Humor moderno.

Continuando a série de disputas entre séries, Sally e Somir discordam sobre a melhor série de comédia recente. Depois de tantas repetições numa frase, resta aos impopulares escolherem a sua.

Tema de hoje: qual a melhor série de humor da última década?

SOMIR

Normalmente não se mistura animação com séries normais, mas eu vou abrir uma exceção: Rick & Morty transcende essa categoria, mais ou menos como os Simpson fizeram algumas décadas atrás. Não estou dizendo que a animação do Adult Swim tenha o tamanho do fenômeno cultural da série da extinta Fox, mas tem algumas comparações para se fazer sim.

Para quem não conhece, Rick & Morty é uma animação de humor num ambiente de ficção científica e fantasia. Acompanha a história de um cientista maluco e seu neto em diversas aventuras pelo multiverso. Prato cheio para nerds com as milhões de referências à cultura pop e à ciência, mas também serve para quem gosta de humor negro nonsense.

Começou como uma experiência do Adult Swim, divisão de animações adultas da Cartoon Network, mas foi ganhando popularidade e eu diria que até atravessou a barreira do “cult”, colocando os pés no que os millenials e geração Z consideram popular. Eu diria que fez tanto sucesso que até virou motivo de chacota para a turma mais do contra.

Muitos dos fãs entraram numa ilusão de ser uma série super inteligente para pessoas super inteligentes, e essa arrogância virou motivo de piada. Você sabe que alguma coisa ultrapassou o limite do nicho quando elitistas chatos começam a reclamar. O fato de eu achar Big Bang Theory meio besta, por exemplo, é uma prova de como a série é popular e importante na cultura popular.

Pra mim, o grande segredo de Rick & Morty é ter todo esse elemento de referências profundas científicas e de cultura de nicho de nerds, mas sem nunca se levar a sério nesse sentido. Os roteiristas são uns malucos de pedra mesmo que mandam animar uma cena inteira com piadas que pouca gente vai entender. Eu percebo uma honestidade ali: é aquilo que eles acham engraçado e pronto. Atribuo a isso minha imunidade a ser um chato elitista com eles.

E tem algo muito importante, algo que eu venho repetindo várias vezes aqui nas análises de séries de humor: eu não tenho mais saco para séries de piadas. Tem diferença. Série de piada tem uma história normal e as personagens têm opiniões e tiradas engraçadas para pontuar a cena. Série de humor tem uma história engraçada e as personagens agem de forma realista a ela. Até mesmo as séries de piada que eu mais gostei tinham um pouco disso. Seinfeld, por exemplo, tinha um tanto de humor na insanidade da história, apesar de ser baseada em piadas ditas pelas personagens.

Nem estou dizendo o que é melhor ou o que é pior, estou dizendo que série de piada me cansa rápido, série de humor me mantém grudado na tela. Rick & Morty é uma série de humor, porque é o roteiro que vai criando as risadas, as personagens reagem de forma engraçada por causa das suas personalidades, não porque são excelentes em fazer uma tirada rápida.

Sim, Rick, o cientista maluco, é o clichê do niilismo arrogante (que são duas palavras que nem deveriam existir na mesma frase), ele está sempre fazendo piadas e dizendo as coisas mais escrotas possíveis, mas o ponto da personagem é literalmente esse. Rick é aquele retardado emocional que compensa tudo na inteligência e se borra de medo de lidar com seus sentimentos. Você sabe por que ele está agindo daquele jeito.

E melhor, as outras personagens percebem isso, Rick estraga momentos especiais e é extremamente tóxico para todas suas relações por causa disso. Talvez isso tenha tocado um nervo meu, o que importa é que mesmo no nonsense ficcional que a série se mete de minuto em minuto, as personagens humanas são bem definidas e criam interações complexas.

Lembra como eram os Simpsons na era de ouro? As personagens não ficavam fazendo piadas, as situações eram hilárias. E outro paralelo com os Simpsons: apesar de fazer mil referências, Rick & Morty não depende delas para o humor. Family Guy, por exemplo, depende muito do seu conhecimento de cultura popular (inclusive a americana) para entregar humor, os Simpsons do passado e Rick & Morty usam outro caminho: as referências aumentam as cenas, mas não são a cena.

Por isso, mesmo se você não for ultra-nerd para entender tudo o que Rick & Morty estão referenciando, não tem problema, porque as cenas explicam o contexto e funcionam mesmo sem elas. Se você tirar todos os penduricalhos nerds, é uma série sobre um avô maluco tentando fazer o neto largar de ser um covarde, e do seu jeito doentio, tentando se reaproximar da família.

O clichê de Rick ser um ultra gênio capaz de criar qualquer tecnologia serve à história, é a sua personalidade que define o que vai acontecer. E assim como minha outra série de humor nerd favorita, Futurama, Rick & Morty usa o fantástico para deixar as cenas engraçadas, sem fugir de temas que todos nós conseguimos entender.

E talvez algo que seja um bônus pra mim, mas seja um problema para você: a série se move numa velocidade insana. São episódios curtos, como quase toda animação, mas com uma quantidade imensa de coisas acontecendo ao mesmo tempo. Num episódio você pode ter uma cena auxiliar contando toda a história de uma civilização de cobras vivendo a história de forma paralela com a humanidade, e ser tudo para entregar uma piada curta sem conexão com o resto do episódio minutos depois.

Eu adoro essa densidade imensa de conteúdo, algumas pessoas podem achar irritante. Era o que eu mais gostava em Arrested Development, por exemplo. Mas eu detesto ver coisas na velocidade dupla como tanta gente parece gostar hoje em dia, então todo mundo tem seus limites de quanto quer ver por vez. Fica ao seu critério. Rick & Morty é uma correria do ponto A ao B da história, mas mesmo se você perder alguma coisa, o que sobra ainda tem graça.

E outro bônus: por mais que a série fique mais engraçada se você ver na ordem, os episódios são relativamente bem contidos na sua história da vez, então dá para encarar fora de ordem se quiser. As histórias terminam, então não fica nenhum incômodo de ver aos poucos. Nos dias de hoje, com tanta série exigindo sua atenção continuada, até que eu acho um bônus.

E o mais importante, o humor da série é amargo. Não diria politicamente incorreto, porque não é a pegada deles, me parece uma evolução do humor do South Park de não se importar com questões sociais além da piada que elas geram, nem mesmo tomar lados muito claros, todo mundo vai ser sacaneado eventualmente. É algo bem cético e misantropo às vezes, mostrando as questões mais complexas da alma humana e fazendo pouco delas. A piada quase sempre tem a ver com os sentimentos estúpidos que as pessoas têm e as crenças retardadas que a humanidade insiste em perseguir.

Novamente, algo que conversa muito bem comigo. Se esse tipo de humor de situações insanas que não depende de piadinhas das personagens e trata a complexidade da condição humana como uma bobagem te atrai, Rick & Morty é excelente.

Espero que seja tão impactante na cultura como os Simpsons foram. O mundo realmente precisa de um pouco mais de “foda-se”.

Para me chamar de nerd, para dizer que precisa ser muito inteligente para entender Rick & Morty, ou mesmo para dizer que também morreu de rir quando ele se transformou num picles: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é o melhor seriado de comédia da última década?

Modern Family. Não estamos perguntando quais vocês mais gostaram (eu gostei de muitos que sei que não são tão bons) e sim qual é o melhor.

Muitas coisas fazem de um seriado um bom seriado e, quando falamos de comédia, o principal requisito, na minha opinião, são as camadas de compreensão das piadas: não adianta que seja genial se poucas pessoas vão entender e não adianta que muitas pessoas entendam se for um humor boçal, banal e previsível.

É um equilíbrio muito delicado e geralmente os seriados de comédia erram a mão. Ou fazem uma coisa extremamente cult nonsense inalcançável para a maior parte das pessoas (como foi Arrested Development, que eu amo profundamente, mas sei que a maioria não consegue acompanhar o ritmo) ou fazem uma baboseira superficial que acaba sendo entediante para quem tem mais de dois neurônios.

Modern Family tem diversas camadas de compreensão. Tem piadoca, tem torna na cara, tem piada normal, tem piada com referências sofisticadíssimas e tem piada que nem eu entendo. Em resumo, todo mundo se diverte, mesmo que algumas piadas passem despercebidas, todo mundo ri.

Além disso, a premissa do seriado é básica: acompanhar a vida de uma família, dividida em três núcleos familiares: um casal de um homem mais velho e uma mulher mais nova estrangeira, um casal padrão e um casal gay. Todo mundo compreende rapidamente que se trata de uma família e certamente conhece de perto ao menos metade das situações abordadas em casa episódio.

Atores esteticamente agradáveis (nada imundo e decadente como Breaking Bad) e cenários neutros ajudam bastante a que a série seja fácil de assistir. O foco é a piada, não efeitos especiais, roupas, certo ator ou atriz ou qualquer outro fator externo.

Para completar, um roteiro dinâmico, retratando situações cotidianas em episódios curtos protagonizados por personagens muito humanos cheios de defeitos (todos eles) fazem com que você assista 5 ou 10 episódios sem sequer perceber o tempo passando.

