Desfavor do Ano: 2022

O ano de 2022 começou com dúvidas sobre a capacidade de surgir algum candidato capaz de enfrentar a dupla Lula e Bolsonaro. O ano de 2022 terminou com a certeza que não era possível. A morte da terceira via é o Desfavor do Ano.

SALLY

2022 teve muitos problemas sérios, coisas como guerra e pandemia, mas, ainda assim, o Desfavor do Ano mais uma vez é sobre o brasileiro: acabou a terceira via no Brasil. Provavelmente, por muitos anos o país vai ser um cosplay de EUA, com sua versão tupiniquim de Democratas x Republicanos. Dois lados predefinidos e ninguém mais tem chances de vitória.

Além de limitar absurdamente a escolha do brasileiro, essa palhaçada acaba condenando o país a uma eterna repetição: o que você quer tolerar, os erros da “esquerda” ou os erros da “direita”? A resposta, já sabemos: a cada eleição o brasileiro corre para o lado oposto ao que está governando, pois tem fresquinha na memória as cagadas do Presidente da vez.

Para que o novo entre, o velho precisa sair. E o brasileiro não parece estar disposto a permitir que o novo entre, se apegando a umas bostas velhas de uma forma que é simplesmente inexplicável. Essa esquizofrenia de ficar pedindo que tudo mude, mas mantendo as mesmas atitudes de sempre é uma armadilha tão previsível que eu não consigo entender como ainda tem gente caindo nela.

Duas coisas precisam mudar para quebrar esse círculo vicioso tenebroso. Uma é que o brasileiro tenha autoestima. Autoestima de verdade, não postar foto de biquini na laje se autoelogiando. Entender e colocar em prática que político é seu funcionário e só pode fazer aquilo que é interesse do povo. Perceber o poder que o povo unido tem, como pode pressionar, que é possível intimidar político, fiscalizar e fazer com que tenham receio de sacanear o povo.

A outra coisa que precisa acontecer é que o brasileiro tenha a maturidade e a coragem de querer colocar em prática o parágrafo anterior, em vez de arrumar desculpas para se convencer de que ele não é possível – e isso implica em abrir mão de um ganho secundário.

Ao se convencer de que não é possível ele encontra a desculpa ideal para delegar tudo (poder e responsabilidade) para um político, assim se poupa do trabalho da constante fiscalização (e de ter que agir quando necessário) e, se algo dá errado, a culpa não é dele, é do “político ladrão”. O brasileiro quer democracia, mas não quer se fazer responsável por ela.

Sem participação ativa, fiscalização e senso de responsabilidade, nada muda. E talvez a maior parte dos brasileiros, no fundo, não queira que nada mude, pois em termos gerais, brasileiro negocia qualquer coisa para não ter responsabilidade.

Deixa tudo na mão da esposa, prefere ter um patrão que lhe diga o que tem que fazer e se encarregue do salário no final do mês, delega cada mínimo poder que tenha para não ter que assumir responsabilidade e para ter quem culpar caso tudo dê errado.

E culpa, o tempo todo. Podem reparar: estão sempre reclamando de seus parceiros, de seus pais, de seus patrões. Não seria mais fácil assumir as rédeas da sua vida?

Pelo visto não. O mais fácil, quando pensamos de forma imediata, é tratar política como torcida de futebol, vendo como rival ou até inimigo quem discorda de você e gastando precioso tempo da sua vida torcendo para babacas que nem sabem que você existe e não se importam nem um pouco com você. Isso, briguem, continuem bem desunidos, vai ajudar muito…

Tem algo de muito errado com o Brasil, desde sempre, desde suas origens. Olhando para a história, é possível pensar que o país que chegou a ter a maior população escrava do mundo de fato quebrou seu povo na base do chicote, tornando-o essa massa indolente, desempoderada e vitimista, que acredita que é mais conveniente delegar poder e depois reclamar e se fazer de vítima.

