Herança maldita.

O Rio de Janeiro parou, na manhã de 17 de novembro de 2016, para acompanhar uma cena histórica. Para levar Sérgio Cabral preso, a Polícia Federal teve de abrir passagem com gás de pimenta entre os curiosos aglomerados em frente ao prédio no Leblon. Começava pela casa do ex-governador a maior e mais longeva campanha de combate à corrupção do estado, que chegou a contar 300 presos, mas seis anos depois se aproxima de um desfecho pífio: nas celas antes lotadas de réus do colarinho branco, só resta o próprio Cabral, ainda assim por pouco tempo, como apostam os seus advogados. LINK


Esse é só um exemplo de como o Brasil rodou, rodou… e acabou no mesmo lugar. Desfavor da Semana.

SALLY

A notícia fala especificamente do Rio de Janeiro, mas ilustra muito bem o que acontece no resto do país: dos 300 presos pela Lava Jato, apenas um segue na prisão.

Você piscou e os bandidos foram todos para a rua novamente. Não apenas para rua, como muitos foram reconduzidos a seus cargos ou estão ocupando novos cargos. E não, eles não foram inocentados, o processo que os condenou simplesmente foi anulado ou foi forçada qualquer outra barra para que estejam em liberdade.

Os responsáveis pelas investigações e até pela condenação, por sua vez, estão vivendo um verdadeiro inferno: respondendo a processo administrativo disciplinar, sendo perseguidos internamente, sendo colocados “na geladeira” (impedidos de receber aumento, entre outras coisas). Em resumo, quem prendeu bandido está sendo punido.

Por mais que você tenha suas ressalvas com a operação (eu também tenho as minhas), é muito improvável que de 300 condenações, que passaram pelas mãos de vários juízes, 299 tenham sido “perseguição política”. Inclusive, ao ler a delação de vários desses condenados é possível ver que, ao delatar, acabaram confessando os próprios crimes.

E, cá entre nós, estamos falando do Rio de Janeiro, o esgoto do Brasil. O habitat natural de Flordelis e outros políticos tão criminosos quanto. Se fosse em outro estado, eu poderia até cogitar que estivessem armando de alguma forma para incriminar alguém, mas esses condenados do Rio de Janeiro? São notórios bandidos. É de conhecimento geral.

E, por mais escroto que seja o que está acontecendo, a soltura de tanto bandido nem me parece o pior desfavor. Em qualquer sistema eventualmente podem ocorrer abusos, favorecimentos ou injustiças. O que me assusta é que todos os condenados sejam colocados na rua e ninguém se incomode com isso. Não está acontecendo apenas no Rio de Janeiro, está acontecendo em todo o país. E ninguém parece se importar.

Pessoas com poder só andam na linha se forem fiscalizadas, salvo honrosas exceções. É do ser humano perder a mão e eventualmente abusar do poder que tem. Se o brasileiro não fiscalizar, não se indignar, não fizer nada, tudo sempre vai acabar em pizza.

Parece que, para boa parte da população convém desacreditar a Lava Jato, pois graças isso o bandido de estimação da vez (Lula) foi solto. A pós-verdade do “Lula inocentado” infelizmente já se consolidou. Ele não foi inocentado, embora alguns processos estejam prescritos (isto é, passou o prazo para seu julgamento portanto ele não pode mais ser condenado), ainda existem outros que podem sim ser julgados.

E, que fique claro, este blog abomina o Bolsonaro. De forma alguma falamos qualquer coisa sobre o Lula para defender o Bolsonaro, que se explodam ambos de mãos dadas. Mas o fato de desgostarmos do Bolsonaro não vai nos fazer passar pano para Lula. Nós não temos bandido de estimação, muito menos acreditamos na premissa imbecil de combater um bandido colocando outro no poder.

Na verdade, a coisa é ainda maior: não é só sobre a Lava Jato, é sobre a impunidade no país. A impunidade não deixa o brasileiro indignado, por isso ela continua acontecendo, como padrão. Quem aqui não conhece algum crime extremamente revoltante que ficou sem punição? Mané dirigindo embriagado e sem carteira mata pais de família, policial fuzila morador de comunidade desarmado, rico estupra mulher pobre nega tudo e sai ileso… tem de todos os tipos. Impunidade é especialidade da casa.

