FAQ Desfavor – Computação

No espírito de sair da zona de conforto e ir buscar o lado nerd da Sally ao invés do meu, vamos pegar várias dúvidas comuns sobre computação de alto nível e tentar explicar da forma mais clara possível. Cruzando os dedos…

O que é um computador quântico?

Primeiro temos que explicar o que é um computador normal, e de forma bem básica, é um sistema que usa zeros e uns para fazer qualquer tipo de cálculo.

Quando perguntamos para o computador quando é 2 + 2, ele transforma esses símbolos numa série de zeros e uns, faz a conta assim e transforma de volta num valor que a gente entende, no caso, o número 4. Computadores não entendem nada que não seja zero e um.

Isso acontece porque quando você vai ver dentro do processador, o que está lá dentro são chavinhas que ligam e desligam. Nos computadores modernos, são incontáveis dessas chavinhas, que podem ligar ou desligar milhões de vezes por segundo. Zeros e uns nada mais são do que formas de falar que essas chaves estão ligadas ou desligadas.

No computador quântico, várias das loucuras da física quântica podem ser utilizadas, mas a que mais interessa aqui é a superposição de elementos: o computador normal tem ligado e desligado, zero e um; o computador quântico tem um estado a mais, o da superposição. Ou seja, ele pode considerar zero, um e uma “mistura” de zero e um que só vai ser definida de verdade quando for medida.

Se você quiser ir a fundo no assunto, tem um PhD te esperando, mas para o tamanho desta resposta, podemos dizer que a diferença é que tem mais uma possibilidade no computador quântico: zero, um e zero OU um. Qualquer pessoa com um pouco de massa cinzenta pode pensar que não parece tão vantajoso assim ter uma dúvida a mais no processo. Computador que responde com “talvez” não serve pra nada…

É claro, o computador quântico não te responde com “talvez”, ele tem que medir o resultado verdadeiro antes de te dar a resposta. O segredo está no meio do processo de fazer as contas: o computador normal tem que esperar uma conta finalizar para começar a próxima, o computador quântico pode continuar fazendo outras contas antes de resolver a anterior.

Quando chega no final da conta, ele mede tudo o que estava indefinido no meio dela e vê se bate. Se não bater, joga tudo fora e começa de novo. O que parece e é um processo bem maluco e cheio de erros. Por isso, o computador quântico ainda não é mais rápido que o computador normal na maioria das tarefas.

Mas em algumas, bem específicas, essa coisa de tocar o barco mesmo sem saber se fez a conta certa antes pode ser muito útil. É uma simplificação horrenda, mas ajuda a visualizar: o computador quântico tem o poder de dar uns “chutes” para ganhar tempo e descobrir logo se está indo por um caminho que vale a pena seguir. O computador normal tem que testar todas as possibilidades até o fim, o quântico consegue arriscar algumas coisas para ver se fazer sentido ou não.

Não é a mesma coisa, mas é a mesma ideia: quando você tem experiência com alguma tarefa, já consegue imaginar de cara se vale a pena ir por aquele caminho ou não. O marceneiro que imagina uma mesa com uma perna menor que as outras não precisa montar uma mesa desse jeito para saber que vai dar errado. A gente vai até a conclusão presumindo muitas coisas, e assim ganha tempo.

O computador quântico faz contas enormes sem ficar esperando tudo estar pronto nas etapas anteriores. Se ele achar um erro lá na frente que não depende das contas que não fez ainda, pode jogar tudo fora e começar de novo, sem gastar o tempo de fazer todas as contas que ainda não fez. O computador normal tem que ir até o fim para dizer se vai dar certo ou não.

Para o uso diário de computadores, os normais são bem melhores: as contas são simples e previsíveis para fazer seu notebook ou celular funcionarem direitinho. Mas para coisas como quebrar criptografia, que exigem trilhões de contas e muitas vezes anos de trabalho para resolver, ter um computador que “chuta” e deixa de gastar tempo com contas que não vão resolver o problema pode fazer muita diferença.

Em mais uma simplificação grotesca: o computador quântico erra mais rápido que o computador normal. E como erra mais rápido, tem mais chances de achar a resposta certa num tempo curto. Se é uma conta que o computador normal faz muito rápido, o computador quântico é inútil, mas se é uma conta que o computador normal sofre para fazer, a coisa muda de figura e começamos a ver vantagens nesse sistema quântico.

Como o computador quântico ainda precisa de condições muito especiais, como resfriamento absurdo a temperaturas próximas do zero absoluto, é bem provável que não os vejamos dentro de casa nas próximas décadas, e mais: se ele não conseguir fazer as contas fáceis mais rápido que o computador normal, nem faz sentido ter um em casa.

É fascinante, mas ainda é extremamente de nicho.


Como funciona a inteligência artificial?

Atualmente, estamos trabalhando com o conceito de redes neurais: são sistemas que “imitam” o funcionamento de um cérebro. Imitam entre aspas porque a gente nem sabe tão bem assim como o cérebro faz o que faz.

Rede neural é diferente de tudo o que fazíamos com computação antigamente: ao invés de escrever um código para o computador rodar com seus zeros e uns, nós damos um resultado esperado e deixamos esses sistemas acharem a melhor forma de fazer isso acontecer.

Mas é claro, o computador não sabe que está pensando, precisamos montar sistemas que simulem isso. Na natureza, sabemos que o cérebro dos animais trabalha com repetição até achar um caminho. Quanto mais exemplos vindos da vida ao nosso redor, maior a chance de aprendermos como lidar com eles.

Na prática: os neurônios do nosso cérebro mais utilizados para lidar com uma situação ficam tão bons nisso que o cérebro “decora” o caminho que passa por eles e sempre os usa. O que você sente e lembra quando lida com uma situação está diretamente relacionado com a forma como o seu cérebro definiu esse caminho de neurônios.

Tem uma série de neurônios na sua cabeça que sempre é chamado quando você vai fazer café, tem outra que ficou especializada em lidar com sua namorada reclamando, outra que ativa quando você escuta uma música… são bilhões de neurônios e todas as combinações possíveis entre os conectados diretamente. Tem espaço pra muitas manias na nossa mente.

E a natureza é especializada em achar um caminho e teimar com ele até ser forçada a mudar. Por isso é difícil mudar seus hábitos e ou mesmo começar a enxergar as coisas por outra perspectiva. Seu cérebro tirou o mato daquela trilha e agora só quer andar por ela. E por mais que isso nos traga muitos problemas, na média é tão útil e eficiente para nos manter vivos que continua acontecendo todo o tempo.

Afinal, sem esse reforço físico de hábitos e ideias, aprendizado seria impossível. A sequência de neurônios que dispara quando você sente um cheiro ruim é sua primeira linha de defesa contra contaminação. Antes mesmo de virar o conceito de “isso é perigoso”, já tem algo que funcionando na mente para te manter com repulsa.

Falo tudo isso porque as redes neurais são baseadas nessa ideia de tirar conclusões antes mesmo de chegar no resultado final. Através da matemática, o programa que roda a inteligência artificial simula essa ideia de caminhos neurais: mesmo que ele não tenha visto ainda o esgoto, só de sentir o cheiro ele já sabe que tem algo errado.

A Inteligência Artificial moderna usa a ideia de traçar os melhores caminhos para chegar no resultado. Mas não tem nenhuma ideia nessa cabeça virtual: são números. Sentir cheiro ruim é um número baixo, não sentir cheiro ruim é um número alto. Se você quer um resultado alto que te mantenha longe do esgoto, é melhor passar pelo número alto (sem cheiro ruim) do que pelo baixo (com cheiro ruim). É só uma aproximação de como pensamos na prática.

Mas funciona muito bem. A Inteligência Artificial é ensinada por um humano o que ela deveria querer. Por exemplo, uma foto de um cachorro. A foto de um cachorro vale 10, a foto de qualquer outro bicho vale zero. A IA não sabe o que é um cachorro, mas se ela receber um monte de fotos de cachorro para analisar, ela vai começar a identificar características do bicho. A cara de um cachorro tem que ter dois olhos, um focinho, orelhas, pelos…

Repito, a IA não sabe o que é nada disso, mas sabe, baseada em milhões de fotos, o que se repete sempre que tem um cachorro na foto. Pra ela não é um focinho, mas uma bolinha preta que sempre fica mais ou menos no meio da face. Se ela vir essa bolinha preta no lugar certo, fica mais confiante que está vendo um cachorro.

