A porra do gato…

Passamos a semana putos da vida com a história do gato. Não com o gato (que podia ter sido tratado melhor), mas com a história do gato. Por que isso causou tanta comoção? Que prioridades são essas? Desfavor da Semana.

SALLY

Para que saia alguma coisa de útil deste texto inútil, vou aproveitar para fazer um esclarecimento: não se pega gato desse jeito.

“Ain mas é por aí que a mamãe gato segura os filhotes”. Sim, os filhotes, que pesam muito menos e que ela sabe exatamente por onde pegar e que pressão fazer. Não se pega gato desse jeito, a menos que seja uma situação extrema, como um resgate, onde a vida do animal corre perigo e ele precisa ser removido imediatamente – o que não era o caso, visto que o bicho estava de boa, aceitando inclusive carinhos.

Dito isso, não parece um tanto quanto fora de lugar o escândalo que fizeram por essa remoção bruta do gato da entrevista? Quero dizer, estamos falando de um evento em um país que não respeita direitos humanos, que trata pessoas como lixo, que construiu estádios na base de trabalho escravo e morte de operários. Sério mesmo que o gato é o problema?

E, veja bem, longe de mim usar um texto para militar. Assiste à Copa do Mundo quem quer, inclusive acho um saco quem fica constantemente lembrando das cagadas que o Catar faz. Quer se indignar e criticar? Apoiado. Não quer se indignar e quer apenas assistir a futebol em paz? Apoiado.

O que não faz o menor sentido é ignorar todas as bostas que o país faz, mas se insurgir por terem retirado um gato de cima da mesa de forma ríspida. Não é sobre levantar uma bandeira ou outra, eu posso respeitar todos os posicionamentos. É sobre coerência. Incoerência fica um pouco mais difícil de se respeitar.

Mas, como sempre, as prioridades estão todas erradas, tudo confuso, misturado, mas compreendido. É defensor dos direitos humanos e se revolta com país que não os segue? Não assista à Copa. E, adivinha só, dá para não assistir a Copa EM SILÊNCIO, sem ficar recrutando, cagando regra e lacrando. Quer passar por cima da questão humanitária e assistir a Copa? Maravilha, assiste à Copa sem militar, nem pelos direitos humanos, nem pela porra do gato.

O que não dá para se indignar com maus tratos a gato, mas não a seres humanos. Aí é de uma demência que precisa ser analisada para entender o que diabos acontece com o pequeno cérebro de caroço de uva do brasileiro. Vamos refletir sobre isso?

Não achei graça em ver o gato sendo escrotizado dessa forma, mas, se for para abrir a boca e reclamar, eu teria dezenas de críticas antes dessa ou ao menos em conjunto com essa. Por qual motivo uma pegada bruta/desnecessária repercutiu mais do que atrocidades cometidas contra seres humanos? Juro, eu passei a semana pensando nisso. É preciso tentar encontrar uma explicação, para tentar corrigir essa disritmia mental que o brasileiro apresenta.

Minha teoria: provavelmente pelo fator visualização: uma coisa é te contarem que um babaca pegou de forma escrota um gato que não estava fazendo mal a ninguém, outra é ver isso com seus próprios olhos. Talvez se as pessoas tivessem visto uma transmissão onde trabalhadores escravos morriam durante a construção dos estádios, a repercussão desse “detalhe” também seria maior.

Preocupante, não? Precisar ver um crime, uma agressão, uma violação aos direitos humanos para sentir revolta e repudiá-la. Muito preocupante. Talvez isso explique a apatia do brasileiro com tantas questões graves contra as quais ele tem uma reação mais branda: ficar sabendo que aconteceu não gera o mesmo impacto de efetivamente ver enquanto acontece.

Em retrospectiva, minha teoria da incapacidade de abstração encaixa em outras situações. Covid, por exemplo. A pessoa sabia que tinha um vírus que podia matar solto nas ruas antes de existir vacina e saíam do mesmo jeito. Se fosse algo palpável, visível, como um tigre ou um leão nas ruas, provavelmente muita gente que saiu não teria saído.

A capacidade de abstração é uma característica de cérebros mais desenvolvidos. É sutil, precisa de uma série de recursos, referências e bagagem para ser mensurada e compreendida. Tanto é que a maioria dos animais não a tem e mesmo os seres humanos demoram bastante para desenvolvê-la.

Uma criança pequena, por exemplo, pode tomar decisões muito erradas quando é colocada em contato com abstração. Por exemplo, você pode oferecer uma bala a ela agora (mostrando o doce) ou cem balas (sem mostrar o doce) se ela esperar por um minuto. Crianças com menos de cinco anos costumam escolher uma bala agora, pois tem dificuldade com a abstração, em visualizar o ganho que terão se esperarem por um minuto.

Ao que tudo indica, a maturidade e capacidade cerebral do brasileiro médio está nesse nível: de crianças com menos de cinco anos. Se algo depende de abstração, a pessoa simplesmente não consegue lidar, compreender ou se portar de acordo.

