Culpa paliativa.

Ao mesmo tempo que um moleque brasileiro atacou e matou uma professora aqui no Brasil, nos EUA um atirador matou três adultos e três crianças numa escola. Evidente que o caso brasileiro chamou mais atenção no Brasil, mas mesmo nos EUA a resposta ao atentado local foi menos grave do que casos anteriores. Ou os americanos cansaram de se preocupar com tiroteios aleatórios, ou a identidade desse atirador (ou atiradora) teve algo a ver com isso.

Ou talvez as duas coisas. Mas antes, vamos estabelecer um motivo para este texto: ontem o texto da Sally estabeleceu bem a ideia de que somos viciados em olhar para sintomas ao invés de causas. O que me fez pensar sobre o tema dos ataques de jovens descompensados, seja no Brasil, nos EUA ou em qualquer outro país do mundo. Quando olhamos para esses ataques, estamos vendo sintomas.

E buscando formas de aliviar esses sintomas. Como tornar as escolas mais seguras? Como prever quais os jovens que podem realizar esses ataques? Devemos proibir armas? É provável que essas atitudes consigam reduzir o número de sintomas percebidos, até mesmo a ideia de regular melhor armas: a diferença entre o resultado do ataque no Brasil e nos EUA tem muito a ver com as armas disponíveis. É desonestidade intelectual fingir que não.

Mas mesmo num mundo onde seja impossível conseguir armas de fogo, está provado pelo caso brasileiro que a pessoa querendo fazer algo horrível ainda vai tentar. E em muitos casos, conseguir matar alguém. O problema de lidar com sintomas é que é apenas questão de tempo até eles aparecerem de novo, afinal, a causa não foi neutralizada. Em tese é melhor ter sintomas leves do que sintomas pesados, mas será que é só isso que podemos fazer?

Na medicina, isso é conhecido como cuidado paliativo: já não se espera mais resolver o problema fundamental, apenas reduzir o grau de sofrimento do paciente para que um “milagre” ou a morte resolvam a situação de vez. Quando os médicos decidem que só resta a via dos cuidados paliativos, tratamentos sofridos são deixados de lado, afinal, não faz sentido causar mais dor e incômodo na pessoa se não existe uma expectativa real de cura.

Redução de danos na questão de ataques violentos em escolas e áreas públicas em geral é uma alternativa para quem não sabe mais o que fazer em relação ao problema fundamental. Mesmo quem está dizendo que temos que tomar mais cuidado com a saúde mental dos jovens pode estar caindo na armadilha dos paliativos. Explico: tem alguma coisa causando um aumento exponencial de questões de saúde mental no mundo. Não existe muito consenso sobre o que pode estar por trás disso, mas os dados indicam essa direção.

Ataques fatais em escolas são sintomas de problemas de saúde mental, mas problemas de saúde mental não podem ser, por sua vez, sintomas de algo ainda mais profundo? Onde essa cadeia de eventos termina de verdade? Maior atenção com a saúde mental de crianças e adolescentes pode reduzir o número de ataques violentos em escolas, mas não tem algo estranho na ideia de tantos jovens estarem se identificando com problemas mentais? Que se prescreva e venda tantos remédios controlados para uma parcela da população, que em tese, deveria ser a mais saudável de todas?

É aqui que eu volto para o caso do atirador dos EUA, que só estou referenciando no masculino por presumir que fosse sua identidade de gênero. A mídia começou divulgando o caso como o de uma atiradora, o que bate com o sexo biológico da pessoa, mas os rastros de sua presença online sugeriam que era uma transexual masculina. A mídia falou sobre a pessoa, mas num grau mais tímido em relação a outros atiradores mais convencionalmente homens e brancos. Seu suposto manifesto ainda não apareceu.

E antes que você comece e me colocar no barco dos conservadores de internet, calma: eu acredito que a melhor coisa a se fazer é sumir com as informações da pessoa que realizou o tiroteio, para que ela desapareça desconhecida. Em tese eu concordo com o silêncio da mídia sobre o atirador, só me estranha que tenha acontecido agora que era uma pessoa trans.

E eu não estou falando sobre uma conspiração dos judeus/illuminatis/reptilianos para fazer os sapos virarem gays, estou falando sobre o que provavelmente passou pela cabeça das autoridades e jornalistas lidando com o caso, a nefasta ideia de que “não é hora de criticar.”

O grupo dos transexuais já é suficientemente marginalizado sem exemplos de violência contra crianças, tem alguma lógica na ideia de reduzir a exposição de uma pessoa assim. Durante o dia, várias comunidades online discutiram o perigo da extrema-direita usar isso para piorar a imagem que o cidadão médio tem sobre transexuais. E é claro, os grupos de sempre pularam na oportunidade para conectar identidades de gênero menos tradicionais com perigo para crianças.

Muita gente acabou preocupada com a forma de lidar com esse caso, imaginando um perigo extra para a comunidade transexual caso a identidade e as motivações do atirador virassem o foco da conversa. Embora exista um perigo em deixar a narrativa solta na mão de gente que acha que qualquer variação de sua moral cristã é indiferenciável do demônio, também não me parece saudável ir para o lado oposto e tentar esconder um problema fundamental que sociedades mais avançadas estão encontrando com a aceitação em massa de transexuais.

Nada é de graça nessa vida. Eu fico realmente em dúvida se o número de transexuais aumentar tanto assim nas últimas décadas é resultado de demanda reprimida (as pessoas já queriam fazer isso mas não podiam), ou se é resultado de jovens entrando para “tribos urbanas” sem entender o significado de suas escolhas.

Vejam bem: eu acredito que pessoas podem ter uma identificação com o sexo oposto ao ponto de não serem elas de verdade até poderem se assumir. Eu acredito também que esse processo pode começar logo na primeira infância. Os casos mais “ideais” de transição estão relacionados com pessoas que rapidamente começam a agir como se espera do sexo oposto ao seu biológico. São pessoas que se sentem compelidas a agir como enxergam outros homens ou mulheres agindo, independentemente do que tem entre as pernas.

E essas pessoas podem ser livres ou oprimidas que não vão mudar a forma como funcionam. Ou você aceita elas como são, ou no máximo vai conseguir prender ela numa prisão física e mental, forçando-a a agir contra seus instintos e percepções pessoais. Eu enxergo repressão de expressão de identidade de gênero como uma forma de tortura e acredito que os países que lidam com isso de forma natural, permitindo nomes sociais, criminalizando discriminação e outras formas básicas de manutenção de direitos humanos estão fazendo só a obrigação.

Só que essa mentalidade de acolhimento da pessoa trans não pode ser contaminada pela ideia de que “não pode criticar agora”. Crítica é algo muito mais complexo do que odiar, crítica vem da ideia de pensar criticamente sobre um tema. Se a sexualidade humana é cheia de variáveis e não faz sentido colocar rótulos específicos em todo mundo, isso também quer dizer que muita coisa pode dar errado nessa história.

Não é impossível que algumas pessoas que se apresentam como transexuais ou combinações entre papéis sexuais históricos estejam passando por problemas de saúde mental. O medo de dar munição para conservadores religiosos pode muito bem reduzir o grau de atenção e por consequência proteção que oferecemos para essas pessoas.

E se o manifesto do atirador trans tiver mensagens sobre o medo incutido em sua cabeça pelo discurso de terror que as comunidades trans fazem sobre a sociedade? O mundo não é feito apenas de aliados e inimigos. Muitas comunidades focadas em “justiça social” pecam pelo mesmo sensacionalismo violento que seus adversários de direita. A tia do Zap te manda um artigo sobre como o Bill Gates está colocando veneno na sua vacina por que quer destruir os cristãos; mas muitos ativistas da causa LGBT+ envenenam o poço também dizendo que todo mundo quer vê-los mortos.

O ser humano, assim como a maioria dos outros animais, é muito mais perigoso quando se sente acuado. Quando vemos ataques violentos de homens brancos em multidões, quase sempre por trás está o mesmo caminho de radicalização: encontram um grupo que partilha visões de mundo específicas, sentem-se incluídos e começam a acreditar que precisam tomar alguma atitude urgente para salvar o mundo. Quase sempre são pessoas com outros problemas mentais que acabaram influenciadas por discurso de pânico (é muito mais que ódio) dessas comunidades.

Curiosamente, homens brancos heterossexuais tem o privilégio de serem atacados diretamente caso comecem a entrar nesse caminho de radicalização. Se eu começasse a falar asneiras conspiratórias, ninguém teria reservas a me bater por causa disso. Aliás, é possível que alguém venha fazer justamente isso no texto de hoje, porque eu sou alvo legítimo para discordância e crítica.

Se eu escrever uma grande besteira aqui ou se disser algo preconceituoso horrível para pessoas ao meu redor, no mínimo alguém vai me chamar a atenção. Não quer dizer que eu seja imune a me radicalizar, mas a rede de proteção está próxima e bem mantida. Se eu falhar em me policiar, não vejo o risco de ser ignorado até o fundo do poço.

O mundo moderno criou uma série de desafios para a criação das novas gerações, a quantidade de informação que essa gente está recebendo nos primeiros anos de vida é maior que muitos de nós recebemos até chegar na vida adulta. Talvez esses jovens estejam mais assustados do que nós estivemos no nosso tempo, éramos mais ignorantes. Hoje podem estar mais propensos a buscar grupos de suporte e se sentirem parte de algo maior para enfrentar esse medo.

