Histórias de Vida – Parte 2

Já que é semana de bullying, por que não continuar contando as fascinantes histórias por trás dos melhores (piores) nomes de candidatos que não se elegeram em 2022?

Ralado de Gel do Bode – Candidato (derrotado) a Deputado Estadual pela Bahia

O pequeno Jefferson não era uma criança normal, longe disso. Enquanto seus colegas jogavam bola nas ruas de terra e corriam despreocupadas pelos descampados periféricos, ele preferia a companhia dos livros. O gosto surgira depois que um tio o presenteou com um suplemento do jornal com a história dos dinossauros. O livreto continha algumas informações sobre os seres que dominavam o planeta milhões de anos atrás, e é claro, fantásticas ilustrações dos gigantescos animais.

A rara sorte de ter uma mãe professora numa humilde comunidade que até poucos anos atrás não passava de uma invasão o permitiu acesso constante a mais e mais materiais de estudo sobre sua nova paixão. Os dinossauros ocupavam sua imaginação, desde os estudos mais sérios da paleontologia até mesmo a ficção hollywoodiana. Numa tarde de domingo, diante da tela de uma pequena televisão de tubo cheia de chuviscos, viu o filme que mudaria sua vida: Jurassic Park.

A ideia era brilhante: trazer à vida os dinossauros através da genética! Jefferson não se conformava porque ninguém tentava fazer isso de verdade. Com certeza num dos milhares de fósseis encontrados ao redor do mundo havia algum DNA utilizável para o experimento. Colocou como objetivo de vida ser o primeiro a tornar a ficção em realidade. Para isso, debruçou-se sobre os livros que conseguia da pequena biblioteca da escola onde a mãe, agora diretora, permitia o acesso constante.

Para completar, de tempos em tempos visitava a cidade grande para pegar emprestado materiais mais complexos. Biologia e química eram seus temas preferidos. Já na adolescência, ganhou acesso a algo que mudaria sua vida: a internet. Primeiro num computador bege que funcionava metade das vezes que era ligado, mas que lentamente conseguia conectá-lo ao conhecimento mais recente sobre manipulação genética.

Porém, a obsessão de Jefferson pelo tema começou a se transformar em escolhas perigosas. O dia mal começava quando resolveu coletar o sangue de um jegue com uma agulha comprada na farmácia, o animal estava parado diante de uma venda na rua principal da cidade, enquanto o dono comprava os mantimentos do mês. Jefferson se aproximou sorrateiramente e sem pensar meia vez, tacou-lhe a injeção nas ancas, puxando o máximo de sangue possível. Na sua cabeça, o animal de carga no máximo tentaria dar um coice, mas na realidade, o bicho disparou em pânico.

Um dos arreios, mal amarrado, escorregou rumo ao chão e prendeu no pé de Jefferson, que foi arrastado pelo esburacado asfalto da cidade por mais de cem metros antes de se soltar. O atrito foi suficiente para causar sérios machucados ao braço e perna que usou para tentar, em vão, parar a carga do jegue. Por sorte, a seringa caiu num ralo no meio do caminho e ele pode contar a história de um infeliz acidente para o povo que chegava para socorrê-lo. As cicatrizes do atrito com o asfalto geraram o infeliz apelido de Ralado, que quanto mais rejeitava, mais popular se tornava. Eventualmente aceitou a alcunha, que era usada até pela própria família. Virou ponto de honra: um dia se tornaria Doutor e com certeza voltaria a ser chamado pelo nome real e o respeito que merecia.

A paixão pelos estudos o colocara numa boa situação na hora de escolher seu curso superior, as limitações financeiras da família nem tanto. O meio termo foi alcançado no curso de Medicina Veterinária numa Federal nem tão longe assim de casa. Quase duas horas diárias de viagem num ônibus surrado que a mãe conseguira esticar a rota até a universidade cobrando favores do prefeito.

