Desfile.

Carla era assaltada pelos sentidos: a visão ocupada por cores vívidas, contrastada com tons de pele claros e escuros, axilas, pescoços e cabelos úmidos lançando gotas de suor que reluziam ao sol intenso. A audição tomada por um batuque grave e repetitivo que zunia por trás de inúmeras vozes indecifráveis em gritos e cantoria desafinada. O olfato assaltado pelo cheio de suor, urina e cerveja; o paladar por um azedume grudento. O tato então… cada centímetro da sua pele pressionado contra outros corpos. Era quase como se estivesse derretendo dentro de um caldeirão humano.

Olhar para cima faz arder os olhos, é como se todo o céu fosse luz. Ela abaixa a cabeça e coloca as mãos por sobre os ombros, numa tentativa fútil de se proteger. Sente os seios nus, encharcados, com apenas adesivos protegendo os mamilos. A constatação inicia uma sensação terrível de vulnerabilidade, que só piora quando percebe que várias mãos percorrem seu corpo, algumas abaixo da cintura, tentando vencer a resistência do que parece ser apenas um pano amarrado. Um dedo começa a ocupar o espaço entre as nádegas, que ela rechaça retesando os músculos e retorcendo o quadril.

Quando finalmente sente uma variação no som ambiente, com gritos generalizados, alguns bem próximos de seu ouvido, gira o pescoço em busca de algo diferente. Sobe na ponta dos pés, mas não é suficiente para vencer o muro de roupas coloridas e pele suada ao seu redor. Carregada pelo instinto de proteção até aqui, ela tenta se lembrar de como chegara até ali num raro suspiro de racionalidade. Nada.

Duas grandes mãos escuras aparecem por trás dela, escorregando facilmente entre os braços cruzados e agarrando seus seios de forma agressiva. Ela tenta se desvencilhar com uma cotovelada, mas está tão apertada entre tantas pessoas que simplesmente não há espaço para gerar impacto contra o abusador. Ela tenta gritar, mas a voz não sai, não em volume suficiente para chamar atenção.

Ao mesmo tempo, sente o estômago embrulhar. Um pequeno momento de claridade se impõe enquanto sente um líquido quente e ardido subir goela acima. Carla tenta segurar com a boca, mas a pressão é muito grande. Ela vomita ali mesmo, primeiro um jato frontal que acerta as costas nuas de alguém e rebate de volta em direção ao seu rosto, depois num fluxo constante corpo abaixo, acertando em cheio as mãos que agora tentavam retirar o adesivo sobre seus mamilos.

O líquido escorre sobre as mãos, que depois de alguns segundos, desistem e voltam pela mesma direção que vieram. Ela sente o cheiro azedo queimando as narinas, e vê vários restos de alimento repousando sobre a pele. Começa a esfregar o corpo, jogando o vômito para o chão tomado por lixo colorido e latas de cerveja amassadas. Depois de um tempo indeterminado de tentativa de limpeza, percebe que o espaço ao seu redor volta a se fechar. Ela observa uma outra mulher mexendo a boca em sua direção, mas não consegue fazer senso do que fala. O som continua muito alto e é como se Carla estivesse vendo o mundo com alguns segundos de atraso, o ouvido desconectado dos olhos.

Ela recebe um copo plástico da estranha, e meio que sem pensar, começa a beber seu conteúdo. Mais cerveja, quente e sem gás. Ela bochecha o líquido e cospe para baixo. Derrama sobre o peito e bate a pele para tirar os últimos resquícios do que quer que tivesse comido antes. A mulher continua falando, ela continua não entendendo. Ela estende a mão e começa a ser puxada em direção desconhecida.

Com muita dificuldade, avança entre o povão, sentindo líquidos sendo derramados nas suas pernas e pés o tempo todo, sequer tem mais o reflexo de tirar as mãos que a tocam e apalpam sem parar. A melhor estratégia contra qualquer tipo de tentativa de invasão de seu espaço íntimo era se manter em movimento. Só que ao invés do volume de pessoas diminuir a cada passo, parece aumentar. Aumenta tanto que seu braço começa a esticar tentando manter contato com a mão que a guiava, estica tanto que ela perde a mão úmida e se vê presa novamente num impossível aglomerado humano. Ela não sabe nem que nome gritar para ser resgatada, e mesmo que soubesse, o volume do batuque estava ainda maior naquele local.

Ainda nenhum sinal da mente sobre os rumos que tomara antes de estar naquela multidão. Mente que já vai cedendo novamente a uma provável embriaguez depois da claridade pós-vômito. Um homem está diante dela, olhos focados nos seus. O rosto é difícil de reconhecer, a proximidade é tão grande que ela só consegue notar uma tatuagem bem no topo do peito desnudo dele. Uma caveira ou uma flor, impossível de entender naquela situação. Ela sente uma mão enorme vir até seu pescoço e puxar o queixo para cima. Ela é beijada sem oferecer resistência. O gosto é estranho, mas o cheiro é puro álcool.

Carla fica ali por alguns momentos, com uma língua entranha explorando a boca, mas sem nenhum sentimento claro sobre o evento. É como se corpo e mente tivessem desistido de exercer controle. Os olhos estão muito pesados pelo cansaço, e o suor que escorre da testa, que nem sabe se é o próprio, torna impossível manter a visão funcional. Ela sente mãos pelo corpo todo, muitas mais do que seu parceiro atual poderia ter.

Ela sente um tranco na direção da boca, os dentes dele batendo contra os dela. Com alguma dificuldade, ela consegue ver vultos de mãos para todos os lados, um punho cerrado atinge em cheio o homem na sua frente, e depois outros começam a passar cada vez mais perto. Ela sente uma pancada nas costas, e depois outra no ombro esquerdo. E mais uma, e mais uma. O volume dos gritos passa por cima do batuque mais uma vez, ela só consegue ver algumas pessoas se afastando antes de sentir uma pressão na altura do queixo e tudo ficar escuro. Finalmente paz.

Que é interrompida por um estampido molhado bem perto do seu ouvido. Ela abre os olhos, boca colada no chão de pedra molhado. Está deitada de bruços num lugar duro, ouvindo o som do batuque abafado à distância e um líquido escorrendo. Na sua frente, vê de perfil uma mulher acocorada, e um jato amarelado atravessando as pernas dela. Escuta risadas de mulheres, e uma voz claramente alterada pedindo desculpas enquanto controla o próprio riso. Carla levanta a cabeça e percebe que está caída numa sarjeta, a poça de urina da mulher próxima começando a escorrer em sua direção. Por instinto, ela se levanta, mas o corpo não responde como esperava. A mão escorrega no chão, ela tenta estabilizar com as pernas mas cai sentada.

Mais risadas. Ela ouve uma das vozes falando “topless”, e é quando percebe que os adesivos que escondiam os mamilos já se foram. Coloca as mãos sobre os seios rapidamente, e percebe também que fora uma canga encharcada, não tinha mais nada cobrindo o corpo. A mulher que acabara de se aliviar pergunta se estava tudo bem. Carla, sem pensar muito, diz que sim. Sua vontade era desaparecer de tanta vergonha.

As mulheres se afastam, dobrando a rua e sumindo em direção ao som. Carla ficou ali por mais duas horas, escondida atrás de um carro, acompanhada apenas por estranhas e estranhos eventuais que usavam a rua para se aliviar da cerveja. Não se lembrava onde tinha perdido o celular, não se lembrava nem com quem tinha vindo até ali. Reconheceu a rua depois de algum tempo, e foi, escondendo-se entre postes e lixeiras, até a casa de uma amiga que não via há muito tempo, mas que por sorte estava em casa na hora que bateu desesperada na porta.

Após um longo banho e uma muda de roupas emprestada, ganhou uma carona do pai da amiga até sua casa. O senhor foi o caminho todo mudo, ela também. Desabou na cama sem falar com ninguém em casa. No dia seguinte, comprou um celular novo e prometeu a si mesma que faria melhor.

Saiu para o bloco do dia com um top. Os adesivos tinham irritado os mamilos.

