Cliente Sabe-Tudo

Se na sua profissão, trabalho, ofício ou função você lida com clientes, então talvez você possa se beneficiar do texto de hoje. Escrevi pensando em publicitários, mas basicamente serve para qualquer pessoa que tenha um Cliente Sabe-Tudo.

Quem trabalha com cliente certamente já se deparou com um Cliente Sabe-Tudo: aquele que, apesar de não ter o conhecimento que você tem sobre o trabalho/produto/serviço, se sente apto a te dizer como ele deve ser feito. Não apenas apto, ele se sente no direito e acha que sua opinião deve ser levada em conta, como se ele tivesse qualquer subsídio para formar uma opinião consistente.

Você pode ser um neurocirurgião ou um pintor de parede, não importa, aquele cliente sem conhecimento algum no que você faz quer saber os detalhes e, pasmem, te dizer como ele acha melhor que aquilo seja feito. Pois bem, isso é ainda pior na publicidade, pois, aos olhos de um leigo, existe a falsa impressão de que para fazer publicidade é preciso criatividade e uma boa ideia.

O Cliente Sabe-Tudo está em todos os lugares. A razão pela qual esse cliente contrata um profissional é um completo mistério para mim, já que ele quer as coisas do jeito dele, o que quase nunca coincide com o jeito certo, produtivo ou recomendado de fazer as coisas. Acredito que, na verdade, o que ele realmente compra/contrata seja um aval: faça tudo do meu jeito e se não der certo, eu tenho alguém para colocar a culpa.

Existe um motivo pelo qual é preciso estudar para desempenhar uma profissão, um trabalho, uma profissão, um ofício ou uma função: existem técnicas, estudos, pesquisas, material escrito sobre a melhor forma de se fazer algo.

Também existe um motivo pelo qual pessoas com mais tempo de mercado cobram mais caro: além de terem estudado a melhor forma de executar suas tarefas, elas também vivenciaram muitas experiências que lhes permitiu antever erros e sucessos, adaptar seu conhecimento teórico à realidade onde vivem e compreender em profundidade aquele mercado.

E, meus queridos, isso não é questão de “bom-senso” ou “bom-gosto”. O que para você pode parecer ótimo, para o mercado pode parecer uma belíssima porcaria. Seu achismo, sua opinião e sua preferência servem muito bem para nortear sua vida, a decoração da sua casa ou seu corte de cabelo. Fora disso, você tem que escutar o que diz um profissional, ainda que essa não seja sua preferência.

Pode parecer óbvio, mas compreender que sua preferência não vai traduzir o que é melhor para sua empresa, seu serviço ou seu produto é algo que poucos brasileiros conseguem racionalizar. E mesmo aqueles que, por algum milagre, racionalizam, podem encontrar dificuldade em se comportar de acordo.

Existe um pensamento caipira, subdesenvolvido e passional de que o “seu” produto, a “sua” marca ou o “seu” alguma coisa tem que ter a sua cara. Não, não tem. Ele tem que ser funcional, passar credibilidade, respeitar a lei e se atraente para o público-alvo. E, adivinha, nem sempre seu público-alvo é igual a você! E, geralmente, o que você gosta passa longe do que se procura.

Essa coisa de querer fazer do seu trabalho, ofício ou função seu “filho”, com o seu “dna” é uma das coisas mais carentes e imbecis que já vi. Onde eu moro, uma pessoa que se comporta assim é chamada de amadora e as portas se fecham. No Brasil não, no Brasil as pessoas colocam seu próprio nome da sua empresa e acham que é lindo: “Janderson Mudanças”, o que pode dar errado?

Vivemos em sociedade, existem regras mínimas às quais temos que nos adaptar. Ninguém quer que você seja escravo dessa sociedade doente nem que paute toda sua vida por ela, mas um mínimo, um mínimo precisa ser respeitado se você quiser transmitir a imagem que está na sua cabeça – e não a imagem de uma pessoa completamente retardada.