Talvez seja isso, talvez o povo brasileiro nunca tenha se recuperado da escravidão e repita essa forma de funcionar até hoje: na base da barganha, na base de deixar tudo nas mãos de algum “superior”, na base da mediocridade, afinal, por qual motivo vai fazer esforço pela excelência?

Pois adivinha só: se vocês não quebrarem esse círculo vicioso, ninguém vai, pois ele é muito conveniente para todos os que estão acima de vocês: nada é mais confortável do que lidar com pessoas que te delegam todo o poder. Só o povo sai perdendo nesse modelo de funcionamento.

Mas o povo prefere colocar toda a culpa no coleguinha que está ao lado e pegar ele para Cristo. Assim, continuam brigando e fortalecendo ainda mais esse modelo nefasto. Para o brasileiro e sua cabecinha escravizada, erro deve gerar punição, não correção. Para alguns, acredito eu, punição e correção sejam até sinônimos.

“Votou no ________? (complete com o seu candidato de antipatia) tem mais é que se foder”. Bela forma de lidar com falta de consciência, desejando que a pessoa se foda. Você se fode junto, sabia? De onde vem essa imbecilidade de sentir raiva, de querer punir quem erra? Você também erra, sabia?

Punição, nesse caso, é algo totalmente improdutivo: afasta a pessoa de você e impede que você consiga dialogar com ela e levar algum conhecimento, afundando a pessoa ainda mais na lama em que ela estava. Punir o coleguinha que pensa diferente de você é punir o país todo, inclusive a você mesmo. Mas escravo só conhece a chibata e católico só conhece o pecado, então, acho que não tinha como sair coisa diferente do povo brasileiro.

Eu disse “povo”? Desculpa, engano meu. O conceito de povo presume alguma unidade. Vocês não são um povo, são um bando. Um bando de oprimido que sonha em ser opressor e para dar vazão a tanto rancor, trauma e ódio briga entre si: o negro odeia o branco, a mulher sente raiva do homem, o eleitor de esquerda acha o eleitor de direita um imbecil. Vão morrer dominados por uma elite mesmo, não conseguem o básico do básico, o primeiro passo para um país livre e saudável, que é união.

Sejam melhores. Evoluam. Amadureçam. Saiam do mesmo discurso, do mesmo pensamento, do piloto-automático. Ou depois não reclamem e culpem “esses imbecis que votam na direita” se, em quatro anos, Bolsonaro ou coisa do tipo voltar.

Para dizer que meu amor pelo brasileiro é palpável (amor não é só elogio), para dizer que não vai comentar para não demonstrar que doeu ou ainda para dizer que todo mundo que discorda de você é burro, racista machista e fascista: sally@desfavor.com

SOMIR

“Todos os fatos têm três versões: a sua, a minha e a verdadeira.”

A internet me disse que esse é um provérbio chinês, mas serve muito bem para o momento que o Brasil vive. Desde 2018, o país foi tomado por uma disputa entre duas figuras carismáticas que representavam visões políticas diferentes para o povo. Quanto mais um lado ganhava força, maior a resistência formada no outro. Chegadas as eleições de 2022, o brasileiro médio se convenceu que o mundo era 13 ou 22, sem meios termos.

Não comecei com o provérbio para dizer que uma possível terceira via seria o caminho para a verdade, longe de mim dizer que Dória, Tebet, Moro ou Ciro seriam soluções garantidas para o país. Ele está aqui no texto para que nos lembremos de como nosso estado mental influencia a forma como enxergamos o mundo.

Se você acredita que o Brasil é Lula ou Bolsonaro, o Brasil passa a ser Lula ou Bolsonaro. E qualquer voz que diga algo diferente te parece vinda de um universo paralelo. O voto “útil” contra o Lula elegeu Bolsonaro em 2018, o voto “útil” contra o Bolsonaro elegeu o Lula em 2022. Não sei o que vocês estão enxergando aqui, mas me parece bem inútil aceitar que um país de mais de 200 milhões de pessoas só tem um populista de direita ou populista de esquerda como opções, não?