Para me chamar de misógino, para dizer que é o final perfeito para a semana de carnaval, ou mesmo para dizer que Carla é que está vivendo a vida: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Mãe emputecida

    Pobre e infeliz Carla.
    Creio que este foi seu último carnaval fora de casa.
    Falo e repito: no carnaval fica em casa, pega um livro, fica só mas fica bem. O mar não tá pra peixe.
    Certo ano passei com a família o feriado de carnaval na praia. Mãe de pré adolescentes, óbvio que a noite ficamos no hotel, e a cantoria ensurdecedora de um trio elétrico enlouquecido não nos deixava dormir, a noite inteira foi
    “o canto dessa cidade sou eu, e outras similares” martelando na nossa cabeça a 2000 decibéis até amanhecer. Que inferno foi aquilo e nem estávamos na folia, estávamos no hotel, na cama.
    Lendo Carla deu gatilho aqui.
    Nunca mais, nunca mais.
    Carnaval não é pra gente normal, valeu a experiência.

  • A protagonista dessa história ficou espremida no meio de um monte de gente suada e embriagada, saiu pelada na rua, foi apalpada e tocada de tudo o que é jeito, beijou um completo desconhecido logo depois de vomitar de tão bêbada, ficou na sarjeta enquanto outra mijava no chão e depois, mal se lembrando do que aconteceu, se preparava pra fazer tudo de novo no dia seguinte. Típico de quem participa da tal “Folia de Momo”…

    • Spoiler: isso é típico de codependente.

      Meu psicólogo me explicou que se você mora em um ambiente onde uma pessoa sofre de alcoolismo ou faz uso de drogas ou tóxico com pais abusivos ou está em um relacionamento abusivo, em qualquer um desses cenários por mais de dois anos e não procura ajuda psicológica você acaba se tornando uma pessoa codependente.

      Cérebro de uma pessoa codependente acaba se tornando exatamente igual ao cérebro de um viciado em drogas. E a pessoa acaba cometendo os mesmos erros por osmose procurando um desfecho diferente. Sabe a pessoa que vai no puteiro barato de r$ 20 esperando encontrar uma puta bonita estilo café Photo e nunca encontra e acaba transando com a feia mesmo assim e se arrepende depois? E mesmo no Dia seguinte vai lá de novo com a mesma esperança de encontrar a estilo café Photo tipo dançarina do Faustão, não encontra, transa de novo “por que é que tem”? Isso se não voltar uma hora depois?

      Pessoa se auto-sabota mesmo sabendo que vai dar ruim mas o cérebro impulsiona igual aquela excitação de usar drogas ou beber até cair. A pessoa sempre se dá mal mas o cérebro em busca de gratificação imediata faz com que a pessoa tome atitude errada over and over again.

      Existem vários tipos de codependentes, jogos de azar(sempre perde mas vai lá e joga de novo mesmo assim).

      Codependente em comidas (sabe a pessoa que acabou de comer mas mesmo assim vai lá e enche o bucho de novo duas três quatro vezes).

      Sexo anônimo, drogas, álcool, novelas(quem viveu nos anos 80 e 90 lembra das pessoas que se programavam baseado no horário da novela e tinham pessoas que não podiam perder um capítulo se não morriam igual como se você tirasse a droga do viciado).

      Mulheres que apanham de maridos e namorados e não os deixam e voltam para casa mesmo assim e apanham de novo (ciclo interminável) são também codependentes.

      A pessoa codependente não teve amor na infância, ficou acostumada com migalhas e aceitar qualquer coisa. (Pais dizem que amam mas depois batem, depois dizem que amam e batem de novo, aí a criança fica condicionada a viver um rodízio de experiências boas e más e acha que a vida é assim que isso é normal).

      Agora em um país como o Brasil onde quase todo mundo teve uma infância de merda com pais que não estavam preparados para ser pais, que são abusivos, errôneos, me diz qual é a probabilidade de quase todo mundo ser um codependente e a razão pelo qual o Brasil está na merda que está? Que fica em emprego ruim mas não sai gente que aceita salário de merda e não procura emprego diferente, gente que não sai de relacionamento ruim porque ficou condicionado aceitar e por que não a protagonista desse texto que mesmo depois de tudo o que aconteceu com ela vai lá fazer tudo de novo?

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