E se o povo não fiscalizar e cobrar, continuará sendo. Parece que o brasileiro espera que as coisas se resolvam de cima para baixo e, spoiler, isso nunca vai acontecer. Ou vocês se informam do que acontece, acompanham, fiscalizam e cobram ou isso aí vai ser sempre uma República das Bananas, recheada de impunidade.

Trocar o bandido Bolsonaro pelo bandido Lula não resolve absolutamente nada, apenas dá o prazer de ver bolsonarista passando raivinha. Não importa a narrativa que você teve que construir na sua cabeça para ter estômago de votar no Lula, talvez seja hora de revê-la, para que nos próximos quatro anos você tenha um olhar crítico, fiscalizando e cobrando a pessoa que está gerindo o seu país em vez de colocar a culpa de tudo que der errado nas cagadas que o Bolsonaro fez no passado.

Quando eu era pequena escutava sempre que o problema era que “o brasileiro não tem memória”. Pois bem, veio a internet e agora ninguém precisa ter memória, todas as cagadas de político estão eternizadas (inclusive aqui, no Desfavor). Qual é o problema então?

Ter bandido de estimação e passar pano para as cagadas dele? Preferir desfilar virtude a de fato fiscalizar e criticar? Preguiça? Egoísmo? Burrice? Falta de autoestima acreditando que o povo não pode fazer nada? Juro que não sei qual é o problema do brasileiro, mas sugiro que olhem para isso e resolvam, caso contrário vão ficar sempre assistindo abusos de camarote.

Não é normal que de 300 condenados com provas robustas (incluindo confissões) apenas um fique preso. Não é normal que para soltar o Lula se aceite isso como preço a pagar. Não é normal que se fique indiferente a isso. Não é normal que o povo não se sinta parcialmente responsável, deixando toda a responsabilidade para o Judiciário.

Repito: seja um funcionário da sua quitanda, seja um juiz, se você não acompanhar, fiscalizar e cobrar, existem grandes chances de a pessoa fazer cagada, seja por maldade, seja por incompetência ou até por excesso de confiança. Todos nós, de tempos em tempos, damos um relaxo e fazemos uma cagadinha aqui e outra ali, o que nos ajuda é o entorno, que nos chama à realidade e nos coloca nos trilhos novamente.

Político não é Deus, é seu funcionário. Juiz não é Deus, é seu funcionário. Deputado não é Deus, é seu funcionário. Senador não é Deus, é seu funcionário. Fiscalizem seus funcionários e cobrem, eles estão fazendo cagada.

Para dizer que não pode fazer nada (pode sim, só não quer ter trabalho), para dizer que prefere viver em uma sociedade podre e corrupta do que assumir a responsabilidade de fiscalizar e cobrar ou ainda para dizer que você faz alguma coisa pois xinga muito em redes sociais: sally@desfavor.com

SOMIR

O cidadão chegou no psicólogo reclamando que não aguentava mais a bagunça em casa. Mulher histérica, crianças hiperativas… ele não tinha paz. O psicólogo sugeriu então que ele comprasse um bode e colocasse no meio da sala de casa. Ele ficou confuso, mas seguiu o conselho.

Um mês depois, ele voltou para o psicólogo, reclamando que não adiantou nada: tudo continuou igual e ele ainda tinha um bode fedido fazendo bagunça e sujando a casa toda. O psicólogo então sugeriu que ele se livrasse do bode.

Mais um mês se passa e o cidadão volta para a consulta com um sorriso no rosto: “sem o bode a minha casa ficou muito melhor!”.

Nessa história, o Bolsonaro é o bode. O Brasil já parece menos bizarro com o presidente quietinho no seu canto e pessoas menos malucas cuidando da transição para o próximo governo. Porém, da mesma forma que na anedota que iniciou o texto, não é como se estivéssemos resolvendo algum problema estrutural da nossa casa.