Sim, os candidatos que se apresentaram como alternativa à dupla não foram competentes o suficiente, eu entendo de coração quem olhava para o Dória e dizia que não tinha estômago para votar nele. Para quem achava o Ciro um descompensado sem emocional para o cargo. Para quem achava que a Tebet mal sabia o que estava fazendo ali. Para quem não sentia nenhuma segurança ideológica no Moro. As opções de terceira via não eram tão cativantes ou confiáveis assim.

Mas novamente, voltemos ao provérbio e como nossa visão das coisas influencia a realidade percebida: se você acredita que não tem como fazer diferente de Lula ou Bolsonaro, fica difícil aparecer uma alternativa. Ninguém consegue ganhar tração e se mostrar viável: o povo já tinha desistido deles antes mesmo de anunciarem suas candidaturas. E eles acabaram com essa imagem para o povo.

Talvez até por isso não tenhamos visto outras opções, de uma forma ou de outra, até mesmo os outros candidatos aceitaram se posicionar num eixo Lula/Bolsonaro e discutir o país dessa forma. A tentação é achar que isso veio de cima para baixo, que os políticos forçaram o brasileiro a ficar com apenas opções de esquerda e direita de rede social (isso é, focada em questões identitárias e maniqueísmo infantilóide de bem e mal); mas a verdade é que o caminho foi o oposto.

O brasileiro impôs essa divisão estúpida ao seu sistema político, e agora estamos fazendo esse cosplay (cospobre?) de Republicanos e Democratas. Quem foi criado para entender jeitinho como solução para seus problemas não está treinado para enxergar ações de longo prazo e projetos de como o país deve se desenvolver em linhas gerais. O povo do jeitinho vota em quem oferecer mais dinheiro agora, em quem colocar o medo mais urgente na cabeça.

No último debate, Lula e Bolsonaro prometerem o mesmo auxílio financeiro e o mesmo aumento do salário-mínimo. Nos seus arredores, os dois aceitaram estratégias de mentiras em redes sociais para assustar o povo. Evidente que os dois não tem exatamente as mesmas ideias e que não colocariam as mesmas pessoas para trabalhar nos ministérios, mas havia um ponto central os unindo: o imediatismo.

Se você quer resolver uma situação correndo, é bem provável que escolha a sua versão dos fatos. Ela já está lá. Buscar a versão verdadeira demanda tempo e esforço, coisa que o brasileiro não é acostumado a fazer, e verdade seja dita, não costuma ter disponibilidade prática de fazer. Pouco estudo, sistema confuso, corrupção e incompetência para todos os lados…

Agora, dificuldade não é motivo de desistência. Sim, vai ser difícil vencer essa divisão estúpida entre falsa esquerda e falsa direita, ambas populistas e dadas a vencer na base do grito. Sim, vai ser dose achar opções válidas dentre o podre sistema político brasileiro que valoriza bons jogadores do jogo político ao invés de bons profissionais em administração pública, mas não tem atalho. Vai ter que ser feito.

E enquanto a terceira via for apenas uma piada que contamos para nós mesmos nas vésperas de uma eleição, vamos continuar vendo eleições chegando na reta final com maluco de verde e amarelo contra maluco de vermelho. A terceira via começa muito antes do processo eleitoral, ela vem da rejeição ao radicalismo político, coisa que só acontece quando a pessoa tem condições de entender o sistema como ele é.

É difícil. Mas não precisa desistir: a gente tenta fazer nossa parte sujando os monumentos à perfeição que os fanáticos criam. Já disse várias vezes e repito, se você conseguir fazer uma pessoa perder um pouco do encanto “religioso” que tem com Lula ou Bolsonaro, já está ajudando. O Desfavor é uma pichação num muro, uma provocação que pouca gente vê, mas que está lá. Tem um lugar na internet onde você não vai encontrar eco na sua devoção por um santo político ou outro. É um começo.

A gente não vai te mostrar qual é a versão verdadeira, porque estamos procurando por ela nós também. Mas se você sair daqui com a ideia de que ela está lá fora, longe do maniqueísmo político-religioso-lacrador, acreditamos de verdade que isso pode ajudar. A terceira via começa com a visualização de uma terceira via. Você pode ser a terceira via.