Além disso, um estágio nem um pouco remunerado numa fazenda próxima. A criação de cabras ainda era um negócio rentável na região de clima quente e ressecado do sertão, seu patrão, Josias, um igualmente ressecado idoso de fala ininteligível que nunca sorria, já não tinha forças para cuidar do rebanho. Seus filhos haviam se mudado para a capital em busca de profissões mais glamourosas, deixando o recém-viuvado senhor sozinho com mais de duas centenas de cabras e bodes. Ralado, mesmo sem receber um tostão, agradecia pela experiência de ser o veterinário-chefe de uma criação inteira. Claro, também era o cuidador dos animais e passava boa parte do turno pastoreando os animais, mas o que importava era a experiência cuidando da saúde dos bichos.

Foram quatorze meses de trabalho suado até ser recompensado com um salário e um cômodo nos fundos da sede, remontado como consultório com a bênção de seu Josias, mas que na verdade tinha mais de laboratório em sua disposição. Os recursos não eram dos maiores, mas eram suficientes para que Ralado conseguisse fazer seus primeiros experimentos, baseados em pesquisas avançadas que acompanha pela internet com seu inglês cada vez mais afiado.

E o laboratório valeu todo o esforço: pois na universidade, seus projetos não traziam nenhuma simpatia dos professores. Depois de realizar um desastrado experimento aplicando células tronco de um jacaré numa vaca, o que resultou numa rejeição violenta no corpo do animal e sua subsequente morte, foi jubilado do curso imediatamente. Informação que manteve escondida da família e do chefe para evitar perder o pouco que ainda tinha. O sonho de ser Doutor chegaria por sua proficiência científica ao invés de reconhecimento acadêmico.

A pequena cidade do sertão baiano ainda mantinha alguma reverência pelo seu status de futuro médico veterinário, o que o permitia ser chamado por todo tipo de dono de animais, sejam eles de estimação ou de criação comercial, o que permitia uma limitada, mas muito útil renda extra. Ninguém discutiu quando disse que havia sido dispensado da maioria das aulas pelas suas notas acima da média, e que precisava ir para a universidade apenas uma vez por semana. Usava esse tempo para comprar na cidade grande reagentes químicos para suas experiências. Usava a internet para importar produtos duvidosos de origem chinesa, que recebia na casa de um ex-colega de curso com o qual fizera amizade. Dizia que era para fazer remédios mais baratos para o povo do sertão, mas na verdade serviam apenas para seus cada vez mais ousados experimentos com as cabras do Seu Josias.

O primeiro cabrito fora do padrão nasceu cinco meses depois do começo dos seus experimentos com inseminação artificial. Sob a desculpa de sacrificar o pobre animal defeituoso, Ralado o tirou da vista do dono da fazenda e o colocou num casebre abandonado às margens da estrada de terra que conectava o vilarejo às terras da criação.

O animal tinha características diferentes da sua espécie, visivelmente na cabeça, que tinha menos pelos e um crânio mais pronunciado, liso. A língua do ser era muito maior, e mal era contida pela mandíbula. A outra diferença pronunciada era no rabo, ao invés de cotoco habitual da espécie, era longo e liso, serpenteando de forma empolgada a cada vez que Ralado vinha o visitar. O apetite do animal era espetacular: como quase todos os bodes, tinha um estômago capaz de digerir basicamente qualquer coisa, mas as quantidades eram de dar inveja a um boi adulto.

Até por isso, em poucas semanas o animal já parecia adulto. O bode já tinha um nome: Rex. O grande apego com o dono garantia que o animal pudesse ser solto por alguns minutos todos os dias e voltasse sempre para ser contido novamente na casa de pau-a-pique. Por mais alguns meses, Ralado continuou com os testes, trazendo mais e mais animais “deformados” para a casa abandonada. Já eram quatro. Cada um com características mais pronunciadas que o outro.