“Mas esse é meu jeito”. Beleza, leva teu jeito na tua vida pessoal, e te desejo muita sorte para que você consiga construir relacionamentos sincermos, maduros e duradouros. Na parte profissional, seu jeito não tem lugar. Alguém escuta? Claro que não, as pessoas se acham tão importantes e especiais que insistem e fazer o que querem. Adultinha infantilizada gosta de Hello-Kitty? Manda bordar no jaleco que usa enquanto estuda para ser neurocirurgiã, confia no seu potencial, vai passar seriedade e credibilidade sim!

O mais interessante é observar como esses clientes argumentam. É basicamente um único argumento, com poucas variações: “É que eu gosto mais assim”, “É que eu prefiro assim”, “É que assim é a minha cara”.

Justamente! Esse é o problema, ser a sua cara! Se “a sua cara” fosse algo bom, vendável, de credibilidade, confiável e de bom-gosto, você não teria a necessidade de procurar um profissional, certo? Seu consultório estaria cheio, seu produto estaria vendendo como água, sua loja estaria faturando alto. Se não está jorrando dinheiro na sua conta, então, meu anjo, “seu jeito”, “sua cara”, não funcionam. Respira fundo e deixa ir.

Um publicitário (ou qualquer outro profissional) não serve para pegar o que você quer, fazer mágica e transformar num sucesso. Um publicitário serve para pegar o que você quer, te mostrar o que funciona e o que não e te dizer o que deve ser colocado no lugar do que não funciona.

Querer sucesso, querer melhora, sem descartar o que não serve se chama ilusão, devaneio, infantilidade. Seria como uma pessoa com problemas de coração que vai ao cardiologista e diz “ok, doutor, eu quero ficar saudável, mas não quero me exercitar, nem parar de comer gordura, nem parar de fumar, me deixe saudável sem mexer nessas coisas”.

Ninguém faz isso com o médico, pois desconhecem medicina, que é tratada como algo mais complexo e inacessível do que publicidade – e menos subjetivo também. As pessoas simplesmente mentem para o médico: não fazem o que ele pediu e continuam indo, esperando que ele tente outros caminhos para conseguir o resultado desejado.

Mas para o publicitário, todo mundo se impõe, afinal, a pessoa “está pagando”, ela quer que seja “do jeito dela”. Vou repetir: se do jeito dela desse certo, ela não precisaria contratar um publicitário. Se você está contratando um publicitário, do seu jeito não funcionou, então, deixa na mão de quem sabe e tenta não atrapalhar.

E não tem coisa mais odiosa do que cliente que quer tentar conjugar o que ele gosta com o que o publicitário sugere. Fica um Frankenstein ainda pior do que a ideia merda original que ele trouxe. Misturar flores com merda não anula o cheiro da merda, apenas contamina o cheiro das flores. Não “tem que ter algo do jeito que eu quero”. O que tem é que desmerdificar o que o seu querer contaminou. Deixe o publicitário limpar.

“Mas eu não pedi opinião, eu pedi que seja feito desse jeito”. Então… O profissional não é uma impressora 3D, que cospe o que você programa. Não é assim que a banda toca. O profissional (ao menos o bom profissional) vai avaliar o caso e ELE, com seu conhecimento teórico e prático (que você não tem), vai definir qual é a melhor estratégia.

E o papel de um profissional não é apenas fazer as coisas como devem ser feitas, é também orientar o cliente, explicando que o jeito dele é errado, incorreto e contraproducente. Então, o profissional vai te explicar os motivos pelos quais o seu jeito não dá certo (repito mais uma vez: quando o jeito da pessoa dá certo ela não precisa contratar um publicitário). Nesta situação, a coisa decente a fazer é agradecer e acatar a opinião de um profissional.

Não gosta? Vai embora e faz sozinho. Só não diga que “não concorda”, pois para concordar ou discordar de algo, tem que ter subsídio, fundamento, conhecimento. Por exemplo, você concorda que o centro de gravidade de um buraco negro é menor do que sua massa? Você não concorda nem discorda, pois você não tem a menor ideia sobre o que estamos falando. Vale o mesmo para publicidade. Não gosta? Vai embora.