Só que calcular tudo isso ao mesmo tempo é muito demorado. Por isso as redes neurais se dividem em etapas. Cada uma analisa uma coisa, uma está procurando pelo focinho, outra pelos olhos, outra pelo nariz… mesmo que na prática ela não tenha noção nenhuma do que é qualquer coisa. É a sequência que determina o resultado positivo ou negativo.

E aí, ela precisa treinar para ver se está acertando. Humanos sabem reconhecer o que é um cachorro, então, por um tempo, ensinamos ela quando ela acerta ou erra. Ela pega fotos aleatórias e tenta responder se é um cachorro ou não. Só que é uma IA fazendo contas: ela só sabe que 10 é cachorro e 0 não é. Se ela pegar uma foto de cachorro muito parecido com um gato, por exemplo, pode dar nota 5. “Eu acho que tem um cachorro aí, mas pode não ser também”.

Se um humano pegar esses resultados e definir se estão certos ou não, a informação volta para a IA e ela sabe quais os caminhos neurais que ela criou funcionam mais ou menos. A próxima etapa é pegar os que mais funcionaram e manter, e pegar os que menos funcionaram e mudar. Isso pode ser feito diversas vezes até ela ficar boa de verdade em identificar cachorros.

Quando ela é solta no mundo para interagir com pessoas, ela tem seus próprios caminhos neurais, assim como nós. Você manda a foto do seu papagaio, ela analisa e te responde que com base no que ela “sente” quando vê um cachorro, o que você mostrou para ela não é um cachorro. É um jeito matemático de criar uma ideia num ser não vivo. A rede neural é uma forma de imitar a forma como pensamos, do jeito que pensamos que pensamos. (ok, essa última frase foi bem Somir, eu não me aguentei).

A Inteligência Artificial de hoje é uma máquina com uma ideia. A ideia do que é um cachorro, a ideia de como responder uma pergunta no chat, a ideia de iluminar uma cena de jogo, a ideia de que transação financeira dá mais dinheiro…

Do jeito que a coisa vai agora, estamos construindo máquinas que tem só uma ideia, mas que podem processar essa ideia muito rápido. Você é melhor que uma IA em reconhecer um cachorro numa foto em um segundo, mas ela é melhor que você em reconhecer mil cachorros em mil fotos no mesmo segundo. Ela só tem isso pra pensar, você tem todo o resto da sua vida ao mesmo tempo.

Se você for analisar a tecnologia de verdade, vai ver que é espetacular como ferramenta. A chave de fenda é mil vezes melhor que a mão para parafusar, mas só faz isso. O resto da discussão sobre inteligência artificial, francamente, é ficção científica nesse ponto. Estamos construindo ferramentas imitando alguns truques que o cérebro descobriu há centenas de milhões de anos atrás.

É muito bacana, mas é só isso ainda. Menos, menos…

Para dizer que agradece o esforço mas que não deu, para dizer que eu podia responder onde fica o clitóris, ou mesmo para dizer que não perguntou: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Texto muito bom. Parabéns. Destaco que o que é considerado uma das maiores conquistas científicas da história (predição correta de estruturas de proteínas) foi obtido recentemente por IA.

  • Bacana o Somir vir nos explicar o que são essas novas tecnologias e também desmistificar algumas coisas. Tanto os computadores quânticos quanto as inteligências artificiais são sem dúvida revolucionários, mas por enquanto tudo é novidade e ambos ainda estão restrito a nichos muito específicos. Só que, por não compreender direito o assunto, muita gente acaba ou falando bobagem ou espalhando boatos absurdos por ter receio de que “entidades malvadas” estejam “secretamente tramando para dominar a humanidade”.

    • São ideias maravilhosas, coisa de dar orgulho da engenhosidade humana; mas pra ter investimento, tem que ter função prática alcançável. Uma inteligência artificial que faz o que um humano faz é caríssima de bolar e produzir, e no final das contas… era só ter contratado um humano pra fazer. Ela vai para o nicho porque é no nicho que humano nenhum faz o que o computador é capaz.

  • A inutilização das senhas é plausível em algum tempo, se realmente for multiplicada a capacidade de descobri-las?

    • Na verdade não porque assim que tiver gente quebrando senha com computação quântica, vai ter gente fazendo criptografia quântica. O mundo depende demais de criptografia, por isso já tem gente analisando quais os tipos de contas que um computador normal e um computador quântico não vão conseguir fazer rápido.

      Quando tem dinheiro envolvido, tem gente se mexendo.

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