Recusa infantil.

Infelizmente voltamos várias casas no jogo da evolução social e muita gente decidiu que é contra as vacinas. Sally e Somir acham isso uma bizarrice, especialmente quando crianças são as vítimas, mas quando falamos de intervenção estatal, a coisa desanda. Os impopulares tomam suas doses.

Tema de hoje: pais devem perder a guarda de seus filhos por se recusarem a vaciná-los?

SOMIR

Não. Não quer dizer que eu concorde com esses pais, quer dizer que eu não confio no Estado tanto assim. É minha opinião que um sistema democrático saudável confie desconfiando nos seus líderes. Confio no Estado para distribuir vacinas suficientemente seguras, mas não confio nele para decidir quem pode ou não criar filhos baseado nesse caso.

Quando eu discuto pena de morte, por exemplo, eu estabeleço meu argumento bem antes de qualquer questão moral: um sistema que pode errar não pode ter punições que não podem ser desfeitas. Se você confia em um juiz brasileiro aleatório com seu direito a estar vivo, eu te sugiro se informar mais sobre os inúmeros erros do Judiciário tupiniquim por incompetência ou má-fé nos últimos… séculos. Não podemos dar tanto poder para o Estado.

Não quer dizer que tem que virar anarquia, mas é importante sempre ter uma porta aberta para a correção de erros e injustiças. Grandes coisas ser inocentado depois de morto. E num grau menos severo, eu estendo minha visão à possibilidade de tirar a guarda dos filhos de uma pessoa negacionista.

Primeiro que isso pode ser fraudado, como qualquer outra coisa num país que aceita propina para tudo. Segundo que o erro de negar a ciência pode ser resolvido sem gerar todos os traumas e complexos que uma retirada da guarda causaria. O filho pode até ser devolvido depois, mas o terror de ser retirado dos pais é para sempre.

E eu digo que o erro pode ser resolvido porque muito se engana quem acha que todos os negadores de vacinas são iguais. Isso não acontece em nenhum grupo humano, não começaria agora: sim, existem os fanáticos que pulariam numa bala para evitar que os filhos sejam vacinados, mas isso é muito maior do que crença em informações erradas, isso é da personalidade daquela pessoa. A pessoa maluca é maluca com qualquer motivo, só calhou da bola da vez ser a vacina. No Brasil tem gente dando barraco e desafiando a morte por qualquer motivo aleatório. Não achem que esse é mais profundo.

A grande maioria dessa gente é formada por ignorantes que só receberam informações podres sobre as vacinas, por falha de comunicação do Estado, lembrando que o presidente era negacionista (pelo menos da boca para fora) e o governo escondeu informações sobre a segurança das vacinas propositalmente durante a pandemia. Sem contar, é claro, as bizarras declarações sobre como elas eram perigosas vindas do fuckin’ ministro da Saúde.

O brasileiro médio foi desinformado sobre vacinas. E isso aconteceu ao mesmo tempo que se repetia o papo furado dos conspiradores americanos, que por definição acham que seu governo é uma máquina perfeita de enganação. A desinformação sobre vacinas entrou nas igrejas evangélicas, pegando um atalho que atravessava até o pouco senso crítico que o brasileiro ainda tinha.

As coisas têm contexto. Os antivacinas atuais não tem quase nenhuma profundidade no que pensam sobre o tema. Um ou dois anos de campanhas de informação e o resfriamento da histeria pró-bolsonarista entre líderes religiosos e políticos desfazem boa parte disso. Quando o Estado pode evitar soluções dramáticas, ele deve fazer isso. Não vejo sentido em enfiar o pé na porta do cidadão médio já assustado pelas asneiras que ouviu sobre a vacina e tirar o filho dele. Aí sim você transforma a maioria ignorante em maioria radical.

O Estado é importante, mas ele precisa saber quando tirar o pé. Não aumente o grau de medo dessa gente, ataque pelo lado da informação, gere punições irritantes, mas menos dramáticas. Só de fazer o Bolsa Família depender de vacinação completa dos filhos já resolve 90% do problema. O Estado pode pagar para ver quão profunda é a crença dessa gente desinformada. Sem a catarse coletiva do bolsonarismo incentivando mais gente a acreditar nessas bobagens, a tendência é resolver o pior em pouco tempo.

