Não se corrigem sintomas.

Tem coisa mais irritante do que querer mudar um comportamento e não conseguir? A gente sabe que não é legal fazer aquilo, a gente sabe que é melhor não fazer aquilo, a gente sabe que aquilo desgasta, adoece e fecha portas, mas… quando um estopim se apresenta, lá vem aquele comportamento que desejamos mudar.

É muito irritante. A boa notícia é: todo comportamento pode ser mudado, basta colocar o foco no lugar certo. Provavelmente ninguém vai resolver a vida lendo este texto, mas, quem sabe, talvez, para alguns, ele seja o começo de uma solução? Poderia ser uma palestra, poderia ser um vídeo monetizado, poderia ser uma aula de coaching, mas, felizmente eu tenho vergonha na cara e é apenas um texto gratuito: não se muda focando no sintoma e sim na causa.

Geralmente aquilo que chama a atenção é o sintoma, o comportamento não desejado, e, justamente por ser o que chama a atenção, o que prejudica, o que salta aos olhos, é nele que as pessoas focam na hora de te aconselhar e te corrigir: “Você não pode ser tão ______, (complete a frase com o comportamento indesejado, que é o mesmo que o sintoma), tem que aprender a ser mais ______ (complete com o novo comportamento desejado)”.

Por exemplo: “Você não pode ser tão explosivo, tem que aprender a ser mais calmo” ou “Você não pode ser tão passivo, tem que aprender a se impor”. É nisso que as pessoas focam, no sintoma: explosões, passividade, impulsividade, ciúmes e outros comportamentos indesejados não são o problema em si, são o sintoma do problema em si.

Quando a pessoa fica determinada a corrigir o sintoma, ela não vai sair do lugar ou vai fazer muito pouco progresso. É como uma mola encolhida: quanto mais você comprime, mais tensão cria e uma hora ela se solta e o comportamento indesejado explode novamente.

Então, por qual motivo as pessoas insistem em tentar corrigir sintomas, e não o problema que os originou? Por ser mais fácil. O sintoma está ali na cara, não tem que vasculhar, pensar, refletir, revirar as merdas da vida para chegar na origem do problema. E nessa onda simplória e medíocre, vemos coach, guru e todo tipo de terapeuta alternativo tirando dinheiro de pessoas desesperadas.

Pessoas que passam por um ridículo sem precedentes na esperança de corrigir sintomas: repetem frases para si mesmas na frente do espelho, tentam controlar sintomas cantando músicas quando o estopim se apresenta e muitas outras palhaçadas que nem de graça deveriam ser levadas a sério, muito menos pagando. Não terão sucesso. Talvez por algum tempo, mas não será uma solução para a vida.

Quando a gente foca, ataca e tenta corrigir sintomas acontece uma situação muito comum, pela qual eu já passei várias vezes e acredito que muitos de vocês também: a gente se convence de que agir assim não é legal, a gente genuinamente está disposto a mudar, a gente promete para as pessoas que vai fazer diferente e… apesar de termos as melhores das intenções e os maiores dos esforços acabamos repetindo o comportamento que sabemos não ser o melhor.

Aí, inevitavelmente você se sente um bosta: “porra, eu sei que isso é errado, eu estava determinado a mudar isso e… fiz novamente!”. Esse ciclo se repete mais algumas vezes. Você se convence de que agora vai se esforçar mais para mudar esse comportamento, você se empenha ainda mais e… em algum momento descuida e acontece novamente. Soa familiar? A gente se sente uma bosta, não?

E a pessoa para a qual foi prometida uma mudança não fica nada feliz. Não raro ela presume que você “mentiu” para ela, e nem sempre é mentira. Muitas vezes a pessoa genuinamente quer mudar e fez um esforço gigantesco para isso, só que tomou um caminho errado, um caminho que leva para um beco sem saída, um caminho onde a melhora não é possível. Não se consegue nenhuma mudança significativa na vida atacando sintomas. As grandes mudanças vêm quando o foco passa a ser a causa desses sintomas.