Vai voltar o chefe do maior esquema de corrupção da história do país, e com ele, boa parte da quadrilha. A notícia sobre o fracasso da Lava-Jato é um triste exemplo desse giro em falso do combate à corrupção no país. Lula está voltando, quase todo mundo preso na operação já está de volta em casa… é como se tivéssemos entrado numa máquina do tempo e desfeito os acontecimentos dos últimos 6 anos.

Eu e a Sally temos opiniões um pouco diferentes sobre o que causou esse fracasso, eu aposto mais em incompetência técnica e especialmente política, ela aposta mais em acordos entre corruptos. Não é que eu não ache provável que por trás da polarização midiática essa gente toda faça acordos escusos, duvido que não façam; mas eu enxergo uma série de erros no processo que causaram mais impacto no resultado final. Em 2018, o brasileiro topou usar o fuckin’ Bolsonaro como símbolo do movimento, e o até então heroico Sérgio Moro iniciou uma carreira política na cola dele.

Sobre a parte técnica dos processos eu não estou preparado para discutir, mas na parte de imagem eu tenho muita confiança em dizer que a Lava-Jato afundou por uma série de péssimas escolhas e egos fora de controle. Ficou grande demais para continuar apenas no campo técnico, virou um fenômeno cultural, e como fenômeno cultural precisava de muito mais atenção com a imagem que passava.

Em pouco tempo, a imagem da Lava-Jato estava atrelada com o presidente que ficou famoso discutindo com travesti no SuperPop. E como esse presidente vivia da polarização, foi transformando a questão toda em política. Lava-Jato acabou com sua imagem atrelada ao antipetismo (era anticorrupção e nunca deveria ter mudado). E para piorar, quando Moro bateu de frente com Bolsonaro, o gado do lado dele da cerca começou a desvalorizar o movimento também.

Foi uma falha publicitária causada por erros conscientes e inconscientes das figuras mais populares ligadas à operação anticorrupção. Politizou. E aí, o STF ficou livre, leve e solto para derrubar tudo, seja por suporte aos corruptos, seja por ego ferido pelo protagonismo do juiz de Curitiba. O resultado foi o mesmo: “desculpa, foi engano” e a bandidagem toda solta novamente.

Andamos, andamos… e voltamos para o mesmo lugar. Talvez até piores, porque a oposição ao bandido que vai tomar posse em 2023 está infestada de malucos que se penduram em caminhões e choram desesperados em frente aos quartéis, gente que acredita em fraude eleitoral contra o presidente que estava no poder e repete com orgulho na rede social o apoio do General Benjamin Arrola!

Quando seu mito é um bobo da corte e seus defensores mais ferrenhos caem em qualquer trollagem que veem nas redes sociais, o corrupto no poder agradece. Existe sim muito o que discutir com o PT, eles estão dando sinais claros de que vão cometer erros, mas nenhum deles vai ser instaurar o comunismo. A oposição brasileira perdeu uns 30 pontos de Q.I. em poucos anos, talvez até sejam pessoas menos capazes de roubar em larga escala, mas isso não compensa a insanidade que vai começar a desanimar o cidadão médio de pensar em política de novo.

A Lava-Jato dava um verniz de seriedade para a resistência ao populismo corrupto do PT, mas ele foi sendo carcomido por falta de manutenção. Virou essa pintura abstrata de gente insana com medo do Lula expropriar um dos quartos da sua casa. Eu tenho quase certeza de que o Desfavor vai parecer um disco riscado em relação aos seus primeiros anos, onde reclamávamos sem parar da sujeira que acontecia nos governos petistas e as decisões irresponsáveis para garantir reeleições.

Quase certeza. Porque pode ser pior dessa vez. A oposição do agora finado PSDB era uma vergonha, mas pode ser ainda mais inútil com o bolsonarismo: lutando com unhas e dentes para proibir todo tipo de aborto, mas incapazes de se coordenar para evitar suicídio econômico, até porque quando queriam reeleger o seu maluco de estimação, acharam ótimo explodir as contas do país. Não que na época de Eduardo Cunha as coisas fossem realmente sérias no Legislativo, mas pelo menos tinha algo para assustar o presidente em exercício.