“Ain mas o produto é meu, então, o que custa fazer do jeito que eu quero, se não der certo o problema é meu”. Não, não, meu anjo. Não é bem assim. O produto pode ser seu, mas o trabalho do publicitário fica exposto para o mundo todo ver, e se ele for uma merda, por causa dos seus pedidos inadequados, cafonas ou sem sentido, isso afeta a credibilidade do publicitário.

Você operaria o nariz com o cirurgião plástico que fez o nariz do Michael Jackson? Faria harmonização facial com quem cuidou da cara de Jocelyn Wildenstein? Pois é, um trabalho ruim queima o profissional. Ninguém quer fazer uma coisa bosta para atender a um pedido de cliente e depois ficar queimado.

“Mas Sally, é só não colocar o seu nome nem o da sua empresa naquele trabalho”. Não adianta nada. Cliente fala. Cliente cita nome. Cliente cita nome em redes sociais. Um trabalho merda gruda em você como bosta seca. Não façam trabalho merda atendendo a pedido de cliente. Mudem essa mentalidade.

No Brasil, vigora essa mentalidade de senhor feudal de “se eu pedi e estou pagando, tem que fazer do meu jeito”. E vigora para ambos os lados, não apenas na cabeça do cliente. A coisa que eu mais conheço é publicitário que abre as pernas e acaba aceitando abominações pois “se não fizer o cliente vai procurar outro que faça”. É mesmo? Ainda bem que o cliente não pediu para comer seu cu, hein?

Isso se chama baixa autoestima. “Não, Sally, se chama pobreza, eu preciso do dinheiro!”. Ok, então se chama imediatismo, pois se você cede a coisas tecnicamente erradas, escrotas ou malfeitas por precisar do dinheiro, saiba que provavelmente, com isso, você conseguirá aquele dinheiro daquele trabalho, mas perderá outros (às vezes muito mais bem-pagos), pois um trabalho bosta fecha portas no futuro.

O grande problema é que o profissional nem sempre vê essas portas sendo fechadas. Eu já vi acontecer: indicar amigos, agências ou profissionais e o cliente, antes de contratar, pesquisa na internet. Pesquisa trabalhos dessas pessoas e, eventualmente cai em uma dessas abominações. Não no site do profissional, mas de um cliente, que o citou ao divulgar imagens medonhas de um evento/campanha medonha.

A pessoa que vê isso, desiste de contratar na hora. Mas, obviamente, não liga para dizer “oi, eu ia te contratar mas vi uma inauguração de loja que você fez com um boneco inflável do Bolsonaro gigante então estou desistindo”. A pessoa apenas não entra em contato e o profissional sequer tem a dimensão da quantidade de trabalhos que pode ter perdido por causa de uma teimosia idiota de um cliente.

Na real, muitas vezes o publicitário nem sabe que o cliente para o qual ele cedeu e fez um trabalho abominável está divulgando seu nome. Muitos clientes estão. Eu mesma já vi coisas que imediatamente me fizeram perguntar quem era o profissional responsável (já que obviamente, quem faz trabalho bosta tenta não se vincular a ele) e, quando isso me foi informado, fiz questão de nunca contratar esse profissional.

Então, este texto é basicamente para dizer duas coisas: 1) só tem cliente tirano exigindo as coisas do seu jeito por ter profissional medíocre que cede acreditando que está deixando de perder dinheiro quando o faz (a longo prazo está perdendo mais ao aceitar) e 2) o profissional brasileiro é muito submisso, doutrinado no “o cliente tem sempre razão” e passou da hora de romper com isso.

Acredite em mim: pessoas com baixa autoestima não são respeitadas, pessoas com boa autoestima são respeitadas. Muita gente erra por achar que se comportar com autoestima vai emputecer os outros… não vai, pessoas passam a te respeitar muito mais se você agir com confiança e autoestima. Parem com esse medinho de ofender cliente, se respeitem e não se rebaixem.