Enquanto a causa estiver lá, mal resolvida, desconhecida ou inconsciente, o gatilho para repetir o comportamento existirá e, por mais que você se policie muito e faça todo o esforço do mundo, em algum momento (em vários, na verdade), você vai repetir esse comportamento.

E, preste atenção: pouco importa se você acredita ou não no inconsciente, ele não é uma religião, ele opera efeitos mesmo que você não acredite nele. Cerca de 10% das coisas que fazemos são de origem consciente, todo o resto está nas mãos dele. Sinto informar, mas você tem menos controle sobre você do que você imagina

É por isso (e por muitos outros motivos) que pessoas que não conseguem resolver questões sozinhas acabam conseguindo ótimos progressos fazendo psicanálise (não coach, não terapeuta holístico, não regressão a vidas passadas, estou falando de psicologia, é que uma ciência e, portanto, demanda diploma universitário para ser exercida). A psicanálise se pergunta o tempo todo “de onde isso vem?” e tenta chegar à origem do problema, desarmando o mecanismo desde a raiz. É a única forma? Não. Mas é uma das poucas formas que olha para a causa, não para seus sintomas.

Em um mundo ideal, todos fariam terapia e seriam melhor resolvidos, mas nosso mundo está longe do ideal, por isso resolvi escrever este texto, para que ao menos algumas pessoas entrem em contato com esta ideia. Substitui terapia? NÃO. Mas pode ser de alguma ajuda, trazer uma nova perspectiva e, quem sabe, abrir a mente para que um dia a pessoa se interesse e faça terapia. Existem ótimos lugares que disponibilizam terapia gratuita ou a preços populares.

Voltando para a nossa conversa não-terapêutica: o sintoma não existe sozinho, por si, de forma independente. Ele está vinculado a algo que o causa. E é essa causa a chave que abre a porta dessa prisão. Não apenas descobrir a causa, mas também entender como ela influenciou a você, sua vida e suas escolhas. Que mecanismos você criou para lidar com ela. Que crenças ela instalou na sua cabeça. E, acima de tudo, a lucidez e a coragem de desfazer essas crenças.

Muitas vezes confundimos esses comportamentos (sintomas) com aquilo que nós somos: “Ah, mas eu sou assim ________” (complete com o comportamento/sintoma problemático). “Eu sou assim, estourado”, “eu sou assim, preguiçoso”, “eu sou assim, ciumento”. Não. Você não é assim. Você não é um sintoma. Não conseguir se livrar dele não quer dizer que você seja ele, quer dizer que, até aqui, você usou os métodos errados e tomou caminhos errados.

Então, a primeira crença que tem que ser desfeita é o “mas eu sou assim”. Não, não é. Você é o que você quiser ser. O que nos leva ao segundo obstáculo a ser superado: se você acha que você é isso e isso te for “tirado”, o que resta? Quem é você? Muita gente fica apavorada se não tiver um clichê para se definir e acaba se mantendo na merda (inconscientemente) graças ao apego que tem ao que ela acha que é.

Pessoas constroem vidas, personalidades, relacionamentos com base nos seus sintomas. No longo prazo nunca dá certo, sempre atrapalha demais a vida, a profissão, os relacionamentos. E sempre vai ruir, pois seus sintomas não te definem. Então, hora de respirar fundo e abandonar todas as crenças do que você acha que você é: estourado, acomodado, idiota, cabeça quente, passivo ou que mais você pense a seu respeito. Você não é isso. Isso é um sintoma. Sintomas podem ser desfeitos se a causa que os gerou for compreendida.

“Mas Sally, eu já sei qual é a causa, é a minha mãe, e mesmo assim não consigo mudar”. Vamos lá… você não sabe qual é a causa, você sabe onde se originou, em uma relação conturbada com a sua mãe. Mas como isso afetou você, sua vida, suas escolhas, sua autoimagem… isso você ainda não sabe, se não já teria desarmado essa bomba e ela não explodiria mais na forma de sintomas. Tem que ir um pouco mais fundo.

O fato/ato gerador é importante, mas é tão importante quanto entender como isso te impactou: que você sentiu? Como reagiu a esse sentimento? Quais foram as defesas criadas para poder conviver com essa dor? No que isso te fez acreditar? São infinitas perguntas que você tem que se fazer e depois desfazer tudo que isso te fez acreditar a respeito de si mesmo.

Mas, acredite, quando chegar no cerne da questão, mesmo que você não perceba, o mecanismo todo apenas quebra, se desmonta e o comportamento que você não gosta simplesmente não se repete. Não acontece nada especial, não aparece nenhuma entidade, anjo ou espírito te fazendo uma revelação, o comportamento simplesmente não se repete, pois não há mais nenhum equívoco a ser corrigido, portanto, não há necessidade de uma sinalização.

Pode ser que você chegue lá sozinho. Pode ser que você chegue mais rápido com ajuda. Tem muitas possibilidades, mas, uma coisa é certa: indo no caminho errado você não chega. Não seja aquela pessoa que repete sintomas destrutivos o resto da vida. Não tem como procurar ajuda agora? Beleza, tenta sozinho, tenta com ajuda de pessoas de confiança que te conheçam bem e te queiram bem. Mas vai nessa direção: esquece o sintoma, foca totalmente no que gerou esse sintoma e como isso te afetou.

Outra coisa importante: não estamos distribuindo culpa aqui. Não é sobre descobrir de quem é a culpa. Não devemos nem falar a palavra culpa. Dentro das nossas possibilidades, estamos fazendo todos o melhor que podemos. O melhor da sua mãe foi uma merda? Que pena, isso você não pode mudar. Mas pode mudar a forma como vai reagir a isso.

A forma como sua mãe te criou é responsabilidade dela, mas a forma como você resolve reagir a isso agora, depois de adulto, é responsabilidade sua. Não dá para passar uma vida colocando a culpa do que somos nos outros, depois de adultos nós temos o poder de decidir como vamos lidar com as coisas que nos fizeram. Só podemos mudar a nós mesmos – e ainda bem, se não fosse assim, um monte de gente te mudaria diariamente… já pensou que inferno?

Então, entender o que gerou, de onde vem, não é culpar. Esse é um caminho que você vai trilhar colocando a você, e apenas a você, como responsável pela sua saúde mental. Não culpado, responsável. Você está no comando agora e você tem a missão de entender de onde vem um sintoma, um comportamento que não te faz bem. Você vai se entender, se corrigir e se curar. A correção dos seus sintomas chegando à causa deles é sua responsabilidade, ainda que você não tenha sido o responsável pelo seu surgimento.

O que nos leva a outro ponto: não caia na tentação de forçar a barra para que terceiros aturem seus sintomas por amor a você. Feio, feio, feio. Amor não é isso. Quem ama quer ver o outro melhor, evoluindo, mentalmente curado. Amor não é aturar qualquer coisa por gostar do outro, isso é devoção. Quem ama quer, inclusive, ser sua melhor versão para a pessoa amada. Não seja tirano nem chantagista, se você tem sintomas que magoam o outro, não faz o menor sentido querer que essa pessoa fique com você.

Esse pensamento de que “se a pessoa me amasse ela toleraria isso” é muito equivocado. Para ter um relacionamento saudável, ambos deve estar bem da cabeça, se um está com sintomas, com comportamentos destrutivos ou nocivos que não consegue controlar, não dá para ter relacionamento saudável. E quem topa um relacionamento não saudável não deveria nem se relacionar, nada de bom sai daí.