Governos tem que ser frios e calculistas, mesmo quando o cidadão como eu e você ficam putos da vida com os cretinos que colocam a vida dos filhos em risco por causa de Fake News de rede social. O Estado tem que jogar no longo prazo, reduzindo a importância da discussão sobre vacinas até o povão voltar a não se importar tanto com isso. Não chacoalhe o tema na cara deles com notícias de pais perdendo a guarda dos filhos por se recusarem a vaciná-los. Isso é resultado direto de medo. Medo não se combate com agressão. Você quer revolta da vacina? É assim que você consegue revolta da vacina.

E para ser honesto, não faz muito sentido deixar os pais brasileiros fazerem todo tipo de merda não imediatamente danosa com os filhos e cismar com essa parte. Não entendo a falta de vacinação como algo análogo a abuso violento e/ou sexual. Porque isso o cidadão médio entende claramente. Até quem faz coisa errada com os filhos sabe que é errado e sabe que não vai ter gente defendendo ele depois.

Percebam, eu estou fora do campo da moralidade ou mesmo ética agora. Porque nem chegamos nessa parte ainda. O problema é de comunicação, informação e opinião públicas. O cidadão Somir acha que a maioria das crianças brasileiras deveriam ser retiradas dos pais, porque o grau de estupidez, brutalidade e descaso são enormes em todas as classes sociais. O Estado Somir, por sua vez, está olhando para os números: qual a vantagem prática de cuidar de tantas crianças? O que retirar a guarda das crianças dos pais faz de melhor para o coletivo do que campanhas informativas e pressão para vacinar? Olhando para as contas do governo e para o ainda lastimável estado de educação do brasileiro médio… basicamente nenhum.

Você pode ficar furioso com gente estúpida, o Estado não. O Estado tem que garantir alguma estabilidade no longo prazo e tomar decisões meio “robóticas” às vezes. Tem muita criança por aí, é melhor perder 10 dos fanáticos agora do que perder 10.000 de todo mundo caso a repressão saia pela culatra e o povo não possa ser convencido da segurança da vacina nos próximos anos e décadas.

É feio, mas funciona.

Para me chamar de negacionista, para dizer que minha condescendência já está ficando criminosa, ou mesmo para dizer que meu libertarianismo está aparecendo: somir@desfavor.com

SALLY

Pais devem perder a guarda de seus filhos por se recusarem a vaciná-los?

Sim. Estamos falando de algo grave demais: pessoas que colocam a vida e a saúde dos filhos em risco não tem condições de criar uma criança.

Tem duas formas de olhar essa questão: 1) definir se o Estado pode intervir quando pais colocam a vida dos filhos em risco diariamente e 2) se não vacinar seu filho é colocar a vida dele em risco diariamente. Eu sinceramente acredito que o Somir vá pelo caminho 1, pois se ele for pelo 2, amanhã nem texto tem, pois eu não volto mais aqui para compartilhar blog com ele.

Se você que discutir o caminho 1 comigo, podemos debater. O 2 é inegociável, pois não é passível de opinião. Ciência não é opinião. Ciência não é um caso isolado. Ciência não é evidência anedótica. Ciência é ciência e você, leigo, não tem autoridade, conhecimento nem método para questioná-la.

Então, se partimos da premissa que não vacinar seu filho é colocar a vida dele em risco diariamente, fica muito complicado defender que pais que colocam a vida de seus filhos em risco diariamente devam continuar responsáveis por seus filhos. Bastou o Michael Jackson sacudir seu filho uma única vez numa janela que todo mundo se indignou, imagina se ele fizesse isso diariamente.

Percebam que de forma alguma minha escolha é punitiva: “tem que fazer isso para eles aprenderem”. Não, ninguém aprende nada assim. Sem contar que é um processo extremamente traumático para os filhos também. Mas, é um motivo de força maior, que por sinal, já é abraçado pela lei: quem coloca a vida dos filhos em risco sistematicamente pode perder o direito a criar esses filhos.

Hoje, no Brasil, existem vários casos que podem justificar que pais percam o poder de decisão sobre a vida dos filhos. Essa porta já está aberta. Se você abusar sexualmente do seu filho, se você negligenciar a educação do seu filho, se você colocar em risco a vida do seu filho e uma série de outras situações extremas justificam essa medida extrema.

O que não quer dizer que a criança será tomada dos seus braços e jogada em um orfanato. Muitas vezes, o poder de decisão é delegado para um membro sensato da família, como uma avó, por exemplo. Alguém que assegure melhores decisões, que sejam mais benéficas para a criança, sem, necessariamente afastar os filhos do convívio com os pais.

Vocês costumam ler as notícias do Brasil? Eu leio diariamente para fazer a coluna “A Semana Desfavor” e posso te garantir que a quantidade de absurdos das mais diferentes naturezas que pais fazem com crianças no país é estarrecedora. Muitas vezes eu nem coloco a notícia na coluna, por ser nauseante, tamanha a barbárie.

Então, precisamos levar em conta a realidade do país. Não permitir que o Estado cruze essa linha e interfira dessa forma na vida privada é ótimo para países onde a população não é animalesca. Não é o caso do Brasil.

No Brasil, essa proteção é necessária, ainda que na maior parte das vezes não seja aplicada ou não seja eficiente. Bem, eu escolho acreditar que em algum lugar existem alguns juízes que aplicam bem a lei e, se ela existir, ao menos algumas crianças serão protegidas. Não todas, mas algumas. E algumas é melhor do que nenhuma.

E, quando falamos em vacina, vale lembrar que não é apenas vacina contra covid-19, são todas as vacinas obrigatórias. Também vale lembrar que não falamos apenas de proteção contra morte, mas também contra uma série de sequelas gravíssimas que podem incapacitar uma criança física e/ou mentalmente para o resto da vida.

Vacinas são seguras. Não dá para relativizar isso, se você for mentalmente são consegue compreender que não há evidências que sustentem relativizar isso. O mundo inteiro é vacinado, o mundo inteiro (ou boa parte dele) seria autista ou estaria doente se vacinas fizessem mal. Você é vacinado. Você é a prova viva.

Então, enquanto não aparecerem evidências sólidas de que vacinas fazem mal, elas devem ser obrigatórias para proteger a vida e a saúde das crianças. E pais que colocam em risco diariamente a vida e a saúde dos seus filhos não podem ter o poder de decisão sobre como conduzir a criação desses filhos.

Acho que ninguém aqui vai questionar que existem muitos pais (pai + mãe) que não tem a menor condição de criar um filho. Se estamos nesse consenso, é preciso criar um mecanismo protetor: o que fazer para assegurar os direitos dessas crianças? Não tem como resolver esse impasse sem ser invasivo. Eu não acho razoável o Estado se meter na criação dos filhos de alguém por mera divergência de opinião, mas quando há vida e saúde em risco sim.

Curioso como alguns são os primeiros em condenar aborto, mas colocar a vida do filho em risco depois que ele nasceu tudo bem, né? Deixar pegar poliomielite e ficar o resto da vida em cadeira de rodas tudo bem, né? Cegueira, surdez, danos cerebrais irreversíveis, tudo isso pode ser tolerado em nome da escolha pessoal de cada um, mas remover um amontoado de células sem sistema nervoso formado de um útero não, pois ISSO seria grave.

“Mas Sally, não é só vacinar à força?”. Não. Primeiro que isso é impossível, pois não existem profissionais médicos e policiais para executar essa vacinação à força, nem logística (tirar vacinas que precisam estar refrigeradas a temperaturas baixíssimas para levar até a criança).

Segundo que pessoas que tomam esta péssima decisão mostram que não tem discernimento para saber o melhor interesse do filho e certamente vão fazer besteira em outras questões vitais para a segurança, saúde e vida da criança, então, se não quiseram vacinar, acredito que não estão aptas a criar um filho, ainda que você vacine a criança à força.

Sinceramente, não entendo tanto choque com essa interferência estatal e tão pouco choque com o que acontece quando o Estado não intervém. A quantidade de crianças que hoje é vítima de todo tipo de negligência e violência é que deveria chocar a sociedade. Concordo que ambas as situações são uma merda, mas defendo que seja aplicada aquela que é menos merda para a criança, que, no caso, é a interferência estatal.

Por fim, é sempre bom lembrar que essa medida não tem caráter punitivo, mas tem sim caráter preventivo: vendo o que acontece quando você coloca a vida dos seus filhos em risco algumas pessoas pensarão duas vezes antes de fazê-lo, se não por cogitarem que se o Estado está se metendo então aquilo deve de fato ser muito grave, por medo das consequências.

Estabelece para a sociedade um “isso é uma coisa que não está permitido fazer”. E tem várias delas, ok? Não seria um precedente. Hoje, se você fizer ou deixar de fazer uma série de coisas previstas em lei com seu filho, pode perder o poder de decidir sobre sua criação e até ser preso. Já existe. É só aplicar.

Infelizmente, não tolerar intervenção estatal contundente é tolerar abusos, maus tratos e vida colocada em risco. Qual é mais grave?

Para dizer que quem não tem filho não pode falar sobre criação de filho, para dizer que quem nunca abusou de um filho não pode falar sobre abuso de filhos ou ainda para dizer que quem nunca matou um filho não pode falar sobre morte de filho: sally@desfavor.com

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Comments (7)

  • Minha bisavó perdeu duas filhas em 1931, a maior com 3 anos e a outra com 1 ano. A mais velha contraiu sarampo e contaminou a mais nova, com dias de diferença ambas vieram a óbito. Causa: sarampo.
    Com a vacina isso não teria acontecido. Minha avó conta que sua mãe dizia que muitas criancinhas acompanharam as suas bebês.
    A vacina do sarampo foi descoberta após 1950 – tem mais de uma data no Google.
    Imaginem quantas crianças vieram a óbito todo o tempo antes da vacina?
    Conheço duas idosas que tiveram poliomielite quando criança, ambas andam de forma muito dolorida tendo uma perna muito mais curta que a outra, e nem foram casos tão graves.
    E em pleno 2023 ainda leio e ouço pessoas dizendo que vacina não é algo seguro… da vontade de dar uns tabefes não porque estudaram pouco, mas porque sequer se deram ao trabalho de ler um pouquinho a respeito.
    Não tomar vacina é jogar com o desconhecido, pode ser fatal essa escolha, pior ainda que colocam os outros em risco.

  • Vacinas podem matar. São agentes externos entrando no seu corpo e causando uma inflamação, ainda que controlada, para assim então seu sistema imunológico reagir. Primeiro precisa ser estabelecido esse ponto, pois se não conseguem enxergar que um agente químico-biológico externo pode fazer mal a uma pessoa, não existe possibilidade alguma de debate.

    • Não existe possibilidade de debate com uma pessoa que não sabe que para uma vacina chegar ao mercado ela foi exaustivamente testada e teve sua segurança comprovada, portanto, NÃO MATA. SE MATASSE, NÃO CHEGARIA AO MERCADO. Te peço encarecidamente e com educação: não volte ao Desfavor, você não é o tipo de leitor que queremos.

  • Tem que tirar. Não necessariamente de forma permanente, mas tira.

    Entrega pra algum parente (tios, avós) que se disponha a conduzir o esquema vacinal até completar. Devolve para os pais só depois que completar o esquema vacinal.

    E nessa discussão, lembrei daquela notícia que saiu em uma Semana Desfavor, dos pais que estavam atrasando uma cirurgia cardíaca importante da criança pois não queriam que ela recebesse sangue doado por alguém vacinado contra covid. Nesse tipo de caso, defendo que a pessoa está completamente incapacitada para gerenciar a vida de outro ser humano, e a perda de guarda deve ser definitiva

  • O simples fato de que a prole alheia não vacinada pode ser berço de variantes que escapem da minha proteção vacinal já é suficientemente preocupante pra mim.

    • Concordo totalmente, Ana. Os imbecis desses país podem ignorar a ciência o quanto quiserem, mas a partir do momento em que colocam em perigo os próprios filhos e os filhos dos outros, temos um problema.

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