O grande desfavor que eu vejo aqui é o desperdício de um ciclo inteiro de ânimo do povo contra a bandalheira que é o Brasil. A alma do movimento foi sugada pelo bolsonarismo, permitiu que os bandidos fossem soltos e misturou fanatismo religioso e fetiche militarista na história, perdendo completamente a identidade no meio do caminho.

Lula agradece.

Para dizer que já sabia, para dizer que a gente é sempre do contra, ou mesmo para dizer que Bolsonaro era o problema e agora tudo vai dar certo (opa!): somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Heliagar Romeu Pinto

    Político não é Deus, mas também não é simplesmente um funcionário e sim uma pessoa que foi oportunista o suficiente para usar da fama e da reputação para galgar em cargos políticos, que estão mais para concursos de popularidade do que propriamente para um espaço para discussão de políticas a sério em prol da sociedade.
    Aqueles mais de 8000 candidatos que se lançam em toda eleição são mais para vender uma fachada de que há uma democracia de fato, mas a maioria é colocada pra concorrer para puxar coeficiente em favor dos “cabeças de chapa” que geralmente já estão bem estabelecidos no campo da política.
    E a mídia geralmente faz bem o trabalho dela de manipular o gado no sentido de uma escolha que é conveniente a seus próprios interesses, sendo que competência e probidade passam longe de serem consideradas a sério, até porque se forem muito certinhos, sempre tem como se armar uma chicana para queimar o filme de quem não injeta dinheiro na mão desses manipuladores da opinião pública.

  • Minhas opiniões esquizofrênicas:

    Acredito que a Lava-Jato só rolou até 2019 porque a Máfia queria o PSDB de volta, subestimava o Bolsonaro, mas achava que se o Lula pudesse concorrer em 2018, ele venceria e pelo seu estado mental, faria um governo Dilma 3, que não seria interessante a eles. Pouco depois que o Alckmin entrasse, ela teria sido anulada do mesmo jeito. Apesar disso, acho que eles não consideravam interessante que o Lula fosse eleito novamente em 2022, então manteriam a inelegibilidade dele.

    Como o Bolsonaro entrou, a Máfia concluiu que o único político com condições de ganhar dele em 2022 era o próprio Lula. Com isso, anularam a operação, como já planejavam, mas garantiram que o processo dele não andasse pra mantê-lo elegível.

    Acho que se a situação degringolar o suficiente ano que vem, a Máfia vai fazer um acordo com ele pra que ele se afaste do governo e vá viver como um rei, fora do alcance da lei.

  • O pior é que se o ladrão fracassar o bode volta e vai ficar nisso, ainda mais que o bode tem uma seita de seguidores fanáticos.

    • Acho extremamente improvável. Bolsonaro sai dessa eleição como um pária político, e é bem possível que ele seja preso ou perca a elegibilidade.

      Se ele mantiver seus privilégios, acredito que ele vai se retirar da vida política e se mandar pra Itália ou no mínimo se retirar para alguma cidadezinha. Se ele perder tudo e pairar a possibilidade dele inclusive ser preso, acho que ele mete uma bala na cabeça.

  • E essa inércia vem do mesmo povo que “bandido bom é bandido morto”.

    Até mesmo esse extremo não ajudaria nesse caso, criando apenas um efeito rebote e custando vida de laranjas (alguém coagido ou iludido suficiente para assumir crime alheio) ou mesmo inocentes.

    E cobrar político vai acabar com assistencialismo. Vai acabar com programas de bolsas. Vai acabar com cotas, vai acabar com favorzinho de amigo que trabalha não sei onde, vai acabar com carteirada, vai exigir que estude e cumpra deveres.

  • Posso mandar o link deste post pra um monte de parentes e conhecidos de esquerda e de direita que ainda vêm bater boca comigo passando recibo de que continuam não entendendo nada?

  • “Verniz de seriedade para a resistência ao populismo corrupto do PT” com processos manipulados e atitudes ilegais de juízes e promotores, com suporte de uma elite podre e hipócrita e de uma classe média histérica e imbecil. Em suma, mais um par de viúvas da Lava Jato.

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