Faz o seu, faz o certo, faz com integridade e autoconfiança que uma hora o dinheiro vem. Só medíocres barganham com seu nome para conseguir dinheiro.

Para dizer que você tem Clientes Sabe-Tudo, para dizer que se você está pagando quer tudo do seu jeito (fique longe de mim) ou ainda para dizer que é questão de tempo até eu morrer de fome: sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Desfavores relacionados:

Etiquetas: ,

Comments (18)

  • Esse texto abriu minha mente.
    Acabo cedendo muitas vezes e isso me dá uma frustração absurda
    Preciso trabalhar isso em mim

  • Vendedor Irritado

    Pior que o sabe tudo é aquele que acha que sabe tudo.
    Informação é importante na hora de tomar uma decisão de compra, mas o que acha que sabe tudo tende a ser um reclamão que dá uma dor de cabeça enorme no pós-venda.
    Não a toa as grandes lojas só aceitam devoluções de eletrônicos em no máximo três dias e daí pra frente, fica por conta da assistência técnica.

  • Vida em sala de aula se tornou isso: um monte de aluno sabe tudo, mas somente se tiver conexão com internet. Sem isso não sabem organizar um pensamento sozinhos, acham que vc está ali para entretê-los (um ódio chamado gamificação).

  • No início eu pensava assim também, mas agora o que me importa é que o dinheiro caia na conta, faço a vontade do cliente e vida que segue, nem esquento mais a cabeça.

  • Um dos casos mais pitorescos é o hipocondríaco que visitou o Dr. Google e já sabe o que tem e quais exames precisa fazer pra comprovar isso.

    Ele pode ter “sorte” e confirmar sua suspeita.

    Ele pode ter sorte e descobrir que ele não tem nada, ou então algo muito menos grave.

    Mas ele pode não ter sorte e descobrir que ele está realmente doente e tem algo bem mais grave do que ele pensava. Geralmente alguma doença irreversível. Pelo lado positivo, isso tem uma chance considerável de acabar com as visitas desnecessárias a médicos.

      • Como todas as conquistas humanas, o acesso facilitado à informação também pode ser mais um problema do que uma solução nas mãos de pessoas sem muito bom senso.

    • Isso sem falar no “pequeno detalhe” de que a maioria das pessoas ainda não sabe sequer usar o Google direito, o que as deixa aínda mais propensas a cair na primeira armadilha virtual “pega-trouxa” com que se deparam.

  • E quando você explica ao cliente o porquê de algo funcionar assim ou assado, e o energúmeno te invalida citando algum idiota prostituto? “Ah, mas o Fulano trabalha assim e adora”, “mas o Beltrano consegue fazer assim, você que tem que se atualizar”, etc.

    Ou pior, quando cita algum famoso que fez alguma insânia e quer que você valide também. “Ah, porque Fulano publicou um livro escrito com suas próprias fezes, eu quero também”.

    Muitas vezes esquecem que famoso pode fazer o que quiser que dá certo justamente pela fama que já possui (e que foi construída respeitando noções básicas do mercado).

    • Sim, é extremamente difícil que um cliente entenda sua irrelevância no mercado. As pessoas se acham tão especiais…

  • Concordo com você, Sally, mas você também não teme que um Cliente Sabe-Tudo contrariado te faça perder boas oprtunidades por “fazer sua caveira” pra outros possíveis futuros contratantes?

    • Não, não temo isso não. Certamente eu não vou fazer nem nome nem carreira se não tiver liberdade de escolha e de trabalho, seguindo orientações de uma pessoa que não tem conhecimento técnico para orientar.

  • Quando um cliente vem pra cima de mim com esse papo de “Eu tô pagando!” já vou logo o chamando de “Lady Kate”, aquela perua nova-rica caricaturada do Zorra Total…

Deixe um comentário para Maya Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: