Histórias de Vida – Parte 5

Nega Diaba Filha, candidata (derrotada) a deputada estadual no Rio Grande do Sul.

Adriana nasceu e cresceu num bairro pobre nos arredores de uma grande cidade, como tantos outros brasileiros. Criada por uma família, que como tantas outras brasileiras, encontra sua fé no sincretismo, passeou por missas católicas e rituais de Umbanda e Candomblé em proporções iguais durante a infância e a adolescência.

Antes do avanço dos evangélicos sobre sua região, era comum passear entre as religiões sem nenhum embaraço público. Nos últimos anos, até mesmo os criminosos locais começaram a reprimir a parte africanizada dessa mistura de fés. Adriana nunca fora muito participante em nenhuma delas, até o dia em que um misterioso incêndio destruiu um centro de Umbanda que frequentava às vezes em busca de conselhos para a vida. Por sorte, ninguém se feriu.

O clima não era muito propício para demonstrar suporte ao Pai de Santo Domingos, mas ela se arriscou mesmo assim. Sempre tivera uma vontade de enfrentar a opressão evangélica sobre as religiões com as quais cresceu e só tinha boas memórias. Junto com alguns poucos gatos pingados da comunidade, juntou-se no esforço de tentar salvar alguma coisa dos escombros carbonizados, mesmo sabendo que poderiam ser marcados pelos traficantes como apóstatas do cristianismo.

Pai Domingos já era muito idoso para se embrenhar naquele terreno perigoso. Adriana não teve medo das repercussões, não poderia deixar aquele homem abandonado numa hora tão difícil, assim como tantos de seus vizinhos. Ele parecia especialmente preocupado com uma caixa de cartas antigas, que descrevia ser herança de gerações de sua família, desde o tempo da escravidão.

O avô de Domingos, filho de uma das últimas escravas brasileiras, tivera a sorte de aprender a ler e escrever junto com os filhos da antiga família que detinha a posse da mãe. Por falta de opções, decidira se manter na casa como empregada “da família”, para pelo menos dar algumas opções para o filho. E o filho acabou se tornando um estimado membro da intelectualidade gaúcha, isso é, no limite do que se aceitaria de um homem negro na época. O suficiente para trocar cartas com diversos pensadores e autores da época, mas não para ser lembrado de alguma forma pelos dias modernos.

A expectativa de encontrar uma caixa de madeira recheada de papéis antigos depois de um incêndio era basicamente nula. Mas Adriana não soube a que divindade agradecer pelo milagre: dentro de uma gaveta numa escrivaninha extremamente danificada pelo fogo, a caixa marrom, conforme descrita por Pai Domingos, estava intacta.

O idoso se iluminou num sorriso emocionado ao encontrar a caixa. Ele a abriu e confirmou que todos os papéis carcomidos pelo tempo ainda eram legíveis. Adriana sugeriu escanear as cartas para evitar o risco de serem perdidas novamente. Pai Domingos mal entendeu sobre o que ela falava, mas disse que ela encontrar a caixa era um sinal. Disse também que sentia que havia algo ali para ela, um sussurro recebido por uma alma muito antiga na noite do incêndio.

Foi em casa que leu as cartas antes de escaneá-las com cuidado na faculdade que frequentava a duras penas. O material continha várias conversas entre um homem chamado Francisco da Silva e diversos outros homens, vários deles do Rio de Janeiro e de Salvador. Falavam sobre histórias dos escravos brasileiros, esquecidas ou suprimidas por um país que queria se concentrar em suas raízes europeias.

E como Pai Domingos previu, tinha algo ali para ela, algo que a fez pensar em política e até mesmo adotar um novo nome:

Essa história começa bem antes do nascimento de Adriana. Começa em um casebre afastado das ruas principais de Porto Alegre no século XVIII. Iluminado por algumas poucas velas e a luz da lua cheia, o local servia há alguns meses de ponto de encontro clandestino para a prática do Candomblé. A religião de origem africana só podia ser praticada de forma velada pelos escravos através da utilização de santos católicos como substitutos, mas naquele terreiro, a yalorixá Thomasia mantinha os nomes originais.

Thomasia nascera numa fazenda do interior gaúcho, e fora vendida ainda menina para uma família da capital. O nome pomposo era uma homenagem – à revelia da mãe – à matriarca da família de seus captores, o qual prontamente trocava para Abidemi durante os rituais. A recusa de cristianizar sua fé ajudou o terreiro a ganhar popularidade e seguidores.

Naquela noite de verão, a lua estava especialmente iluminada. Thomasia nunca tinha visto tanta gente reunida ali. Permitiu-se um sorriso com a crença de que estava fazendo alguma diferença na manutenção das tradições do seu povo, mas logo sentiu um calafrio atravessando a espinha. Por trás do mato alto que cercava o terreiro, viu a luz refletindo no metal do cano de uma arma.

