Histórias de Vida – Parte 7

Moderno Maximus, candidato (derrotado) a deputado federal no Amapá.

João era um homem de grandes ideias, mas de pequenas realizações. Para os amigos e quem quer mais que desse atenção, dizia ser um empresário internacional. Na verdade, revendia celulares chineses no Mercado Livre. A Mercedes-Benz que dizia ter na garagem só ficava na garagem mesmo, herança do pai que estava quebrada há quase uma década. Fazia questão de andar pelas ruas de Macapá com as melhores roupas, joias e uma quantidade nauseante de perfume que dizia ser francês. Todos falsificados.

A compleição atarracada, quase que como uma maldição, o fazia tentar compensar com uma confiança inabalável no que fazia e dizia. João errava com a convicção que a maioria de nós acertava. Foi num desses surtos de confiança que fez o idoso pai investir as economias de uma vida em ações na bolsa de valores. Logo antes da crise de 2008.

Corria na boca pequena do bairro que o desgosto pela perda do dinheiro da família que fez o velho do Antigo morrer do coração. O filho do Antigo assumiu o negócio da família, uma loja de azulejos fora de linha que tinha pagado por um padrão de vida razoavelmente alto para a região. A loja, inaugurada nos anos 70, tinha uma placa com os dizeres Azulejo Antigo na fachada, e o nome pegou inclusive para o dono.

João já achava seu nome incompatível com a mentalidade cosmopolita que dizia ter, o apelido de filho do Antigo então, inaceitável. Talvez por isso tenha perdido toda a clientela do pai ao mudar o nome da loja para Azulejo Moderno. O que pode ter ajudado a criar um novo apelido para João infelizmente confundiu a cabeça de quem procurava pelos produtos vendidos na loja. Com a queda vertiginosa nas vendas, vendeu o negócio, mandou a mãe morar com a irmã no Rio de Janeiro e usou o dinheiro para lançar seu próprio empreendimento.

Com o sucesso da jogada de marketing pessoal, e agora conhecido como Moderno na região, João aproveitou por alguns meses do dinheiro da venda da loja de azulejos, mas os hábitos continuaram os antigos: investiu em NFTs sem sequer entender o que eram NFTs, sugestão de um conhecido que dizia ter comprado um carro novo com o “dinheiro de internet”. Perdeu praticamente tudo.

O pouco que tinha não dava nem para comprar uma nova leva de celulares chineses. Evidente que nada disso parecia abalar Moderno: para quem perguntasse, ele tinha ganhado horrores e estava apenas resolvendo umas questões com o passaporte antes de ir morar na Europa. “Burocracia de gente rica, coisa que eles não iam entender”.

Na vida real, Moderno fazia contas para encaixar seus gastos mensais no orçamento extremamente minguado. Com um pouco de sacrifício, poderia se aguentar por uns dois meses até achar um emprego. Resolveu então fazer uma última noitada para se despedir da vida boêmia que levava. Num barzinho do centro, encontrou-se com um pessoal do bairro, que ainda insistia em o chamar de filho do Antigo. Cerveja vai, cerveja bem, um dos bêbados sugeriu um fim de noite diferente.

Rinha de galo. Apesar de ilegais, elas ainda tinham público num bar escondido nos arredores da cidade. O grupo se mandou para lá na caçamba de uma caminhonete e logo deram de cara com um grande movimento. Tinha até uma viatura da polícia estacionada no lado de fora do galpão. A música era alta e os gritos mais ainda. Moderno viu um grupo de mais de cem pessoas acotoveladas ao redor de um terreiro redondo. Lá dentro, dois galos se bicavam e chutavam até a morte.

Moderno apostou num galo chamado Gladiador, e Gladiador acabou com a raça do adversário. Dobrou o dinheiro investido, e é claro… continuou apostando até perder tudo de novo. O único sucesso da noite foi com o Gladiador. Já muito inebriado, Moderno encontrou com o dono do galo e começou a perguntar tudo sobre como criar galos de briga. Talvez percebendo o estado vulnerável de João, o criador ofereceu um dos filhos do Gladiador. Disse que era dinheiro certo.

Naquela noite, Moderno voltou para casa com um galo muito confuso e com quase todo o dinheiro na conta gasto por causa dele. Tinha certeza que logo recuperaria tudo e muito mais com seu novo guerreiro galináceo. Foi só quando a manhã chegou e uma baita ressaca que ele realmente pensou no que tinha feito. O galo que comprara era… franzino, depenado. Meio depressivo até. Ficava olhando para baixo, nem ciscava direito.

Ele tomou o café diante do galo, jogou uns pedacinhos de pão velho. Pensava como nem para ter cantado de manhã o bicho serviu. O resto do dia foi tomado por uma investigação infrutífera sobre o homem que lhe vendera o galo, na tentativa de reaver seu dinheiro. As pessoas riam na rua quando viam ele e aquela desculpa esfarrapada de galo a tiracolo. No bar, disseram que tinha viajado para Belém naquela noite mesmo. Moderno voltou pra casa, derrotado. Ele e o galo.

Acuado com as dívidas se aproximando, decidiu que precisa fazer o máximo com os recursos disponíveis. Olhou bem no fundo dos olhos do galo e declarou que seu nome seria Maximus, Filho do Gladiador. Podia jurar que viu um brilho nos olhos do bicho ao chamá-lo por esse nome. Com o passar dos dias e uma alimentação caprichada com todos os restos de comida da casa, Maximus se mostrou um pouco mais animado. Até cantou no nascer do sol. Moderno detestava acordar cedo, mas naquele dia, ficou feliz.

O galo não era lá muito agressivo, o que facilitava a convivência, mas pintava um cenário preocupante para sua função. A verdade é que Moderno começara a se afeiçoar pelo galo, algo relacionado com a recuperação de um bicho tão enfraquecido diante de seus olhos. Considerou até não dar o próximo passo no seu plano, mas uma dolorosa conta de luz o fez retornar ao mundo real: Maximus precisava brigar, e precisava brigar logo.

Ligou para o dono da rinha e inscreveu Maximus. O homem perguntou o peso e ele chutou cinco quilos. Não sabia se era muito ou pouco, mas ficou com vergonha de admitir que não sabia nem isso sobre o próprio galo de briga.

Na noite da estreia de Maximus nas rinhas, o lugar estava abarrotado novamente. Fumaça de cigarro, cheiro de titica, gritos de bêbados… a bagunça estava claramente incomodando Maximus, que se debatia no colo de Moderno. Vira que todos os outros chegavam em gaiolas, só ele trazia o seu no braço. Quando esteve lá da última vez, estava bêbado e não tinha noção exata do tamanho dos galos de briga.

Maximus era metade do menor dos outros galos escalados para as brigas da noite. Se seu galo pesasse dois quilos, era muito. O adversário, o Matador, era um galo vermelho gigantesco, que ficava bicando a grade de sua gaiola de forma compulsiva. Moderno poderia jurar que alguma entidade maligna estava possuindo o bicho. Maximus continuava muito nervoso.

Quando chegou a hora da luta, o dono do bar chamou Matador e Maximus para o ringue. Quando Moderno chegou com seu galo para colocar no terreiro, todos começaram a rir. O homem baixou a cabeça, e vermelho de vergonha, arremessou o bicho ali dentro. Matador continuava preso na gaiola enquanto as pessoas apostavam. Não foi nenhuma surpresa quando Moderno viu que para cada real apostado em Maximus, receberia cem de volta caso vencesse.

A gaiola de Matador é aberta e a briga começa.

Maximus corre desesperado para a borda do terreiro, e tenta pular de forma desesperada por sobre a mureta que separa a plateia do ringue. Sem sucesso. Matador cisca algumas vezes, talvez confuso com a falta de agressividade do adversário, mas logo dá uma carga e arremessa o corpanzil por sobre Maximus. O galo franzino desaba na hora, e dispara para o mais longe possível do adversário assim que as pernas fazem contato com a terra novamente.

Matador persegue. Depois de alguns segundos de correria e o começo de algumas vaias, Maximus parece cansado. Matador então dá a primeira bicada certeira. O grito de Maximus é mais alto que os da plateia. Com um chute, Matador derruba o adversário inerte e começa a bicar de forma violenta o peito exposto do galo franzino. Era um massacre.

Até que um vulto pula a mureta e invade a arena: era Moderno. O coração amoleceu ao ver Maximus sendo morto ali e ele resolve parar tudo. Vaias e gritaria generalizada. Moderno corre até os galos e empurra Matador para longe de Maximus. O seu galo está em péssima condição, cheio de machucados e sangrando bastante.

É quando Moderno sente uma dor na perna. Matador estava atacando-o. Uma bicada poderosa bem no tendão de Aquiles. Moderno se afasta um pouco e Matador parte pra cima dele. Mancando por causa da estocada na perna, Moderno tropeça a cai de costas no chão. Matador dá um salto sobre o peito de Moderno e começa a bicar seu rosto de forma violenta. O homem, em estado de pânico, só consegue cruzar os braços na frente da face e berrar por socorro.

O que escuta em troca são risadas. Muitas risadas. Aquele com certeza era o ponto mais baixo da sua vida: não só tinha perdido todo o dinheiro como estava levando uma surra de um galo de briga na frente de centenas de pessoas. A situação era tão ridícula que ninguém se prestou a socorrer Moderno, que continuava se debatendo contra um galo furioso, e perdendo.

As risadas se tornam gritos de euforia. Moderno abre um olho por baixo da mão e enxerga Maximus se levantando do outro lado da arena. O animal anda com dificuldade, mas parece decidido: vem na direção de Matador, e com um “vôo de galinha” impressionante, pousa sobre a cabeça de Matador, pego desprevenido. A espora acerta em cheio o olho do galo gigante, e a agilidade de Maximus o permite ficar alguns segundos ali, enfiando a garra mais e mais fundo no crânio do inimigo.

Matador desaba. O corpo começa a girar ao redor do próprio eixo, em espasmos cada vez mais rápidos que eventualmente terminam. A plateia urra de empolgação. No microfone, o dono do bar anuncia que o galeto do filho do Antigo era o vencedor.

Moderno, ainda sentado no chão, com duas ou três bicadas ainda sangrando no rosto, ergue a mão e grita inconformado: “Eu sou o Moderno e ele é o Maximus!”

A plateia começa a gritar “Maximus” em coro. O pobre animal, ainda muito machucado, se aninha entre os braços de Moderno e descansa. Um conhecido o aborda logo depois e pergunta o que ele vai fazer com todo o dinheiro que ganhou. Ele desconversa, pega Maximus no colo e vai embora dali. Que Maximus nunca fique sabendo, mas Moderno apostou no Matador. Algumas pessoas não foram feitas para ganhar dinheiro.

A fama que veio depois era uma faca de dois gumes: por um lado ele tinha o galo de briga mais heroico de todos os tempos, por outro as pessoas ainda se lembravam bastante de como ele lutou contra um galo e perdeu. Talvez isso tenha atrapalhado sua campanha para Deputado Federal. Moderno começou a usar o nome do seu galo lendário como sobrenome, mas não foi o suficiente para animar mais do que 37 pessoas na cidade.

Que com certeza votaram mesmo é no galo. Maximus se aposentou dos ringues com uma vitória em uma luta, e agora vive no quintal de Moderno esperando pelo próximo plano brilhante do dono.

Para dizer que riu e chorou, para dizer que votaria no Maximus, ou mesmo para dizer que conhece uns dez Modernos por aí: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: ,

Comments (4)

Deixe um comentário para Ana Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: