No meu tempo, a sigla que identificava as pessoas com sexualidade “diferente” era GLS. Gays, Lésbicas e Simpatizantes. Esse tempo já passou, atualmente a sigla é escrita como LGBTQIA+, mas não parece estar terminada: de tempos em tempos adiciona-se mais e mais letras, para de alguma forma representar o máximo de pessoas possíveis. Eu entendo a lógica da representatividade, mas gostaria de argumentar sobre o que a sigla antiga tinha de valioso…

Quem já leu mais que um texto meu sabe que eu não sou de nostalgia ou de conservadorismo: vivo dizendo que o mundo só melhora a cada dia que passa (em média), e que apesar dos pesares, temos a humanidade mais inteligente, justa, saudável e livre da história atualmente. Quem gosta de passado é quem sente saudade de ser mais jovem, porque os fatos não corroboram com esse tipo de pensamento.

O que não quer dizer que o presente seja perfeito, longe disso. Temos basicamente tudo para melhorar ainda. Eu faço essa ressalva antes de entrar no ponto do texto porque não quero passar a impressão de que o mundo era melhor no tempo da sigla GLS, mas sim que tinha uma ideia ali que parecia mais eficiente do que estamos fazendo agora. O mundo ainda avança com LGBTQIA+, mas será que tanto quanto poderia?

O que muito ativista parece esquecer é que não existe movimento isolado no universo: defender os direitos das pessoas que tem sua sexualidade e personalidade reprimidas é sobre elas, mas é sobre as pessoas ao redor delas. O avanço da causa é uma mistura do que ela significa para todo mundo, não apenas o grupo LGBTQIA+, afinal, o que une os LGBTQIA+ e os que não são é viver na sociedade humana.

E a sigla GLS tinha um pouco mais de lógica nesse contexto de mundo compartilhado. E eu digo isso porque para o cidadão médio me parece o grau de compreensão mais básico sobre as coisas. Ele entende que pessoas se sentem atraídas pelo sexo oposto, porque é isso que sempre viu na sua cultura; mas não é nada tão difícil assim entender que tem gente que sente atraída pelo mesmo sexo. Tem gente que é diferente, e essa gente está claramente definida pelo G e o L. Na lógica binária de uma pessoa mais simples, existe ela e existem gays e lésbicas.

É uma variação claríssima sobre o que está acontecendo com o outro. É quem nem você, mas ao contrário. A pessoa pode ter sido criada para achar que são pessoas ruins, que é “errado” ou que sua divindade preferida vai puni-las pela eternidade, mas ela entende o que diabos está acontecendo. Ela tem um caminho mental até a pessoa diferente dela.

E como esse caminho mental é uma linha reta, ele pode ser percorrido com um pouco mais de educação, e especialmente, convivência. Sabemos que na prática até mesmo os dogmas religiosos mais severos acabam sendo relativizados pela vida real da pessoa. Esse mix de pecado, culpa e redenção/perdão que atrai a maioria da população mundial. Não está fora da realidade mesmo do cidadão mais simples ir à Igreja Evangélica falar amém para todo tipo de preconceito cuspido pelo pastor e dar bom dia para a vizinha transexual na manhã seguinte.

O ser humano vive nesse estado de incoerência entre o que pensa e o que acha que pensa. É no dia a dia que a gente vê o que realmente está acontecendo nesse mundo, como as pessoas reagem de verdade. E por mais que ainda exista muito preconceito e violência contra o público LGBTQIA+, na maioria do mundo civilizado as pessoas não ligam tanto assim para o que cada um faz com sua sexualidade.

Desde, é claro, que a convivência não gere incômodos. Infelizmente, é fato histórico que as primeiras coisas que desaparecem na hora do aperto são o senso de justiça e liberdade. O ser humano acuado se torna mais preconceituoso e enxerga qualquer diferença como fonte de perigo. É difícil escrever este texto sem passar a impressão que eu quero que gays, lésbicas e afins se escondam novamente, porque não é o meu objetivo; é mais sobre o quanto o movimento LGBTQIA+ pressiona o status quo social e como isso pode estar sendo apenas um erro de comunicação.

GLS. Gays, lésbicas e simpatizantes. O cidadão médio sabe o que tudo isso significa. E, convenhamos, para o cidadão médio, esse é basicamente todo o interesse que existe sobre o tema. A mulher que tem três filhos e vive de auxílio governamental numa favela perigosa não costuma ter tempo para entender as diferenças entre um gay e um queer. E mesmo se você tentar explicar isso para ela, é capaz dela ficar irritada com as sutilezas aparentemente inúteis.

O ativismo moderno oferece uma opção cheia de complexidades e nuances, onde você pode e vai ser punido pelos seus pares se cometer algum deslize, e o conservadorismo religioso moderno oferece o preconceito mais banal possível: diferente é ruim. O que eu enxergo como problema aqui é que LGBTQIA+ é uma sigla exclusiva, no sentido de que exclui. Não só o membro da sociedade em geral, mas a sociedade em geral do membro também.

A letra que mais faz falta é o S. Os simpatizantes foram retirados. Se você não se identifica com uma letra do LGBTQIA+, você está do lado de quem os LGBTQIA+ chamam de preconceituosos e muitas vezes, violentos e assassinos. Sim, eu até entendo que “simpatizante” seja uma palavra meio condescendente, mas você precisa ter uma capacidade intelectual um tanto acima da média para sequer entender isso. Por um tempo a palavra correta foi “aliado”, mas isso não pegou muito: quem se declarava aliado não só apanhava dos preconceituosos de fora do grupo LGBTQIA+, como também apanha do próprio grupo com cobranças excessivas sobre falar e pensar as “coisas certas”.

É um sinal que o “A” não seja de aliado (é assexual). O aliado, com muita boa vontade, está no “+”. Mas de uma certa forma, é como se o antigo simpatizante não fosse mais desejado no grupo, e não adiantou nem subir o nível de comprometimento para passar pela nota de corte. Eu sei que a explicação “oficial” é que ser aliado não é mais do que a obrigação e não queriam ficar premiando gente por fazer o mínimo, mas mesmo num público que aguenta ler textos longos como o nosso… eu duvido que a maioria de vocês tenha sequer pensado nisso até hoje.

Para entender mesmo a lógica LGBTQIA+, é preciso pensar bastante sobre o tema, consumir bastante conteúdo e até mesmo filtrar as ideias e opiniões de alguns membros muito radicais (vulgo burros) do movimento. Cidadão não estuda nem pra passar em concurso que pagou pra entrar, vai estudar sobre isso? O que chega para essa pessoa de fora do grupo é uma cacofonia de opiniões, afirmações e fatos desconexos de milhares de pessoas certas de que todo mundo é obrigado a entender do que estão falando.

A verdade, que pode ser vista por uma bizarra onda conservadora ao redor do mundo, é que não estão entendendo. De repente, o GLS era LGBTQIA+, e simpatia não servia mais. Não bastava mais conviver, não bastava mais aprender um pouco por vez, era questão de saber exatamente como se portar ou de virar inimigo. L e G eram compreensíveis, o B, por incrível que pareça, meio que caia na categoria de “normal” no passado, porque as pessoas nem queriam ficar pensando sobre bissexuais. O T já era conhecido há milênios, mas dentro da categorização mental do ser humano médio, ou era uma variação do G ou L, ou se passava tão bem pelo outro sexo que na maioria do tempo nem chamava muita atenção.

A era do LGBTQIA+ viu muitos avanços, é claro. Mesmo em países cristãos com gente muito mal-educada como no Brasil, o grau de aceitação é muito maior do que no século passado. De longe. Mesmo gente muito inteligente nos anos 80 e 90 ainda não sabia o que fazer com a ideia da homossexualidade. Era algo que todo mundo sabia que existia, mas que ficava dentro do armário. Precisavam sair e eu apoio que saiam mais e mais com o passar das próximas décadas, mas será que isso é resultado da era do LGBTQIA+ ou da era do GLS?

Explico: quando eu era criança, eu tinha um preconceito grande contra gays. Tinha sempre um ou outro menino na escola que todo mundo chamava de gay, e eu lembro de ter medo de estar no mesmo ambiente que ele. Não por medo dele, mas pelo medo de acharem que eu era por associação. Na minha casa ninguém falava mal de gays, tive zero pressão religiosa. Eu não tinha motivo racional para temer o gay, mas eu captava a ideia da sociedade ao meu redor.

Poucos anos depois, mais pro final da adolescência, sem pensar uma vírgula sobre o tema, eu já achava muito feio maltratar uma pessoa por ser gay e não tinha mais aquele horror de conversar e até fazer amizades com gays. Não foi um processo consciente, que eu me lembre, foi mais uma mudança de ares da sociedade, que de novo eu captei diretamente do ambiente. Eu não tive contato com homossexuais (assumidos) nesse meio tempo, não foi nem experiência de conviver. De repente, eu já não tinha mais aquela “fobia”.

E eu acredito que deva isso ao S. Foram os simpatizantes que mudaram os ares sociais. Claro que o ativismo fez muita coisa para ajudar nesse movimento, mas sozinhos eles jamais teriam esse poder. Eu argumento que muito disso aconteceu com gente pensando “nossa, o Freddie Mercury era gay?” e coisas do tipo. Foi gente saindo do armário e uma parcela considerável das pessoas percebendo como isso não mexia em nada com seu respeito ou admiração pela pessoa. A simpatia com o ser humano entrou na frente da sexualidade.