Mas nem tudo são flores: os animais estão cada vez mais rebeldes com o prospecto de ficarem presos a maior parte do dia. Uma das paredes já parece estar carcomida e o trabalho de recuperar seu rebanho demora um pouco mais a cada dia. Não demora muito até o primeiro dos animais se recusar a voltar. Os outros seguem o caminho da liberdade até que mesmo Rex, o mais fiel de todos, decide não obedecer ao dono um dia.

Os animais híbridos somem no sertão, e nos meses seguintes começam a surgir relatos de animais estranhos na região. Inclusive na fazenda onde Ralado trabalhava, Seu Josias contando que vira um bode muito estranho rondando seus animais. Os relatos começam a aumentar, inclusive com algumas histórias de bodes, jegues e até mesmo vacas aparecendo mortas no campo, carne devorada até os ossos. Ralado, com seu status de homem da ciência, tranquiliza o povo, dizendo que deve ser algum predador natural da região. O tempo passa e os animais estranhos viram uma espécie de mito na região, ninguém certo sobre sua veracidade.

A mentira sobre o curso de veterinário seguiu seu curso até Ralado trazer um diploma impresso para casa. Dissera que a festa custaria caro demais e não aceitara nenhuma ajuda financeira da família e conhecidos. Numa manhã normal de trabalho, Ralado descobre a porta de seu laboratório entreaberta na fazenda do Seu Josias. Desconfiado, abre o restante devagar, e encontra uma surpresa: a família, Seu Josias e alguns amigos da cidade o esperavam para dar uma festa de colação de grau.

Ralado sorri desconcertado enquanto as pessoas gritam seus parabéns. Logo, começa um coro de “Doutor! Doutor! Doutor!” que o leva às lágrimas. Sua mãe se aproxima e dá um longo abraço, declarando sua admiração ao primeiro médico da história da família. Seu Josias, em um gesto pouco característico, mostra os dentes restantes num sorriso honesto. Um amigo de sua mãe está olhando fixamente para um terrário, observando o movimento dos animais. Ele pergunta se são calangos.

Ralado confirma. Sua mãe pergunta por que ele está guardando esses bichos, ele desconversa e mostra algumas das pesquisas realmente voltadas à saúde animal que fazia em paralelo. Usa vários jargões para confundir o povo simples da região, e isso parece dar conta da curiosidade local. Apesar das várias indicações de preferia ficar sozinho, seus companheiros de laboratório não partem, preferindo ficar conversando sobre uma mesa improvisada de quitutes e bebidas.

Resignado, ele se volta para o balcão e continua seu mais recente experimento: a união perfeita dos genes do calango e do bode, um animal de muito músculo, pouco osso e a capacidade incrível de regenerar as partes perdidas. Na sua cabeça, o sonho infantil de criar animais que ninguém havia visto antes. Nas suas mãos, um pote com a amostra de esperma de bode modificada que pretendia aplicar numa das cabras assim que tivesse um minuto de paz. Fazia os últimos ajustes no PH da amostra antes de colocá-lo de volta no acanhado freezer do ambiente, só tinha mais algumas horas antes de perder tudo. O material adquirira uma cor azulada incomum ao esperado da espécie, reflexo da mistura genética.

Um dos visitantes, uma senhora de idade que era companhia inseparável da sua mãe, o interpela sobre o conteúdo do pote refrigerado. Ele tenta desviar do tema dizendo que era complicado demais. Sua mãe ouve a conversa e diz que não foi assim que ela o ensinou. Que conhecimento deve ser dividido e todos tem o direito de aprender. Péssima hora para ter uma mãe professora. Ele titubeia e inventa na hora que era um gel especial para tratar feridas em cabras. Única coisa que conseguiu pensar para explicar a textura e a cor daquilo. Rapidamente, aproveita a chance: diz também que adoraria ficar mais com as visitas, mas que precisava testar isso antes que os ingredientes muito caros estragassem.

Esperava se livrar da companhia. Nada feito: Seu Josias aproveita a chance e convida todos para acompanhar o Doutor com as cabras. Todos se animam na hora. Ralado aceita a derrota e segue na frente, seguido por uma plateia curiosa. Ao chegarem no campo onde as cabras pastavam, percebe uma confusão. Os animais correm desesperados da direção de um ser estanho, que está com os dentes profundamente cravados na coxa de uma das cabras.

Seu Josias acelera o passo em direção à sede da fazenda, Ralado sabe que ele está buscando a espingarda. Precisava pensar rápido. O povo ao seu redor começa a gritar que é o chupacabra, apelido informal que suas cabras e bodes-calango receberam. Ralado diz que é para todo mundo se afastar, o que todo mundo obedece. A presunção de Doutor vem a calhar. Ele olha com mais cuidado para o animal e percebe que é Rex. Por mais que não fosse maior que uma cabra, os músculos extras gerados pelo DNA de calango tornavam o bicho perigoso. E se Seu Josias acertasse um tiro, talvez conseguissem ligar os pontos com suas pesquisas de posse de um corpo. Isso traria muita atenção negativa para uma experiência ainda em fase inicial.

Confiante no laço formado com Rex, Ralado se aproxima. O bode-calango reconhece o antigo dono, e troca a demonstração dos dentes por uma postura mais dócil. Ele sabia que Rex era diferente dos outros. Mas ao ouvir os gritos de Seu Josias, ele entende que o melhor a fazer era assustar Rex, pelo bem dos dois. Rex vacila por alguns segundos, mas logo reage aos movimentos agressivos de Ralado e sai correndo, rabo reptiliano baixo pela tristeza da rejeição.

Dois tiros de espingarda explodem à distância, nenhum dos dois suficiente para parar o ser híbrido. Ralado se aproxima da cabra e observa ferimentos extensos na perna do bicho. O resto do povo se aproxima. Ralado, não era lá um excelente veterinário por mal ter feito metade do curso, mas sabia o suficiente para considerar sacrificar o animal. Sabe-se lá o que havia na saliva de Rex. Não contava com a memória de sua mãe, que rapidamente diz para ele usar o gel de bode nela.

Quatro meses de trabalho para gerar essa amostra de esperma modificado, e ele perderia tudo ali. Ralado espalha a substância azulada na ferida da cabra, e com ajuda de um amigo da família, carrega a cabra de volta para o seu laboratório. Seu Josias se junta com mais alguns homens e sai à caça do “chupacabra”.

Ralado observa a cabra por mais algumas horas, certo de que não teria nada a fazer contra machucados tão extensos. Para a surpresa dele, antes do cair da noite já havia uma regeneração considerável do tecido ferido. Algo estava diferente, mas não demorou muito para o animal ter força para correr novamente.

Ralado de Gel do Bode ganhou fama instantânea na região, com um produto especial que tinha curado uma cabra da morte certa. Uma emissora de TV até veio fazer uma matéria depois que a história se espalhou pela internet, mas algo jogou contra a popularidade nacional: nunca mais Ralado conseguiu fazer a substância funcionar. Havia sim algo na saliva de Rex. A falta de resultados práticos fez o assunto ficar apenas na região, tão lenda urbana como os chupacabras que de tempos em tempos são avistados atacando pequenos animais.

Ralado de Gel do Bode se candidatou torcendo para a fama regional permitir um cargo de deputado com alto salário para continuar seus estudos, mas a descoberta de que não havia se formado de verdade durante a campanha impossibilitou a situação.

Seu Josias ainda confia no Gel do Bode, e sabe que é só questão de tempo até Ralado conseguir fazer funcionar de novo.

Para dizer que eu estou completamente drogado, para dizer que votaria no Ralado, ou mesmo para dizer que está com dó do Rex: somir@desfavor.com

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Comments (2)

  • O grande problema em contar uma mentira é que, pra sustentá-la, é preciso emendar outra, e mais outra, e mais outra, até que o próprio mentiroso ou se mete em encrencas enredado por suas mentiras ou acaba desmascarado.

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