Histórias de Vida – Parte 6

Fatal O Retorno, candidato (derrotado) a deputado federal em Minas Gerais.

Jonatas nasceu e cresceu em Contagem, Minas Gerais. Isso o permitiu viver uma pacata infância de cidade pequena e uma vida adulta de grandes oportunidades pelo crescimento vertiginoso rumo às fronteiras da capital Belo Horizonte. E ele as aproveitou: montou uma empresa de comércio exterior e fez para si uma vida bem confortável com o vultuoso montante de exportações originados de sua cidade.

Tão confortável que antes do aniversário de 70 anos da mãe, foi lá e comprou à vista uma bela casa num condomínio fechado para os pais. A mãe chorou de emoção com a surpresa, mas o pai… esse reagiu de forma diferente. Seu Josias, pedreiro aposentado, sempre fora um homem de poucas emoções, estoico, estável feito uma rocha mesmo diante da saúde cada vez mais debilitada. Jonatas já esperava no máximo um sorriso do seu velho pai, mas a irritação o pegou de surpresa.

De forma nada característica, seu Josias o censurou de forma agressiva, inconformado com a falta de comunicação prévia. Dizia que tinha passado 40 anos na casa em que morava e já tinha se decidido que morreria nela. Mesmo com os apelos da mulher e do filho, o idoso se mostrou irredutível. Sua mãe, como de costume, aceitou a decisão do marido. A discussão esquentou ao ponto de Jonatas deixar de falar com o pai.

Para sempre. Apenas três meses depois do embate, seu Josias teve um infarto fulminante, chegando no hospital já sem vida. Jonatas passou o velório arrependido, sendo consolado pela mãe. Logo depois, conversando com a sua mulher, decidiram que seria uma boa ideia se mudarem junto com a senhora para a casa nova, assim a avó poderia ter a companhia dos dois netos e ser cuidada de perto por eles. O apartamento de luxo no qual moravam já estava ficando pequeno mesmo para as crianças.

Sua mulher cuidaria da mudança da casa deles, Jonatas cuidaria da mudança da casa de seus pais. Antes de chamar uma empresa para realizar a tarefa, decidiu fazer uma geral na casa onde passara sua infância. A mãe estava sem cabeça ainda para a tarefa de separar objetos de valor sentimental ou aqueles frágeis demais para confiar a estranhos. Sábado pela manhã, Jonatas abre as portas da casa, ainda do mesmo jeito que estava no dia da morte pai.

Permite-se viajar pela nostalgia de seus dias de criança, a casa acanhada e francamente, caindo aos pedaços, parecia muito maior na sua memória. Pintura embolorada, móveis carcomidos pelo tempo, rachaduras e infiltrações. Só seu Josias mesmo para teimar em ficar nesse lugar. Sozinho, ele se permite chorar um pouco, arrependido de ter dito as coisas que disse ao pai e não ter tido chance de reatar a relação.

Pensando bem, tinha algo de egoísta na sua decisão de comprar a casa nova. Jonatas tinha o sonho de entrar para a política, e achava que refletiria mal em sua imagem deixar os pais morando numa casa tão velha. Queria projetar sucesso e demonstrar seus valores familiares. Talvez o pai tivesse uma conexão emocional muito grande com a casa. Pudera, seu Josias levantou a casa sozinho, uma das primeiras do bairro, muitos anos atrás. Segundo a mãe, foram anos trabalhando de dia e construindo de noite, mesmo depois da mudança. Os erros de projeto de um amador eram óbvios, como um quintal enorme que servia só para cultivar mato e animais peçonhentos.

Lembrava-se dos tempos de criança. De que adiantava ter metade do terreno da casa como um quintal se o pai o impedia de brincar por lá? Entrar na edícula de tijolo aparente que ficava colada no muro do vizinho do fundo então… era motivo de surra. O jovem Jonatas mal pensava nisso porque ainda tinha a rua de cidade pequena para frequentar, mas o adulto via espaço precioso desperdiçado num bairro cada vez mais comercial.

Antes de vasculhar gavetas e armários em busca de objetos valiosos, resolve conquistar o território proibido da infância. No quintal, o mato alto ainda mais malcuidado do que se lembrava. Pensando bem, também não deixaria seus filhos andarem ali. No final de tudo, uma pequena construção, estreita, com apenas uma porta e uma janela metálica que sempre ficava fechada. Ele procura no molho de chaves aquela que abre o pesado cadeado na trava.

Ao abri-la, o ar parado de sabe-se lá quantos anos atinge seu nariz. O cheiro é uma mistura de ferrugem e… carniça. A luz do sol invade o ambiente e reflete na parede de tijolos, banhando o acanhado cômodo em tons alaranjados. Com uma mão protegendo o rosto do fedor, ele busca pelo interruptor com a outra, acendendo uma solitária lâmpada incandescente, seu filete enfraquecido pelos anos de serviço fica alaranjado, o que não ajuda muito, mas é o suficiente para explicar o cheiro: um rato em estado avançado de decomposição.

Tira do bolso um par de luvas de borracha para manusear o animal, ajoelha-se por baixo de uma mesa de madeira segurando a respiração. Com a ponta dos dedos, puxa o rabo do rato, que para sua terrível surpresa, não tinha mais conexão com o resto do corpo. As vísceras, agora livres, se espalham pelo chão de concreto. O incômodo o faz respirar fundo, péssima ideia naquela situação.

Depois de quase vomitar lá fora, resigna-se com a necessidade da situação e vai buscar uma vassoura e um balde com água. Ele remove a mesa e um pequeno armário de ferramentas, colocando-os no sol. Joga a água e começa a varrer para fora os restos mortais do rato. Depois de alguns baldes e muito esforço, puxa uma cadeira para se refazer. Mesmo depois de tantos anos, a localização da casa ainda é muito tranquila. Ainda cansado, curte o silêncio pontuado pelo canto dos pássaros, tão raro nos dias atuais.

É quando começa a ouvir um gotejamento. Olha ao seu redor, sem perceber uma fonte. O mais estranho é que as gotas… parecem estar caindo de uma altura considerável. Olha para cima, céu de brigadeiro. Curioso, vai seguindo o ouvido até a fonte. Dentro da edícula, perto de onde o rato estava. Ele se acocora perto da parede mais ao fundo, e é como se a água empoçada bem no canto estivesse pingando de uma boa altura rumo ao subsolo.

Jonatas começa a procurar por alguma explicação, e é quando finalmente nota um corte no chão. A água lavou a poeira no seu caminho, tornando uma espécie de alçapão no cimento visível. Ele se ajoelha ao lado e dá algumas batidas no chão. Com certeza tinha algo abaixo. Ele se lembra de um pé-de-cabra que retirara pouco tempo atrás, e com a ferramenta, consegue levantar uma tampa de concreto sobre ferro armado. Uma escada de madeira era visível, rumo a alguma coisa no subterrâneo.

Ele aponta a lanterna do celular para baixo e vê o chão de terra batida. As gotas d’água se iluminando na queda dão noção de que havia algo bem maior lá embaixo. Tomado pela curiosidade, Jonatas testa os degraus da escada vertical, que rangem o suficiente para fazer seu coração bater mais rápido, mas nem tanto ao ponto de impedir sua descida. O cheiro de podridão começa a aumentar de novo.

Lá embaixo ele se vê num espaço escavado de mais ou menos 2 metros de altura, dando direto para um pequeno corredor escuro, apoiado por vigas de madeira. Ele encontra uma cordinha que puxa por reflexo, o clique acende duas de quatro lâmpadas penduradas no teto. As outras fazem algum esforço, mas não conseguem passar de um frágil alaranjado.

A luz é suficiente para fazer vários insetos correrem para a sombra, e para chacoalhar o mundo de Jonatas de vez. Logo depois da passagem, uma outra câmara é visível. Nas paredes, diversas prateleiras apoiadas em cimento e estruturas de madeira. Em cada uma delas, uma fileira de crânios humanos. A cena é tão impressionante que ele mal tem tempo de considerar as implicações.

São dezenas de caveiras, não estão jogadas de qualquer jeito. Quem quer que tenha as colocado ali, o fez com cuidado e organização. Todas viradas para frente, com espaçamento equânime e o mais entranho: pequenas placas de madeira alinhadas logo a frente. Jonatas se aproxima de uma delas, e lê algo queimado na placa: “Luxúria Fatal”. Ao lado, outra caveira com os ditos “Avareza Fatal”. E outra, e outra… todas com o mesmo padrão. Um pecado capital e a palavra Fatal ao lado.

Mais à frente, no chão de terra mesmo, outra tampa de concreto. Jonatas a levanta e sente na hora o baque do cheiro de carne podre. A luz do celular aponta para baixo, e num buraco arredondado, centenas de ossos empilhados com roupas deterioradas, muitos ternos e gravatas, todos manchados de preto. A mente finalmente vence o bloqueio e ele conecta os pontos.

Lembra da infância, quando o pai passava horas isolado naquele cômodo e a mãe o impedia de se aproximar. Lembra-se das noites que seu Josias passava fora, algo que racionalizou como infidelidade ou alcoolismo ignorados pela mãe depois de adulto. Até mesmo a insistência do pai sobre frequentar a igreja e a forma duríssima como tratava suas falhas de caráter, com dolorosas surras como punição pelo menor dos deslizes éticos ou morais.

Aquilo é pesado mais para ele. Sobe a escada, tranca o cômodo, a casa… e vai para um bar nas proximidades. Bar antigo, daquele cheio de bêbados profissionais. Ele pede uma garrafa de pinga e se senta na mesa mais distante, ainda sem conseguir fazer senso da situação. Distraído, não percebe a companhia até ouvir uma voz tão áspera quanto inebriada.