O roteiro consegue dar leveza a piadas que, em outro contexto, seriam consideradas pesadas demais ou até vetadas. Racismo, estelionato, gordofobia, machismo, tem tudo ali, de forma muito, mas muito engraçada.

Francamente, tem coisas ali que eu não sei como passaram. A arte de ofender sem ofender: quando você mostra todo mundo cheio de defeitos fazendo coisas horríveis, deixando implícito que, por mais que se esteja falando mal de algo ou de alguém, são todos iguais.

E, literalmente, são todos iguais: não existe um protagonista principal. Os três casais e seus respectivos filhos tem o mesmo grau de importância, tanto é que os atores da série fizeram um pacto de só concorrer a premiações como atores coadjuvantes (quando lhes era permitido escolher a categoria, como é o caso do Emmy), já que não existe ator principal.

É muito interessante ver uma série sem protagonista, onde todos são protagonistas e como isso reflete no público. Se você assistiu à série, me responsa esta pergunta: qual é seu personagem favorito? Eu fiquei bastante tempo pensando e é difícil escolher um. Ao contrário de Friends ou How I Met Your Mother, onde tem claramente os favoritos do público, Modern Family é um grande personagem, a gente gosta da família, da dinâmica entre eles.

Não tem lacre, não tem inclusão, é politicamente incorreto e não se importa com isso. A ideia é mostrar o lado podre de todo mundo, mas com humor, não com crítica, o que, no fim das contas, acaba sendo muito inclusivo: não importa a cor da pele, o formato do corpo, a etnia ou a orientação sexual, todos somos uns bostas e uns filhos da puta por igual.

O casal gay tenta tirar vantagem o tempo todo por ser minoria e manipula os outros para se dar bem com base em chantagem de lacrador. A estrangeira, que é latina, é retratada como vindo de uma pocilga de crime e precariedade e se comporta de forma tosca, quase uma mulher das cavernas. O casal clássico tem uma filha burra e bonita e a outra embarangada (apesar da atriz ser bonita) e inteligente.

Do ponto de vista do politicamente correto, dá para criticar Modern Family de todos os ângulos, como de fato foi feito no período em que o seriado estava no ar. O tanto de pedrada que a Sofia Vergara levou por interpretar uma colombiana barraqueira estereotipada não dá nem para contar. Mesmo sendo colombiana e mesmo tendo a vida da personagem Gloria inspirada em sua vida real, ela apanhou de todos os lados. Se a turma do lacre reclamou, sinal de que é bom.

Este talvez tenha sido o último seriado que teve a oportunidade de mexer em certas questões espinhosas que hoje não seriam mais permitidas, nem mesmo se fossem retratadas com a genialidade e a leveza de Modern Family. Talvez por isso tantos prêmios, em tantas categorias. Conseguiram algo muito difícil, o ofender sem ofender.

É um seriado profundo, que debate questões importantes? Não. É um seriado de comédia, feito para você se distrair. É a isso que ele se propõe, e o faz com maestria. Se um dia estiver sem paciência, chateado ou apenas quiser ver algo leve para passar o tempo, vai que não tem erro: Modern Family.

Para reclamar de alguma coisa do seriado, para dizer que nosso senso de humor é duvidável ou ainda para dizer que sua personagem favorita é a Gloria (se falar que é o Phil, não fale mais comigo): sally@desfavor.com

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Comments (8)

  • Há muito tempo assisti um ou dois episódios de Modern Family e ontem vi o primeiro de Arrested Development depois de ler aqui. Tem uma série na Amazon que segue uma linha parecida e é muito gostosinha de assistir chamada Home Economics.

  • Modern Family!
    Pena que saiu da Netflix.
    Realmente dificil escolher um personagem favorito. Gosto da Claire, Cameron e Gloria.

    Me pergunto se o sucesso teria sido o mesmo caso Matt LeBlanc fosse o Phill… acho que não, ele ia ser estrelinha e prejudicar a visibilidade dos outros.

    • Não consigo imaginar ninguém além do Ty Burrell como Phill…
      Agora está no streaming da Disney, super recomendo assinar, tem muita coisa boa.

    • Hahaha eu fico entre Phil, Mitch e Lily!

      Na verdade tá no Star+, que também é Disney, mas são coisas diferentes…

  • Não tenho o hábito de assistir séries e nem conheço as duas citadas na postagem, mas talvez eu dê uma chance a Modern Family que, se for mesmo como a Sally disse deve ser, no mínimo, interessante.

    • Dá uma chance sim, logo na primeira temporada já dá para sentir o estilo, você vai saber rapidamente se gosta ou não.

      • Eu também não conheço nenhuma das duas séries. Até já ouvi falar a respeito, mas ainda não as assisti. Vou dar uma olhada.

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