E se eles continuarem assim, serão presas fáceis para grupos radicais, a parcela mais maluca da humanidade com influência desproporcional nos cidadãos médios do futuro. Parece haver algum escrutínio na forma como o “opressor natural” que é o homem branco toca sua vida, e uma preocupação generalizada sobre sua propensão a entrar para algum grupo radical que o faça ficar violento. Mas eu não vejo a mesma coisa acontecendo com os grupos ditos minoritários.

Quem garante que não tem jovem trocando de sexo por influência de gente completamente descompensada? E que isso não esteja destruindo a saúde mental deles? Como eu já disse, eu não tenho a informação sobre a quantidade de jovens trans no mundo atual ser resultado de demanda represada por opressão religiosa ou se tem um componente de desejo de pertencimento a um grupo de suporte.

Agora, vai ser impossível saber a resposta dessa pergunta se ficarmos presos nessa ideia de “não pode criticar ainda”. Temos que olhar para pessoas trans que ficaram mais saudáveis mentalmente assumindo sua identidade real e temos que olhar para cidadãos e cidadãs altamente complexadas que não sabem muito bem o que estão fazendo. Gente que pode perder o pouco de controle sobre a sanidade que ainda tem se continuar ouvindo que é tudo culpa dos opressores.

É triste que pessoas usem casos isolados de doenças mentais para empurrar narrativas sobre grupos inteiros, mas é um efeito colateral doloroso de tentar lidar com a verdade. Precisamos deixar que jovens transexuais tenham problemas psicológicos também, e precisamos que eles sejam tratados de forma tão séria quanto os dos homens brancos heterossexuais. Os jovens que não se conformam nesse padrão também merecem essa atenção.

É sempre hora de criticar, para o nosso bem.

Para me chamar de “ista”, para dizer que eu sou um isentista radical, ou mesmo para dizer que a culpa é de objetos inanimados: somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • Não temos como ter um número razoável em qualquer país onde é legal fazer cirurgia de redesignação sexual pois a pressão do alfabeto pra calar os dissidentes (ou seja, quem se arrependeu e quer voltar atrás) é enorme.

    O que o movimento era e o que virou é uma tragédia. Sei que o Somir discorda do termo em si, mas o motivo pelo qual eu não me considero feminista é justamente pelo mesmo ponto: os proponentes são nojentos

  • Doente mental é quem rasga dinheiro, caga no chão e come a bosta. Vai lá ter uma crise mental ou sei lá o que na frente de policiais armados ou de um grupo de marombeiros de 2m de altura, atacar pirralhos de escola é fácil.

  • Pulverizar o Discord de uma vez por todas já ajudaria muito. Ô lugar pra ter desocupado e danificado mental, viu… E ainda falam dos chans, que estão quase todos mortos e nem de longe são mainstream como o Discord.
    E a maioria das pessoas que reclamam de exclusão merecem a exclusão. Não fazem o mínimo pra conviver em sociedade, são repugnantes tanto na aparência quanto no comportamento, acham que o mundo inteiro tem que se interessar nas coisas obscuras/infantiloides que eles são obcecados, eu hein
    Só não são obcecados em procurar emprego.

  • Pra mim as teorias de que esses doidos são coagidos online por agentes da CIA e coisa do tipo nem é tão absurda. Como é que esses moleques fracotes, flácidos, que não sabem falar com ninguém, arrumam armas? Por que eles sempre são tão caricatos, com discursinho de vilão de anime, máscara de caveira e várias laudas de manifesto?

    • Normalmente essas crianças arranjam armas com os pais, que negligenciam não apenas a saúde mental, a vida escolar e o que os filhos andam vendo online, mas também a guarda segura das armas em casa. Deixar a arma guardada em um local acessível por um adolescente, e negligenciar a saúde mental dele, como se problemas como bullying e depressão fossem apenas “uma fase” são receita pro desastre. Ter filho e ter arma assim, qualquer Zé cu pode ter.

      • E muitos desses pais também são uns chucros trogloditas que acham que todos os problemas de resolvem na base da agressividade e da intimidação.

  • “Eu fico realmente em dúvida se o número de transexuais aumentar tanto assim nas últimas décadas é resultado de demanda reprimida (as pessoas já queriam fazer isso mas não podiam), ou se é resultado de jovens entrando para “tribos urbanas” sem entender o significado de suas escolhas.”

    Também tenho essa dúvida. E eu acho que o que acontece aí, Somir, é um mix das duas coisas, o que só deixa tudo ainda mais complicado…

  • A militância do EU!

    Eu fico realmente em dúvida se o número de transexuais aumentar tanto assim nas últimas décadas é resultado de demanda reprimida (as pessoas já queriam fazer isso mas não podiam), ou se é resultado de jovens entrando para “tribos urbanas” sem entender o significado de suas escolhas.

    Eu aponto A SEGUNDA OPÇÃO como principal. Há uma glamourização

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