Os gritos vieram com alguns segundos de atraso em relação ao primeiro estampido. Não demorou para que dezenas de homens armados invadissem o lugar atirando. Eles cercaram os quase cem escravos e alguns poucos negros livres que se congregavam ali. Dois corpos já derramavam sangue na terra batida. Os homens sequer deram a Thomasia a dignidade de procurar um líder do grupo, pela voz do líder da guarda local – um capitão do exército de nome Sebastião – avisou que a casa seria queimada e ninguém poderia voltar pra lá sob pena de morte.

Resignados com a injustiça constante e temerosos pela vida, a maioria dos presentes começou a marcha de volta para a direção da cidade. Thomasia tomou uma decisão diferente. Ela andou em direção à casa. Os soldados já estavam derramando óleo nas paredes. Lá era seu lugar de fé, de poder. Um dos homens tentou a segurar pelo braço, dizendo que a casa seria queimada de qualquer jeito. Thomasia se desvencilhou, e sem dizer uma palavra, continuou seu caminho.

Entrou sozinha ali. O povo que já voltava parou. Até mesmo os homens armados ficaram sem resposta por algum tempo. O ato de Thomasia foi poderoso o suficiente para criar um impasse. Algumas vozes já se levantavam, empoderadas pela coragem de sua líder. Percebendo a situação, o capitão dos agressores deu um sinal para seus soldados controlarem a multidão. Ele acendeu uma tocha e foi em direção ao casebre.

Sebastião deu uma chance para Thomasia sair dali, prontamente ignorada. Ele, sem vacilar, ateou fogo a um dos fios de óleo de lamparina que escorriam pelas paredes de madeira do casebre. O fogo pegou numa velocidade absurda, faminto como poucas vezes tinha visto. Dois tiros foram suficientes para dissuadir os primeiros que tentaram socorrer a yalorixá, e enquanto o fogo tomava conta da casa, Sebastião se aproveitou para se posicionar com os braços abertos, exigindo uma oração cristã de todos os presentes.

Aos poucos, com o incentivo das armas apontadas, a reza se tornou uníssona. O fogo já tomava conta da casa toda, banhando de laranja e vermelho os rostos negros que já se enchiam de lágrimas. Não se ouviu nenhum grito de Thomasia, orgulhosa até na morte mais horrível que se possa imaginar. Diante do fogo, Sebastião era uma silhueta escura. Sua sombra era longa e dançava com as labaredas, como se quisesse passar por cima de todos os presentes, um por um.

O fogo e a oração cristã formavam uma cena que ele imaginava ser um ritual de purificação. Ele sentia o poder de Deus emanando da sua voz. Não conectou os pontos quando escravos, negros livres e até mesmo seus soldados arregalaram os olhos. Imaginou que um anjo estava se manifestando ali.

Foi quando viu um vulto na altura da cintura. Duas mãos pretas como o carvão, envoltas em fogo, agarraram seu torso, e uma força irresistível o puxou em direção ao fogo. Ele pode ouvir alguns tiros antes de sentir o calor terrível na pele. Depois disso, apenas dor.

Quem estava lá viu o vulto flamejante de uma mulher puxar o capitão da guarda para dentro do fogo. Mesmo com os tiros dos soldados, foi impossível parar o movimento. Sebastião sumiu lá dentro para nunca mais ser visto. Os soldados eventualmente dispersaram a multidão, mas a lenda se espalhou. Abidemi filha de Xangô para quem estava lá, Nega Diaba para quem ouviu a história pelos soldados. Ela deixou um filho muito novo, que viveu a vida toda sem saber da história da mãe.

Isso porque a história foi reprimida pela Igreja Católica, e eventualmente forçada a ser esquecida até mesmo pela tradição oral dos escravos. A história era poderosa demais, e tudo o que o poder vigente não queria era um símbolo poderoso desses.

Se você perguntar para qualquer pessoa do Candomblé atualmente, vão negar conhecimento do caso. Hoje em dia quem passa pelo local onde tudo aconteceu vê apenas mais uma rua em mais um bairro de uma grande capital. Alguma família de classe média deve viver sobre as cinzas de Thomasia/Abidemi e Sebastião sem ter a menor ideia do ocorrido.

Até por isso, Nega Diaba Filha não conseguiu se eleger. Mas dentro dela há uma chama que não deve se apagar tão cedo.

Para dizer que eu estou indo cada vez mais longe, para dizer que nem lembra mais por que esses textos existem, ou mesmo para me dar uns milhões para fazer a série (aceito PIX): somir@desfavor.com

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