Histórias de Vida – Parte 8

Zé Gotinha da Floresta, candidato (derrotado) a deputado estadual no Amazonas.

O zumbido dos pernilongos se mistura ao carregado sotaque do pesquisador norueguês, tornando sua compreensão ainda mais difícil. Sergio sorri, acenando em concordância. Entre um tapa e outro para afastar os insetos, observa um mapa feito à caneta, numa grande folha de papel que já começava a ficar borrada com a humidade inclemente da floresta amazônica. Os olhos ardidos por uma recente conjuntivite incomodam. Ele tem alguma ideia de onde estão, mas nem de longe com o grau de confiança que demonstra para o homem que o contratou.

Ele olha para o seu colega de missão, um atarracado descendente de indígenas chamado Claudio, que carrega uma mochila enorme de suprimentos e parecia reconhecer a confusão em seus olhos. Sergio havia se aproveitado de seus parcos conhecimentos da língua inglesa para fazer amizade com Fredrik, um biólogo nórdico fascinado pela diversidade natural brasileira que passava suas férias na Amazônia. Depois de muitas cervejas, prometera conhecer as margens do Solimões como poucos.

Não conhecia. Mas depois da promessa de um bolo de dólares para fazer o papel de guia, imaginou que era só contratar um dos tantos descendentes de índios que conhecia de suas bebedeiras para ganhar dinheiro fácil. Claudio tinha o visual de alguém que conhecia a floresta, mas não era muito mais conectado com a natureza que ele mesmo, também nascido e criado em Manaus. O mapa na frente de Sergio tinha um caminho simples acompanhando as margens do Solimões, fazendo alguns círculos para convencer o estrangeiro que haviam se aprofundado muito na mata.

O que talvez tivessem feito por algum erro de cálculo. Fredrik, com sua roupa de explorador e câmera caríssima, divertia-se fotografando tudo quanto era tipo de planta e inseto. Às vezes esquecendo de todo o resto. Numa dessas andanças empolgadas do norueguês, haviam se embrenhado um pouco demais mata adentro. Sergio tinha uma leve ideia de como voltar para as margens do rio, mas não queria demonstrar insegurança pedindo para voltar tão cedo no dia. Ele pinga umas gotas do colírio antibiótico no olho esquerdo, esperando que a visão ficasse menos turva.

Enquanto mostrava o mapa para Claudio, que apontava para várias direções discutindo em sussurros cada vez mais irritados, ele ouve um grito de Fredrik. Olha assustado na direção do som, e vê o estrangeiro começando a rir ao lado de um desconhecido: um homem negro vestindo apenas uma bermuda e segurando um grande facão. Por sorte, o estranho parece sorrir de volta para Fredrik. Sergio começa a se aproximar.

Com um aperto de mão, a tensão diminui. O homem diz que pode ser chamado de Pena, e que mora numa comunidade ali perto. Fredrik se convida para conhecer o lugar, com sua curiosidade quase infantil. Pena concorda com um grande sorriso, e o grupo anda por mais alguns minutos por uma trilha recém cortada no mato.

Eles chegam num quilombo muito antigo, no coração da floresta. Pena conta que seus antepassados vieram para o lugar centenas de anos atrás, fugindo da escravidão. Os locais, todos de pele tão escura quanto Pena, seguiam seus afazeres diários em casas simples feitas com os recursos da mata. Todos muito receptivos, especialmente as crianças, que cercavam Fredrik, com sua pele incrivelmente branca em comparação com todos os outros presentes. Eles são convidados a comer um peixe assado que acabava de ser preparado e se sentam ao redor do braseiro. Fredrik se esforça para conversar em português, feliz da vida com a companhia inesperada. Claudio devora um gordo peixe enquanto se alivia da pesada mochila.

Sergio sente a natureza chamando, e se afasta um pouco da clareira para se aliviar numa árvore fora da vista. Enquanto faz sua necessidade fisiológica, percebe um brilho dourado no chão. Com o pé, afasta um pouco da terra para perceber uma diminuta pepita brilhante. Depois de chacoalhar, abaixa e pega a pedra. Ele faz pressão no material com os dedos e percebe que ele começa a ceder. Parece ser… ouro.

Sem dizer uma palavra, ele volta para a companhia de Fredrik, Claudio e os quilombolas para passar mais uma hora de conversa e comida ao redor do braseiro. Sentindo a luz do sol começar a fazer a curva rumo ao horizonte, ele sugere que o grupo volte para o barco e faça o caminho de volta à cidade mais próxima. Com algum pesar, Fredrik concorda. Eles se despedem, Fredrik deixa um bolo de notas verdes para Pena, que no começo recusa, mas cede à insistência do norueguês.

O quilombola ensina um caminho bem mais simples para o retorno, e em poucos minutos já estavam de volta ao barco, e poucas horas depois, dormindo numa pensão. No dia seguinte, voltam a Manaus. Fredrik agradece o trabalho, faz um gordo pagamento para Sergio, que repassa mais do que o combinado para Claudio, dizendo que estava na hora do colega realizar o sonho de ir para o Rio de Janeiro.

Sergio então começa a estudar como coletar o ouro encontrado na terra quilombola. Poderia vender a informação para um dos inúmeros garimpeiros regionais, mas sente que não era a coisa certa a se fazer. A truculência dos garimpeiros, que agiam feito uma organização criminosa na região, com certeza traria muito sofrimento para Pena e sua comunidade. Sergio queria o dinheiro, mas não queria um massacre de inocentes.

Ele precisava primeiro dar um jeito de mudar os quilombolas de lugar. Começa a pesquisar sobre essas comunidades, e numa daquelas pesquisas malucas de internet, acaba chegando numa ideia infalível para assustar os locais a se reassentarem em outras paragens. Ele sorri com a certeza de estar sendo uma boa pessoa e usa o resto dos dólares para comprar alguns suprimentos para o plano.

No dia seguinte, já estava no barco acompanhado apenas pelo condutor, rumo ao mesmo local que visitara com o biólogo estrangeiro semanas atrás. Com a memória do caminho ensinado por Pena, chega rapidamente aos arredores do quilombo. Ele faz questão de não ser visto, e escondido entre a vegetação, começa a se preparar. Com um facão, corta dois galhos retos, e os amarra em formato de cruz com um cipó. Da mochila, tira um jaleco branco e uma máscara pontuda com apenas dois buracos para os olhos. Ele pode ouvir as vozes dos quilombolas à distância, aparentemente estavam todos concentrados na área central da comunidade.

Com uma garrafa de álcool, ensopa a cruz improvisada e começa a correr em direção ao som das vozes. A máscara está sobre o rosto, o jaleco todo colocado. Ele tem certeza de que a imagem de um racista da Ku Klux Klan seria perfeita para assustar os negros a se afastarem dali. Afinal, era o grupo de ódio mais famoso do mundo. Ele se prepara para prender a cruz no chão e atear fogo nela quando percebe algo diferente.

Pessoas brancas. Tão brancas como Fredrik. Câmeras. Microfones.

O povo que se concentrava ao redor do que parecia ser uma equipe de televisão estrangeira volta sua atenção para Sergio. O câmera aponta diretamente para ele. Todos estão surpresos. Sem saber o que fazer, Sergio acena para os quilombolas e os jornalistas. A mulher que segurava o microfone está claramente chocada, choque que vai se transformando em expressão furiosa. Os quilombolas ao redor dela não parecem irritados, apenas confusos. Pena está entre eles, cabeça inclinada tentando fazer senso daquele homem todo de branco com uma máscara pontiaguda e pedaços de pau nas mãos.

A equipe de TV começa a se aproximar, a mulher na frente, passos duros e olhar de fúria. O povo presente acompanha. Sergio trava, em dúvida sobre o que fazer, tempo suficiente para as crianças que corriam na frente se aproximarem e começarem a segurar seu jaleco.

A mulher se aproxima, microfone apontado. Ela pergunta alguma coisa em inglês, mas ele só reconhece a palavra “racist”. Ele tenta responder, mas não consegue concatenar nada além de “eu… I… be…”. É quando uma das crianças, uma simpática menina de no máximo seus 5 anos de idade, grita algo que salva sua vida.

“Zé Gotinha!”

As outras crianças repetem, e isso rapidamente transforma a expressão estranhada dos quilombolas em grandes sorrisos. A equipe de jornalismo olha ao redor, confusa. Um homem mais escuro sussurra algo no ouvido da repórter, que parece suspirar aliviada. O homem do sussurro pergunta para Sérgio se ele veio vacinar as crianças, e ele concorda com um aceno de cabeça.

O homem se chamava Jorge, era o guia e tradutor da equipe da TV estatal norueguesa, que estava aqui para conhecer uma comunidade quilombola brasileira isolada, dica recebida de um biólogo norueguês que visitara a região recentemente. Sergio tira a máscara a pedido da repórter, Anna. Pela meia hora seguinte, ele se vira para explicar a história de como o governo brasileiro valorizava a saúde do povo quilombola e como ele tinha se candidatado a oferecer vacinas para as crianças locais.

Incentivado pela equipe norueguesa, ele coloca de volta a máscara e aceita ser filmado aplicando as vacinas. Os pais trazem seus filhos para um centro de vacinação improvisado num dos casebres. Sergio passa uma hora pingando o seu colírio bacteriano na língua de cada uma das crianças da comunidade. Por sorte se lembrava de um nome de vacina, BCG.

Reconhecido por Pena e alguns locais, não pode nem dizer um nome diferente. Sergio aceita que será matéria na TV norueguesa e tenta tirar o máximo da situação. Anna, agora encantada com a iniciativa, chama Sergio num canto junto com Jorge, e explica de forma carinhosa que o visual escolhido por ele poderia passar uma imagem errada. Ela conta sobre a KKK e a história de racismo terrível nos Estados Unidos. Ele finge surpresa.

Depois de mais uma despedida calorosa dos quilombolas, ele pega carona com a equipe estrangeira de volta a Manaus. Um dia antes de partir de volta para a Noruega, a equipe o chama para mais uma filmagem. Num quarto de um grande hotel local, ele recebe um kit completo da roupa do Zé Gotinha, que mandaram fazer especialmente para ele.

A história na rede norueguesa fez sucesso quando descoberta por brasileiros, viralizou na região… e Sergio agora é o Zé Gotinha da Floresta, floresta adicionada pelos noruegueses, mas que colou muito bem em seu estado natal. A fama local o animou para buscar ouro em outro lugar: na política. Infelizmente para ele, não foi fama suficiente para ser eleito.

Ele ainda é amigo de Pena, que se conscientizou do valor das vacinas e arrumou um programa completo para as crianças do quilombo. Zé Gotinha da Floresta ainda vai lá nos dias de vacinação para animar as crianças, mesmo que estranhamente passe longas horas do dia zanzando pelo mato procurando por alguma coisa…

Para dizer que as histórias estão cada vez mais insanas, para dizer que o verdadeiro fundo Amazônia são os amigos que fizemos pelo caminho, ou mesmo para dizer que agora o processo vem: somir@desfavor.com

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