Não é sobre os políticos, é sobre quem eles representam.

Para dizer que o Brasil chega lá daqui a 500 anos, para dizer que a sua versão é melhor, ou mesmo para dizer que é só matar todo mundo que resolve: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Novamente, apesar de estar meio ausente nos comentários, ainda acompanho quase que diariamente o desfavor. Ótimos textos Sally e Somir, e olha… Termina um problema e começa outro… Desejo forças pra todos os impopulares nesse novo ano que inicia.

  • Eu já devo até ter citado esse discurso do George Carlin em um outro comentário meu aqui há muito tempo, mas como acho que também se encaixa aqui, lá vai:

    “Todo mundo reclama dos políticos! Todo mundo diz que eles são prestam! Mas de onde é que os políticos vem? Eles não caíram do céu e nem chegaram aqui passando através de uma membrana de outra realidade. Eles vem de pais americanos, de famílias americanas, de casas americanas, de escolas americanas, de igrejas americanas, de universidades americanas, de empresas americanas e são eleitos por cidadãos americanos. Isso é o melhor que a gente pode fazer! Isso é só o que a gente pode oferecer! Isso é o que o nosso sistema produz: LIXO entra e LIXO sai.

    Se temos cidadãos egoístas e ignorantes, teremos líderes egoístas e ignorantes. E eleições a cada quatro anos também não vão adiantar. Porque o que acontece é apenas a troca de um grupo de americanos egoístas e ignorantes por outro. Então, talvez não seja só os políticos que não prestam. Talvez mais alguma outra coisa também não esteja prestando por aqui … Talvez… O POVO! Sim, O POVO NÃO PRESTA!

    Porque se a culpa é realmente desses políticos, onde então estão as pessoas de bem e com consciência? Onde estão os americanos preparados, inteligentes e capazes que estão prontos pra salvar a nação? Nós não temos esse tipo de gente neste país! Está todo mundo no shopping, coçando o rabo, cutucando o nariz e usando seus cartões de crédito pra comprar tênis com luzinhas!”

    Tudo o que foi dito nesse trecho aí em cima também se aplica quase que integralmente à realidade tupiniquim, bastando apenas trocar “americanos” por “brasileiros”; já que, como o Somir bem disse, esta pocilga agora está justamente “fazendo cosplay (cospobre?) de Republicanos x Democratas”. E quanto ao que a Sally escreveu sobre o Brasileiro Mé(r)dio não querer nunca se tornar dono do próprio destino e viver achando que “alguém” vá lhe resolver tudo, eu só posso concordar. E ninguém quer “o Bem do Brasil” porra nenhuma! Cada lado só quer “lacrar” ou “mitar” nas câmaras de eco de suas respectivas bolhas enquanto o lugar onde ambos vivem segue se afundando no velho esquema de “cada-um-por-si-e-o-país-contra-todos”. Por fim, deixo ainda uma outra citação, também do George Carlin:

    “O governo não quer uma população capaz de pensamentos críticos. Ele quer trabalhadores obedientes. Pessoas suficientemente inteligentes apenas pra manter as máquinas funcionando, mas também burras o bastante pra aceitaram, pacificamente, sua própria situação.”.

    Mesmo assim, desejo um Feliz Ano Novo para vocês. E lembrem-se: somos nós que fazemos o nosso destino. Só nós. E ninguém mais.

  • União com negacionista da ciência, fundamentalista religioso e imbecil reacionário? Se não for uma piada, é uma burrice sem tamanho, mais uma ideia totalmente desprovida de bom senso. Parabéns pela falta de noção.

  • “ou mesmo para dizer que é só matar todo mundo que resolve”
    Nem precisa ser todo mundo, assim que o deus Lula morrer, a política brasileira já começa a despiorar. Até surgir um novo deus dos pobres e reiniciar o ciclo, é claro. Mas, se a tendência de queda da fertilidade da brasileira média continuar, nem vai ter mais pobre o bastante pra fazer populismo.

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