. A sensação é muito boa.

Logo, ele resolve disparar em direção ao Sol. Impossível errar o ponto mais luminoso de todos. Ele voa pelo o que parecem alguns minutos até a estrela tomar conta de toda sua visão. A luz branca não o faz sentir calor ou incomoda os olhos. De perto, o Sol não se parece com as imagens que vira. É tudo luz. Ele se afasta mais um pouco para poder ver um pouco melhor. Não tinha tanta graça como imaginou. Ele começa a dar voltas ao redor da estrela, brincando com sua velocidade absurda.

É quando finalmente percebe um enorme problema: de onde estava, não podia enxergar nada além da escuridão do espaço e algumas estrelas. A Terra… a Terra era invisível da sua localização. Não sabia nem se estava no mesmo plano dos planetas. Ele pensa como gostaria de contar para Camila o que estava vendo, mas não tem mais a menor ideia de onde ela está.

Ele se lembra da escola e como aprendeu que os planetas refletem a luz do Sol. Talvez se fosse na direção do objeto mais brilhante, achasse um deles. Qualquer um, para se situar novamente. E é isso que ele faz: dispara na direção de outro ponto luminoso. Não há muito no que se basear para definir sua velocidade. Mas, o ponto luminoso começa a aumentar na sua visão.

Não era um planeta. Era uma estrela. Duas, na verdade. Uma delas diante dele, e outra próxima, bem mais brilhante que as outras no fundo da visão. Ele não estava mais no Sistema Solar. Para todos os lados que olhava, tudo parecia indiferenciável. E assim, ele novamente viajou para o próximo ponto que acreditava ser mais brilhante.

Era o Sol? De perto é impossível saber. De longe… de longe não tinha o que usar como medida de tamanho. Era tudo igual. Ele dispara numa direção aleatória, esperando encontrar algum dos planetas, mas novamente, é impossível descrever em que velocidade está realmente se movimentando. Não há nenhum ponto de referência. Nenhum.

Uma semana depois, no hospital:

“A senhora é parente dele?” – uma enfermeira pergunta.

“Não… eu recebi alta hoje, me disseram que tinha um Jorge aqui, eu queria ver se era conhecido.” – Camila responde enquanto olha para o corpo inerte de Jorge.

“Não veio ninguém da família dele, devia ser muito sozinho. Está em coma desde que teve uma reação à anestesia, coitado. Era seu conhecido mesmo?”

“Sim, mas… a gente pegou caminhos diferentes na vida.” – Camila segurou a mão de Jorge enquanto uma solitária lágrima escorria em seu rosto.

Para dizer que essa realmente foi uma surpresa, para dizer que detestou esses nomes normais, ou mesmo para dizer que faria a mesma coisa: somir@desfavor.com

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