E o LGBTQIA+ de hoje muito provavelmente está colhendo os frutos do tempo do GLS. Tempos onde as pessoas conseguiam entender de forma bem clara o que era a sexualidade diferente da sua e ao mesmo tempo ser lembrada de que eram apenas pessoas como elas. A diferença era só aquilo, e se é só aquilo, é fácil ter simpatia.

O que o movimento LGBTQIA+ está fazendo com a sociedade nós provavelmente vamos perceber da geração que está começando a ficar adulta agora pra frente. Os millennials e o começo da Geração Z é cria do mundo do GLS. Os direitos estão quase chegando lá, a aceitação é absurdamente maior do que 20 ou 30 anos atrás, e o cidadão mais bem educado e livre já abomina violência e segregação.

O que a era da sopa de letrinhas, da auto-exclusão do resto da sociedade e de termos cada vez mais complexos e específicos vai fazer com a sociedade? Não sei. Mas a minha impressão é que o número de gente dentro das letras está aumentando ao mesmo tempo que os simpatizantes estão caindo. Espero estar errado, pelo bem da nossa evolução social.

Para dizer que o passado não era melhor para os gays (você não entendeu o texto), para dizer que se identifica como +, ou mesmo para dizer que quando a inflação cair você pensa nisso: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Meus dois centavos: depois do T é tudo meme, e o T engoliu todo o resto do movimento, devorando parte do feminismo por tabela.

  • “O que a era da sopa de letrinhas, da auto-exclusão do resto da sociedade e de termos cada vez mais complexos e específicos vai fazer com a sociedade? Não sei. Mas a minha impressão é que o número de gente dentro das letras está aumentando ao mesmo tempo que os simpatizantes estão caindo.”

    Eu acho que a turma da sopa de letrinhas seria mais respeitada se eles não permitissem qualquer tipo de tranqueira entrando no grupo. Eu já vi simpatizantes de pedofilia, zoofilia e outras aberrações se escondendo atrás de bandeirinha do arco-íris para “justificar” o que eles defendem. E é o print das merdas que eles escrevem no Twitter é que cai nos grupos de WhatsApp dos reacionários/bolsominions da vida.

  • Me desculpe, mas geralmente quem reclama de ser excluído é excluído por alguma razão. E geralmente tem mais a ver com a personalidade do que com o grupo da pessoa.
    A maioria dos LGBTs, e qualquer outro grupo, são pessoas perfeitamente normais e sociáveis, fazem parte da sociedade e superam os preconceitos e o bullying.
    Mas aquela minoria que vive de reclamar e fazer “guerrinha cultural” com desconhecidos online costuma ser um povo meio esquisito, NEET, que vive trancado em casa, é viciado em pornografia bizarra, provavelmente já cometeu assédio ou abuso sexual, não tem nenhum social skill e não se esforça pra tomar um banho e sair de casa pra viver o mundo real. O próprio movimento trans ficou contaminado de gente assim, até virou meme na gringa a figura do homem branco esquisito e socialmente disfuncional que “vira trans” pra ter alguma aceitação.

  • Ninguém fala isso daí, a não ser pra dar uma lacrada nas mídias. Sou viado e gente fala LGBT. Aliás, senti falta do V.

  • Depois do T o movimento se perdeu completamente. Quem diabos é oprimido por ser assexual? É que nem vegano, as pessoas no máximo acham estranho. Queers são basicamente negacionistas científicos “do bem”, não-binários são sexistas “do bem”, intersexo é um problema genético, pansexuais são uma redundância do B, e o resto não passa de fetiches bizarros que ninguém no mundo tem a obrigação de achar lindo. Daqui a pouco vai ter até F pros furries. Governos, acabem com o desemprego na população jovem, pelamordedeus!

    • Bom, não é necessariamente uma opressão, mas sim um reconhecimento de que assexuais existem e que não devem ser importunados ou negligenciados.

      Nem todo mundo é transante e essas pessoas não deveriam ouvir que são doentes, que precisam de tratamento ou que assumam delas coisas nada a ver (tipo “ain, você sofreu abuso na infância e agora tem medo de sécso?” ou “nossa, toma um hormônio que resolve!”).

  • Piada antiga no próprio “movimento”: não é Simpatizante, é Suspeito.
    Sugiro ao autor do texto – um conservador enrustido – que saia do armário.

  • Eu fico pensando que daqui a uns 10 anos vão problematizar esses remakes atuais com mulheres, negros e gays por não serem inclusivos pra trans e o resto das letras. Vão ficar fazendo remakes até conseguir agradar todo mundo, e nunca vão conseguir.

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