O Catar admite pelo menos 500 mortos na construção da infraestrutura da Copa. Sabemos que são mais, porém, para fins didáticos, vamos usar os números oficiais. Se a gente pudesse fazer um videoclipe dessas 500 pessoas trabalhando em condições horríveis e o momento de suas mortes e exibíssemos isso para o Brasil, provavelmente muita gente se revoltaria, faria altas críticas em redes sociais e até deixariam de assistir à Copa.

Mas, como é uma abstração, o cérebro do brasileiro parece que dá a descarga na informação, como se fosse uma privada. Político roubou milhões que eram da saúde e por isso pessoas morreram sem medicamentos? Descarga. Dinheiro da merenda escolar sendo desviado e crianças malnutridas passando fome? Descarga. O que não estiver claramente documentado e for exibido, parece não ser absorvido pelo pequeno cérebro dessa gente bronzeada.

Então, deixo aqui minha humilde teoria, sem qualquer pretensão de que seja verdadeira e os convido a testá-la na prática: quando quiserem que alguém se insurja contra algo, experimentem tirar esse algo da abstração e transformá-lo na coisa mais concreta e palpável que puderem. Depois me contem se deu certo.

Para dizer que o Brasi vai perder graças à Maldição do Gato, para dizer que não adianta usar uniforme com estampa de felino se escrotizam assim um animal ou ainda para dizer que todo castigo para essa seleção escrota é pouco: sally@desfavor.com

SOMIR

Começo falando com a experiência de quem tem mais de um gato em casa: foi meio bruto mesmo. Mas francamente, é um bicho. Bicho não se ofende por muita coisa e tem uma relação bem mais utilitarista com a dor. Gatos tem a mania de ficar andando entre as pernas de pessoas, e eu já perdi a conta de quantas vezes pisei na pata dos que já tive. Um gato não entende o conceito de sem querer, porque quase sempre ficam assustados com você por alguns segundos depois de um pisão; mas desde que a média do seu tratamento com o bichano seja boa, são excelentes em seguir em frente como se nada.

Começo assim porque o conceito de abuso de animais fica absurdo quando chega na internet. O que aconteceu não foi nem perto de ser abuso. Existiam jeitos melhores de lidar com o animal, mas… menos, né? O gato já estava cagando e andando para o acontecido 10 segundos depois. Seja como o gato: siga em frente.

Mas como a Sally já adiantou, não é sobre o gato, é sobre a história do gato. As memes da maldição do felino gerando a eliminação do Brasil são engraçadas, a discussão sobre como pegar um gato estranho até que soma alguma informação ao cidadão médio, mas o mimimi de estarem fazendo mal para o bichinho inocente deveria ter ficado na caixinha de areia.

Especialmente porque é mais um caso de prioridades bizarras. Eu entendo ficar puto da vida com gente que realmente maltrata e tortura outros animais, faz parte do nosso senso básico de empatia; só que essa cruzada virtual contra qualquer pessoa que é menos do que extremamente carinhosa com animais de estimação é problema na cabeça. A vida não é só amor e carinho, a vida é pancada e incômodo também.

Muita gente acaba idealizando a relação que se tem com animais porque quer viver num mundo perfeito onde tem controle. O animal irracional pode ser protegido do mundo ruim lá fora, ele pode ser isolado e viver algo “perfeito”, dando alguma sensação de poder para as pessoas. Não me entendam mal, eu não estou me colocando totalmente fora desse grupo, é algo que está no fundo da cabeça de todo mundo que tem um animal de estimação, essa sensação de controle sobre a vida, e caso você não seja um psicopata, um controle positivo: oferecendo uma vida boa para um animal que provavelmente oferece afeto de volta.

Mas aí é importante saber analisar os próprios comportamentos e perceber que nada é de graça nessa vida. Existe sim uma compensação em relação ao mundo dos humanos. Pessoas são frustrantes, muito difíceis de se controlar, especialmente quando você quer as endorfinas vindas de ver outros seres felizes e realizados. Tem muita coisa errada nesse mundo, tem muito sofrimento e injustiça ao nosso redor.

Tentar buscar essa realização de ver os outros bem também com seres humanos é muito complicado. Mal damos conta de nos fazer felizes, imagine só outro ser humano? É aí que se você prestar atenção, vai começar a perceber por que tanta gente exagera no zelo com animais como gatos e cachorros. Porque é relativamente fácil. No caso que ilustra o texto de hoje, é só se imaginar pegando o gato de forma mais amorosa ou mesmo deixar ele quieto para enxergar um mundo melhor.

Agora, quando o assunto são os trabalhadores explorados do Catar, já não tem um caminho tão fácil assim para resolver tudo, né? Ou mesmo o mendigo que você vê na rua do seu bairro. O ser humano é complexo individualmente e em suas relações como os outros. A sensação de controle desaparece. E aí, parece que ao invés de aceitar o desafio de buscar melhorias nas vidas dos seres humanos, as pessoas dobram a aposta na simplicidade de querer vidas melhores para cachorros, gatos e cia.

E aí, vemos a histeria ridícula ao redor de um Zé Ruela pegando um gato de um jeito desconfortável. Não deixa de ser um tapa na cara de quem queria um atalho para “fazer o bem”, alguém mexendo na sua zona de conforto, tratando bicho com desinteresse, como se fosse só um… bicho. Talvez nesse momento a pessoa que se ofende muito esteja vendo uma ilusão sendo quebrada: a própria ilusão de controle.

É natural querer ver seres simpáticos bem tratados e se revoltar contra abusos, mas se você perde a cabeça com uma cena banal como essa, certeza que tem algo precisando de resolução na sua cabeça. Uma ideia de perfeição na relação entre o humano e o bicho que foi colocada lá para cobrir alguma frustração ou incapacidade de lidar com as relações humanas.

O mundo é difícil, acontecem coisas horríveis com pessoas todos os dias, quase todas elas sem justificativa, tortura, covardia, abuso… mas isso não pode significar alergia ao sofrimento humano, não pode virar foco doentio em bem estar de outras espécies. Toda vez que eu vejo algum ativista muito histérico pelos direitos animais, eu vejo também alguém desistindo da humanidade.

Quer desistir? Desista. Mas pelo menos saiba o que está fazendo. Não ache que compensar com cachorros e gatos é uma alternativa viável. Não te torna uma pessoa melhor saber ou querer pegar um gato de forma mais carinhosa que o cidadão da história, não necessariamente. A linha entre relação neutra com animais e comportamento abusivo está muito além do que aconteceu naquela coletiva de imprensa.

Se você puxou a linha para considerar aquilo um crime horrível contra outro ser vivo, olhe para dentro agora. Essa linha está num lugar estranho, e está lá porque alguma coisa na sua relação com seres humanos empurrou ela. Até bêbados que brigam, mas se perdoam e se abraçam depois estão com a cabeça um pouco mais em dia. A vida não é perfeita, não tem como ser perfeita, e toda vez que você tenta forçar ela a cumprir esse papel, acaba sofrendo à toa.

O gato passou o resto da entrevista sentado ao lado da mesa, pouco se lixando para o que tinha acontecido minutos antes. Provavelmente teria preferido carinho e atenção em cima da mesa, mas vida que segue. Todos nós temos a capacidade de viver em um mundo imperfeito. Não precisa se esconder atrás de ativismo animal de rede social para lidar com o sofrimento ao redor do mundo. Ele vai existir por muito e muito tempo, e se você conseguir ajudar um pouquinho que seja, já está indo muito bem.

Para dizer que achou que a porra do gato ia sumir depois da eliminação, para dizer que desistiu com gosto, ou mesmo para dizer que preferia ter continuado sem saber sobre o tema: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Teve até um grupo de defesa dos animais que entrou com uma ação judicial contra a CBF por causa dessa história do gato…

  • Dois fatores: a vizualização e aquele velho ditado, “uma morte é uma tragédia, mil mortes são uma estatística”. Ninguém viu os mortos da copa, que estimam-se em mais de seis mil, mas todo mundo viu o gato sendo jogado no chão. E se levantar o número de mortos, bem provável que a primeira reação seja pensar em algum número maior, como 60 mil homicídios por ano ou não sei quantos gorilhões de mortos em alguma outra desgraça mundial.

  • Caio Revela Ser O Bolsonaro Balofo da Era POC

    Minha teoria: provavelmente pelo fator visualização: uma coisa é te contarem que um babaca pegou de forma escrota um gato que não estava fazendo mal a ninguém, outra é ver isso com seus próprios olhos. Talvez se as pessoas tivessem visto uma transmissão onde trabalhadores escravos morriam durante a construção dos estádios, a repercussão desse “detalhe” também seria maior.

    Qualquer semelhança aqui com o famigerado caso GEORGE FLOYD está longe de ser mera coincidência. E advinhem: Nessa semana aquele narigudo que apresenta programa de TV no fim de semana na Globo foi fazer uma pergunta de conhecimentos gerais tratando da questão e… Aqueles militantes cheios de sinalizar virtude sairam e aproveitaram pra meter o pau nele em nome de quinze minutos de fama.

  • Não tem jeito, essa copa vai ser lembrada pela copa do gato e copa das zebras. Ele podia ter deixado o gato quieto lá. Marrocos hoje mandou Portugal pra casa. Vou rir muito se a final for entre Marrocos e Croácia, aí vou torcer pela Croácia por gratidão em ter eliminado o Brasil.

    • “Essa copa vai ser lembrada pela copa do gato e copa das zebras”. Sim, mas não se esqueça do Pombo. E do Burro…

  • Indignação seletiva, né? Tem gente que se descabela com problemas menos graves enquanto ignora coisas bem maiores e mais sérias.

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