“Mas Sally, eu não sei nem por onde começar, eu me perco nos meus pensamentos”. Já tentou anotar? Pode ser uma boa ajuda. Não um esquema “querido diário, hoje eu comi empadão” e sim pensamentos e sentimentos que vem à tona e que parecem ser relevantes para chegar à causa desse sintoma. Anotar permite que, em uma leitura posterior, você junte as pecinhas e encontre denominadores em comum que atuaram como estopim para que esses sintomas se manifestes e, quem sabe, ao entender o que os desencadeiam, como e quando, você fique mais perto da causa.

Anotar te obriga a traduzir em palavras sentimentos e isso pode ser muito útil. Muita gente sequer consegue identificar bem o que sentiu, confunde os sentimentos entre si, por exemplo, confunde tristeza com raiva e reage de forma agressiva quando fica triste. Dar nome aos bois ajuda a arrumar a bagunça que domina a sua cabeça e, com tudo arrumado, é mais fácil encontrar o que se quer.

No começo não é fácil, como qualquer coisa que a gente nunca fez, o começo é difícil e pouco produtivo. Mas, da mesma forma, quanto mais você se observa e tenta juntar as peças, melhor fica e mais progresso faz. Você aprende a conectar as coisas, compreender o que te faz sentir dessa forma e por qual motivo você reage mal a esse sentimento. E, o mais importante: os ganhos secundários que você tem nesse comportamento indesejado. Ninguém mantém um comportamento nocivo a menos que tenha algum ganho secundário muito grande nele (ainda que inconsciente).

Eu não posso te dizer onde você vai chegar, qual será o seu progresso e muito menos te dar um prazo, mas uma coisa eu posso afirmar: é melhor tentar do que ficar de braços cruzados, se convencendo de que você é um sintoma. Então, comece hoje, mas sabendo que é um processo que pode demorar muitos meses ou anos. Isso significa que não tem que desistir por não ver resultados imediatos. Os resultados virão, de forma lenta e gradual, até que um dia você não será mais escravo desses sintomas.

Dedique um pouco do seu tempo a você mesmo, a se observar, a se conhecer, a entender de onde vem os seus comportamentos problemáticos. É de graça e pode melhorar muito a sua vida.

Para dizer que você é assim mesmo e não tem jeito (vai, mártir, sofre!), para dizer que isso dá muito trabalho (dá mais trabalho viver escravo de sintomas) ou ainda para dizer que não são sintomas é o seu jeitinho: sally@desfavor.com

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Comments (24)

    • Como pode ser pseudociência se trabalha em conjunto com medicina, com estudos científicos e com metodologia científica?

      Não é uma ciência exata, como não o é a psicologia. Psicologia é ciência e psicanálise nada mais do que um método aplicado dentro da psicologia.

  • Alguém aqui andou fazendo terapia psicanalítica, né não, Sally? Rs

    Muito bom o texto, muito boas as dicas. Difícil fazer a pessoa colocar em prática, já que ficar na zona de conforto da repetição é bem mais interessante.

    Aliás, em termos de teoria da psicanálise, o começo desse texto toca bastante no conceito de neurose obsessiva desenvolvido por Freud e particularmente Lacan. De fato, há uma certa tendência das pessoas de repetir comportamentos destrutivos de forma inconsciente, e há um ganho secundário nisso que solapa, muitas vezes, um problema maior.

    Aliás, o neurótico, na psicanálise lacaniana, é justamente esse ser que vive prometendo alguma coisa pra si mesmo ou para os outros, vive prometendo que vai mudar, mas no fundo fica sempre na repetição incessante do mesmo erro, porque lá no fundo sabe que tem prazer nisso, ele goza com a repetição, e ainda vive arranjando desculpas, como essa “ahh porque eu sou assino mesmo”, justamente pra não tocar naquilo que mais lhe toca de fato, que é o seu desejo e a realização do gozo enquanto tal. (lembrando que gozo em psicanálise não tem bem a ver com gozo sexual, no sentido mesmo de prazer carnal, ejacular etc, nada disso!)

    Curioso mesmo foi Lacan ter dito que, salvo alguns casos raros, as psicoses, os perversos, os sociopatas, somos todos neuróticos… Deleuze e uma turma aí vai dizer que o que define a estrutura da sociedade pós moderna é justamente uma estrutura neurótica… Mas isso já é outro papo, teórico até demais…

    • Sou filha de psicanalista, então, são coisas que escuto desde sempre. Mas sim, fiz dez anos de terapia (psicanálise) e me ajudou muito.

        • Sim, minha mãe era psicanalista. Ela já faleceu, mas foi muito bom ser criada em uma casa onde havia uma noção clara do funcionamento da mente humana e da importância da saúde mental.

          • Tá explicado então de onde vem tanto conhecimento sobre esse assunto que você tem, Sally. E que pena o que aconteceu com sua mãe…

            • O conhecimento vem do estudo mesmo… rs
              Mas a criação que recebi me tornou mais aberta e receptiva às sutilezas e nuances da saúde mental.

      • Você é filha de psicanalista? Que interessante. Sempre te achei muito esclarecida em relação a coisas que a imeeeensa maioria das pessoas não é e, por algum motivo, tinha a impressão de ter a ver com uma infância e criação saudáveis. Não que ser filho de psicanalista/psicólogo/psiquiatra ou o que for seja garantia de ser bom da cabeça (conheço uns que são bem dodóis, inclusive) mas parece que no seu caso foi um fator muito positivo.

        • Pois é, filho de médico adoece, filho de dentista tem cáries e filho de psicanalisa tem questões a resolver. Não é garantia de saúde mental, mas, sem dúvidas, ter uma mãe psicanalista, muito afetuosa e muito sensível a todos os cuidados com saúde mental me permitiu ter um olhar mais cuidadoso para com o sofrimento alheio.

        • Também fui levado a pensar a mesma coisa, Clara! A Sally sempre se mostrou ser muito bem resolvida, ou pelo menos com muita cabeça pra saber resolver os problemas que surgem na vida dela.

          • Não sou não, como qualquer pessoa tenho muitos problemas e questões para trabalhar. Mas tento refletir, entender e o resultado dos meus pensamentos às vezes eu jogo aqui. Coisas que demorei muito para perceber e que queria que alguém tivesse me dito antes, assim talvez eu possa poupar tempo de quem está na mesma situação em que eu estava.

      • Bacana, né? Deixa eu aproveitar então, e vamos mais:

        A obra de Lacan é complexa, difícil de ler, e ele não define assim tudo bonitinho redondo numa obra só. O conceito de angústia, por exemplo, ele desenvolve no seminário 10, mas dá umas pinceladas no seminário 16, 21, 23… Enfim.

        Mas tentando resumir a teoria de Lacan aqui, e cometendo várias generalizações (aliás, cadê os psicanalistas do desfavor? Sinta-se à vontade pra complementar o assunto, pois ele certamente não se esgota), ele divide as pessoas mais ou menos assim:

        Tem o psicopata e o sociopata, que são duas nuances do mesmo problema, com algumas pequenas diferenças entre eles, tem também os perversos – esses que só ligam para o seu desejo e passam por cima de tudo e todos pra conseguir o que quer (há quem diga que os políticos hoje carregam traços de perversão), e do lado dos perversos estão os narcisistas, tal como a Sally explicou naquele texto sobre o transtorno de personalidade narcisista.

        Tirando esses, nós “normais” somos todos neuróticos. Antes, em Freud, histeria e neurose eram apenas transtornos mentais. A histérica clássica, de Freud, é aquela que sempre reclama que nada tá bom, e que sempre está faltando alguma coisa, afinal, tem que faltar, porque se houver completude ela (a estrutura psíquica dela) não dá conta de lidar. (Curioso como Freud tratou a histeria como algo essencialmente feminino, aparentemente não existem homens histéricos). Já na neurose, ainda em Freud, sempre tem algo relacionado à culpa.

        Lacan dá um passo a frente e diz que histeria e neurose obsessiva não são bem transtornos mentais, mas sim posições subjetivas do sujeito. É por aí que surgem aquele saco de termos: transtorno obsessivo compulsivo, histeria nervosa, histeria compulsiva etc.

        Pra entender essa divisão de Lacan tem que ter em mente sempre a questão do desejo do outro, o que ele deseja e o que eu faço com esse desejo do outro. Mas a posição que a pessoa toma nessa questão é que define sua estrutura subjetiva. O neurótico se coloca como falta do outro, como se ele precisasse ser o “objeto faltante” do outro, por assim dizer, pra esconder a sua própria falta.
        É aí que ele constrói toda uma fantasia e passa a viver nela (o que Freud chamou de delírio).

        Já o obsessivo (que muito se aproxima do narcisista, mas há pequenas nuances que os diferenciam) é aquele que se acha completo, perfeito, tem tudo sob controle. Como ele não sabe o que fazer com o desejo do outro, ele finge que o outro não existe, só existe ele, e o desejo dele.

        O histérico, por sua vez, é aquele que tenta se tornar, de qualquer maneira, o objeto que causa desejo no outro. Tem até uma frase do Nasio, reinterpretando Lacan, que ilustra bem isso: “Se o Outro deseja, logo eu existo, pois sou exatamente o objeto que o faz desejar”.

        Há quem diga que o neurótico e o obsessivo fazem o casal perfeito, pois um complementa o outro. Tem também um diálogo bacana que ilustra essa dinâmica, em que o neurótico supostamente diz: “depois de tudo o que eu fiz pra você?”, ao que o obsessivo replica, “mas o que mais você quer que eu faça?”

        Deleuze e Guattari metem o pau na psicanálise sobre vários aspectos (menção honrosa para 5 proposições sobre psicanálise e os mil platôs!), e diz que a psicanálise funciona numa espécie de caixinha, de máquina já pronta de interpretação, e enfatiza que a sociedade contemporânea é essencialmente neurótica, nas suas mais variadas nuances, como se fosse lá um “estilo de época” dominante, em contrapartida à época de Freud em que todos eram histéricos.

  • Este é mais um dos seus textos “de utilidade pública”, Sally. Como de costume, repassei o link desta postagem para uma porção de gente, mesmo sabendo que muitos nem sequer vão se dar ao trabalho de clicar para abrir. Mas se o que você escreveu aqui puder ajudar alguém, mesmo que apenas uma pessoa, já terá valido a pena. E eu mesmo, que, como quase todo mundo, também tenho as minhas questões, pretendo voltar aqui de tempos em tempos para reler.

  • Pra muita gente, a própria personalidade é um mistério indecifrável. E a estrada do autoconhecimento é longa e tortuosa, fazendo com que muitos desistam logo o primeiro obstáculo.

    • Nem sempre é longa e tortuosa, depende de como se faz. É possível fazer de uma forma gentil, que gere menos resistência.

      • Concordo com você, Sally. Mas também concordo com o que o Anônimo aí de cima disse sobre muita gente dsesistir logo no primeiro obstáculo na estrada do autoconhecimento. Olhar para dentro de si mesmo nunca é fácil e tratar dessas questões de comportamento que você mencionou – explosividade, passividade, ciumeira, impulsividade, etc. – requer um esforço que muitos não estão dispostos a fazer.

        • O problema é que não tem cartilha padronizando autoconhecimento, daí qualquer um pode dizer que faz e que vai te ajudar – e geralmente são pessoas que não sabem conduzir o processo e acabam desmotivando quem começa. Mas eu te garanto que, se feito de uma forma gentil, amorosa e responsável, ninguém desanima.

  • Obrigada pelo texto. Em tempo de restrição de recursos a prioridade é a terapia para aquele que ainda está em formação mas com essas dicas já dá para começar a ir revirando os escombros.

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