Estelionato de prioridades.

A Câmara dos Deputados aprovou nesta quinta-feira (4) um projeto que altera o Código Penal para criar o crime de estelionato sentimental, definido quando há alguma promessa sobre uma relação afetiva em troca da entrega de valores ou bens pela vítima. A pena, de acordo com o projeto, poderá ser de dois a seis anos de prisão. LINK


Tem dois ângulos aqui: primeiro que é uma tipificação de crime insana, e segundo que se essa é a prioridade, estamos mal, muito mais. Desfavor da Semana.

SALLY

O tema de hoje é essa belezura aí que vocês leram: vão criminalizar quem, de alguma forma (e abro aspas) gerar “prejuízo moral ou psicológico” a outra pessoa, iludindo-a a respeito de um relacionamento amoroso, tirando proveito disso. Você recebeu um presente de alguém? Se prepare, se não corresponder a aquilo que a pessoa quer amorosamente, pode cometer crime!

Quer dizer, se você é imbecil de dar pertences a uma pessoa que não conhece bem na esperança de que a pessoa, em troca, te dê amor, não é um problema seu, por ser um completo retardado emocional, um adulto disfuncional, idiota, sem autoestima, burro para um caralho sem capacidade de manejar a sua vida. Não. É problema do Estado. O Estado vai se meter. Não com indenização, com prisão. Crime. Prisão.

Não faz o menor sentido. As pessoas são adultas e responsáveis por suas escolhas. A lei está tratando o brasileiro como deficiente mental que não tem discernimento. No país do golpe. No país onde tem mulher acusando homem de coisa muito mais séria e objetiva, como estupro, apenas para se vingar. Querem colocar um crime que depende de subjetividade (prejuízo moral ou psicológico?) nas mãos de um povo que usa processo judicial que desgraça a vida alheia como método de vingança.

Eu não sei mais o que dizer. Eu estou me repetindo desde janeiro. Talvez eu esteja me repetindo desde 2008. Então, este sábado eu me reservo o direito de não fazer um texto didático, educado, seguindo uma linha de raciocínio e deixando algum conselho. Não. Não estou disposta. O grau de retardo mental do brasileiro, do Legislativo e do Judiciário passaram de qualquer limite. Eu vou falar apenas o que sair do meu coração.

Se você leu a coluna “A Semana Desfavor”, pode ter reparado em outras notícias como o fato de ter gente morrendo de fome no país, como o fato do desempenho em matemática dos alunos brasileiros ser um dos piores do mundo ou como ter gente morrendo por falta de atendimento em hospital. Mas o Legislador decidiu que é hora de criminalizar e mandar para cadeia quem cause “prejuízo moral ou psicológico” a uma pessoa carente que voluntariamente aceitou dar bens ou dinheiro na esperança de que isso se converta em amor. ISSO parece ser mais urgente e importante!

É sério, eu não sei mais o que dizer. As prioridades do Brasil estavam de ponta a cabeça, agora estão de ponta a cabeça e cobertas de merda. Pessoas gastando uma fortuna para fazer clareamento anal ou colocar botox no saco, mas que não são capazes de usar uma máscara para evitar o contágio de um vírus que pode matar criança que não está vacinada. Não tem jeito, tem que tacar fogo em tudo e começar do zero.

Pessoas que gastam uma fortuna com perfume para o cu (sim, para o cu) mas não sabem usar desodorante e fedem. Pessoas que criticam negacionistas por não se comportar de forma a minimizar os riscos de uma doença, mas depois gritam “gordofobia” quando o médico as manda emagrecer alertando sobre os riscos de obesidade mórbida para a saúde.

Gente que fala com desdém de quem usa cloroquina enchendo a boca para falar em ignorância e negação científica e depois vai e acredita em horóscopo, toma florais, homeopatia, faz Reiki e ainda defende que uma pessoa que nasceu biologicamente homem pode competir de igual para igual em esportes com pessoas que nasceram do sexo feminino. Percebem que não é um problema “dos políticos” ou “dos juízes”? É uma epidemia de retardo mental e incoerência?