É um senhor de feições enrugadas, magro feito um graveto, usando uma camisa social desgastada e um boné de político, sabe-se lá de quantos anos atrás. Ele pergunta se está falando com o filho do seu Josias. Jonatas concorda com a cabeça. O velho se serve da pinga sem fazer nenhuma cerimônia, e ergue o copo americano sujo. Ele lamenta a morte de seu pai, dizendo que seu Josias era um homem do tipo que não se faz mais hoje em dia. Jonatas segue o brinde, sem dizer uma palavra.

O velho continua. Conta uma história sobre uma menina chamada Bianca, que morava ali no bairro. A mãe se divorciara do pai, o que naquele tempo era basicamente a mesma coisa que ser uma prostituta para as velhas carolas que fofocavam entre si. Desesperada, a mulher, que já causava inveja pela beleza nos tempos de casada, acabou aceitando ser amante de um vereador, já que não conseguia achar emprego. O político pagava as contas e vinha de tempos em tempos passar o final de semana com a segunda família.

Talvez pela necessidade de pensar em outra coisa que não as catacumbas encontradas na casa dos pais, Jonatas prestou atenção na história do idoso inebriado. Ele continuou: num desses finais de semana, bem tarde da noite, a menina fugiu de casa. Sem saber para onde ir, bateu na porta da casa que estava com as luzes acesas. Era a casa do seu Josias e sua mulher grávida.

Jonatas arregala os olhos. O velho diz que a menina contou algumas coisas bem ruins para seu Josias. Bem ruins mesmo. Tanto que ele foi na casa da menina, segurando sua mão, e chamou o vereador lá fora para conversar. As velhas contaram para todos que os dois começaram a gritar e por pouco não brigaram ali mesmo. Seu Josias chamou a polícia, que nada fez. A mãe de Bianca ficou inerte também. Não se sabe se por conivência ou por medo.

O idoso toma uma golada de pinga e olha fixamente para os olhos de Jonatas. Ele diz que todo mundo sabia que tinha coisa errada ali. Que escutavam gritos e choros. Que a menina vivia muda jogada pelos cantos. Disse que só um milagre salvaria a menina, e que um milagre aconteceu. O vereador sumiu. O jornal noticiou o desaparecimento e tudo. Nunca encontraram. A mulher e a menina se mudaram logo depois, dizem que a esposa do vereador ficou sabendo e pagou caro para as duas sumirem para outro estado. Tinha medo de que o filho não conseguisse seguir a carreira do pai se ficassem sabendo.

Jonatas diz que os pais nunca contaram sobre essa história. O velho diz que tem coisa que é melhor ninguém ficar sabendo. E que o pessoal mais antigo do bairro sabia que desde que as pessoas certas ficassem sabendo de alguma coisa ruim, tudo se resolvia. Antes de tomar o último gole da pinga, o senhor se lamenta que os jovens não têm mais com quem falar sobre essas coisas. Ele agradece a bebida e coloca a mão no ombro de Jonatas e diz que não é para ele ficar triste, porque com certeza seu Josias foi perdoado e entrou no Céu.

Jonatas inventou uma desculpa sobre ter perdido a hora para a mulher e disse que dormiria na casa dos pais para não dirigir tão tarde. Naquela noite, ele ficou no subterrâneo, acompanhado dos crânios e seus pensamentos. Foi quando notou pela primeira um espaço vazio na prateleira. A placa estava lá, como em todas as outras, mas nada de caveira. Ele lê os dizeres: “Covardia Fatal”.

A casa não foi vendida, ele sempre dava a desculpa de que estava esperando o preço certo num bairro que estava se valorizando. A família não precisava do dinheiro, então nunca mais veio à tona. Sua mãe não fazia nenhuma questão de voltar para lá, feliz da vida com a nora e os netos num casarão cheio de mordomias. Jonatas acelerou sua ambição política desde então. Dizia para quem quisesse ouvir que queria seguir o exemplo de retidão do pai, e que Brasília seria o lugar ideal.

O pessoal contratado para fazer a campanha eleitoral bem que tentou, mas não conseguiu dissuadir o homem de usar o nome Fatal O Retorno nas urnas. Ninguém entendeu o motivo, nem ele se prestou a explicar. Talvez por isso os votos não tenham sido suficientes para ser eleito, mas isso não vai o impedir de continuar tentando.

Para dizer que está ficando cada vez mais insano, para dizer que queria ter votado nele, ou mesmo para dizer que um dia isso vai dar muita merda pra gente: somir@desfavor.com

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Comments (2)

  • Eu compraria um livro de contos escrito por você. Acredito que muitos outros também. Na minha acepção você tem algo de Nelson Rodrigues misturado com HelleHelle, mais uma pegada “nerd-tech” característica sua.

    • Agradeço! E imaginei uma história de uma robô sexual que trai o dono quando ele sai de casa com essa descrição de estilo!

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