O brasileiro, salvo honrosas exceções, é um poço de contradições, prioridades erradas, ignorância e egoísmo. Toda semana a gente se pergunta o quanto mais dá para afundar – e sempre dá. E uma hora isso vai cobrar um preço.

O povo passando fome, inflação subindo, Brasil liderando ranking de doenças, com cobertura vacinal baixíssima e o que fazem os Deputados? Criam uma comissão para acompanhar… a Seleção Brasileira! Sim, preocupados com o desempenho da Seleção na Copa do Mundo, os Deputados criaram “um grupo de trabalho para acompanhar a preparação da seleção”. Eu não tenho mais palavras. Não há mais palavras que descrevam o que está acontecendo.

E ainda tem quem venha aqui repetir “ain, qualquer país do mundo tem problemas”. Eu te desafio. Eu te desafio a reunir mais de dez páginas de notícias semanais bizarras por 13 anos em qualquer outro país do mundo. O que acontece no Brasil não é normal. O brasileiro não é normal. Eu não sei se houve um acidente nuclear silencioso em Angra muitos anos atras ou o que merda fez o cérebro do povo derreter progressivamente, mas em poucas décadas o brasileiro estará batendo na cabeça um do outro com um fêmur.

E vai ter gente que diga “Noussaaaa, qui bissurduuuu, Deputado priorizando Seleção”. A mesma pessoa que deve aluguel, mas paga prestação de carro importado. A mesma pessoa que atrasa aluguel, mas vai em show cuja entrada custa 4 dígitos. A mesma pessoa que não paga pensão alimentícia para o filho, mas todo domingo senta no boteco às dez da manhã e gasta em cerveja até as dez da noite. Todos incoerentes, todos com prioridades erradas, todos uns escrotos, mas só sabem apontar para político.

Em tempos de vacas magras, em um passado distante, trabalhei em loja de shopping. Quando você trabalha em loja de shopping, você vê o que há de pior na humanidade. Nunca vou esquecer do dia em que uma moça (que nem era uma pessoa humilde) que eu atendi queria comprar um sapato, mas não tinha dinheiro. Ela me disse que o dinheiro que tinha era para comprar fralda para a filha. Eu, como má vendedora que era, não insisti. A moça então, decidiu sozinha que compraria o sapato e, até o final do mês, a filha cagaria no chão, quando tivesse vontade.

Isso, meus queridos, é o brasileiro. E isso, quando chega ao poder, faz cagadas tamanho GG, como fazem os excelentíssimos Presidente da República, os Deputados e Senadores e os Ministros e Juízes. Todos deixam o brasileiro cagar no chão para comprar sapatos. Não, dá, Brasil. Não dá mais. Tá ridículo.

“Mas Sally como resolve?”. FAZ O SEU. Olha para a sua vida e revê as suas prioridades. Se você fizer o seu, é um grande passo. E, se puder, saia desse país, não há qualquer condição do Brasil.

Para dizer que eu não respeito o direito de escolha dos outros, para dizer que já está planejando quem vai processar por “prejuízo moral ou psicológico” ou ainda para dizer que a culpa de tudo é do Bolsonaro: sally@desfavor.com

SOMIR

Em primeiro lugar, eu sei que existem várias pessoas podres por aí que dão golpes em pessoas carentes e francamente, meio lerdas da cabeça. Longe de mim defender gente que explora o outro dessa forma, mas se a quantidade de leis criadas fosse parâmetro para o quanto se protege o povo de verdade, o Brasil seria um dos países mais justos e seguros do mundo. Lei é o que não falta por aqui.

O maior problema é a disposição da população em segui-las. Seja por uma cultura que valoriza a “esperteza”, seja pela impunidade galopante, temos uma legislação muito completa que no final do dia não impacta tanto assim o senso de segurança do cidadão médio.

O tema de leis frívolas vem e volta aqui no Desfavor desde o começo: o Legislativo finge que trabalha com uma enxurrada de projetos de lei que pouco ou nada fazem para resolver o problema central da impunidade. Pudera: nossos legisladores agem como bandidos o tempo todo, advogando em causa própria e torrando nosso dinheiro em manobras sombrias como o já famoso Orçamento Secreto. Para eles ajuda muito que continuemos não pegando os criminosos…

Hoje o tema vai um pouco além da criação de leis aleatórias, tem um componente terrível de intervenção estatal no que se considera ou não uma relação afetiva. Vejam bem: dinheiro ou bens existem como recursos de um cidadão, recursos que ele pode dispor como bem entender, respeitando a legislação vigente. Uma das grandes vantagens de ter recursos é poder utilizá-los para melhorar suas relações com outras pessoas.

Se você olha para isso com uma mente mais saudável, entende que uma pessoa pode ficar muito feliz em usar seus recursos para ajudar ou presentear uma pessoa querida. Não tem nada de inerentemente errado em dividir seus recursos com as pessoas que escolheu manter próximas. A felicidade delas causa felicidade em você.

Mas é claro, isso pode ser explorado por gente mal-intencionada: se você consegue o afeto de outra pessoa e tem por intenção pegar os recursos dela, o que era algo naturalmente positivo vira um golpe dos mais sujos. Explorar afeto para ganhar dinheiro é o tipo da coisa que soa ruim para a maioria das pessoas. Só que a vida é muito mais complicada do que certo e errado. Do outro lado dessa relação tem alguém que pode muito bem estar conscientemente tentando comprar afeto. Mesmo que a pessoa não perceba isso racionalmente.

Essa mecânica utilitarista de comprar o outro com seus recursos é muito comum em sociedades mais desiguais e pouco educadas como a brasileira. A preocupação em ser ou não interesseiro(a) combina mais com gente que tem alguma estabilidade financeira na vida. Ou, em termos mais simples: se você passa aperto até para comer, não é o fim do mundo trocar afeto por dinheiro. Cada um luta com as armas que têm.

Pegue essa realidade de desigualdade e perrengue do brasileiro médio e coloque uma tipificação criminal do tipo “estelionato sentimental” na equação… o resultado não vai ser positivo. Da mesma forma que muita gente tenta trocar dinheiro por afeto, muita gente quer fazer o caminho oposto. Você precisa ter uma criação muito estável e/ou condições de vida bem mais tranquilas que a média desse povo para dissociar totalmente dinheiro de relação afetiva. Se você nunca teve esse tipo de ideia utilitarista de misturar dinheiro e afeto na mesma sequência lógica, considere-se um(a) privilegiado(a).

Vai ter muita gente tentando se vingar a partir dessa lei, vai ter muita gente querendo “cobrar” o afeto que tentou comprar. Uma das premissas de uma sociedade livre é que relação afetiva não é direito de nenhum adulto. Até podemos entender que é criminoso não oferecer afeto para uma criança, mas depois que você cresceu, bem-vindo ao mundo real. Ninguém te deve nada que não esteja explicitado na Lei.

Quer dizer… com estelionato sentimental na jogada, a coisa me parece nebulosa. Se a pessoa entra com a reclamação na Justiça, não estaria ela dizendo que a outra parte falhou em cumprir a entrega de relação afetiva? Sim, eu sei que ela foi enganada e não acho certo que ela tenha sido enganada, mas o que diabos ela estaria cobrando na ação? O estelionato ocorre quando você faz uma transação fraudulenta: promete algo, recebe sua parte do acordo mas não entrega o prometido.

Vender um terreno que não é seu é estelionato, vender um terreno no Céu é estelionato, mas… e vender afeto? O que é afeto? Quanto afeto precisa ser entregue para compensar a parte reclamante? Um juiz aleatório vai ter que definir se houve compensação afetiva no contrato? Nós vamos aceitar a ideia de que o Estado defina o quanto afeto é suficiente para saciar um contrato teórico de troca de bens por uma relação amorosa?

Mandar emoji de coração é afeto? Fazer sexo é afeto? Porque se for, a profissão mais antiga do mundo corre sério risco de ficar impraticável. E se fazer sexo for afeto, a parte reclamada pode resolver isso num acordo com um número determinado de transas? Tem que registrar em cartório? Precisa de um tabelião no quarto do motel para confirmar a execução do ato?

Ou vamos continuar com a ideia básica de Direitos Humanos Universais onde ninguém pode ser obrigado a oferecer afeto a adultos? Por mais que seja triste ouvir as histórias de gente que foi manipulada por gente escrota que só queria tirar dinheiro delas, quando você envolve a ideia de afeto entre adultos numa lei, ela fica impossivelmente complicada de entender.

Mais uma lei feita para não resolver problemas reais e que vai atravancar ainda mais o Judiciário com gente que deveria aprender a se proteger melhor. É triste, mas é verdade: você tem que saber se proteger de gente que te explora emocionalmente, o Estado não pode entrar nessa jogada; porque ele não é um ser humano, ele é um conjunto de regras. Conjunto de regras não sabe lidar com a complexidade do emocional humano. Deixe-o lidar com coisa prática como comprar uma pizza e não receber.

Como a Sally se concentrou bastante na ideia da falta total de prioridades do nosso Legislativo (e do brasileiro em geral), eu posso terminar o meu texto apenas com uma menção: se a sua prioridade é presidente e não deputado estadual e federal, você vai fazer merda na urna. Quimioterapia tem precedência sobre plástica.

Para dizer que vai me processar por estelionato argumentativo, para dizer que vai se oferecer a cumprir o contrato com declarações de amor falsa no Instagram, ou mesmo para dizer que os filhos estão atrapalhando o trabalho das mães: somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • Wellington Alves

    Pior que esse tipo de lei existe lá fora. Já ouvi aquele YouTuber Izzy Nobre, que mora no Canadá, contar que um amigo terminou o namoro com uma uma mãe solteira E foi obrigado a pagar pensão para o filho dela exatamente por causa desse abandono emocional. Por isso ele não namorava mulher que tinha filhos.
    Olha que merda. A lei se propõe a proteger vulneráveis e acaba por isolá-los já que ninguém vai querer correr risco de processo gratuito.

  • E como ficam as pessoas com transtorno de humor ou personalidade?

    Quero dizer… Uma pessoa que tem oscilações extremas de humor, instável, que pode mudar de ideia várias vezes ao longo do dia?

    Ou, um depressivo. Por algum motivo supondo que a pessoa fique na cama não querendo interagir com ninguém… Ela pode ser processada por isso? Ela pode processar os outros por não entenderem como se sente, ou não sentir que fazem o suficiente?

    Como determinar que foi um crime ou apenas crise da pessoa? E se a pessoa recusa tratamento ou mesmo o fato de que esteja doente? Seria ofensivo ou “alguma coisa fóbico” sugerir influências de um transtorno nesse tipo de situação?

  • Foi mesmo uma semana de muitos desfavores no legislativo.
    Além do estelionato afetivo, ainda tentaram mexer no nosso precioso VR! Puta que me pariu. O VR é um pilar que sustenta a classe média e boa parte dos restaurantes de grandes cidades. Querem que a pessoa possa sacar o valor no caixa do banco. Vai ter rachadinha até no VR meu Brasil? Ou vão falar que se a pessoa pode sacar se configura como salario e portanto deve ser somado na base tributária, pra pessoa pagar 34% de imposto no VR também?

    Quando eles não trabalham a gente reclama. Mas quando eles trabalham era melhor que tivessem pego folga.

  • Eu nem tinha ouvido falar nessa aberração legislativa até abrir este site. A justiça bostileira não tem capacidade nem de manter assassino/estuprador preso por muito tempo, imagina mandar prender alguém que iludiu um(a) otário(a).

    Tudo bem que o brasileiro médio nunca foi essas coisas, mas nos últimos 10 anos o emburrecimento coletivo cresceu assustadoramente (diria até que ultrapassou a linha do tolerável).

    • A questão é: se a pessoa que se sentiu “enganada” tiver dinheiro, é bem capaz de conseguir prender quem supostamente a “enganou”

  • Que vergonha! Não preciso ler mais nada.
    Tendo em vista que matar um totó ou um bichano atropelado pode te dar uma pena maior que atropelar uma pessoa, nada de novo no front.

  • Parece uma pérola daquelas ideias legislativas.

    Pra quem não sabe, qualquer brasileiro pode ir no site do Senado e sugerir uma lei e se alcançar o número mínimo de votos, vai pra discussão de senadores pra ser aprovado ou não. Tem coisa interessante, mas também tem muita pérola.

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