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STF e o Aborto.

Este não é um texto sobre aborto. Este não é um texto para discutir se somos contra ou a favor do aborto. Este não é um texto que vá tratar do mérito da questão. Este é um texto sobre a forma, para simplificar a discussão que tomou conta do país na semana passada, com o julgamento do STF sobre o tema. Ok, no final eu vou te contar o que eu penso, mas esse não é o foco.

Aborto é considerado crime no Brasil, a menos que se enquadre em um dos três casos seguintes: 1) quando representar risco de vida para a gestante; 2) quando for fruto de estupro e 3) quando o feto for anencefálico, ou seja, não tiver cérebro. Os dois primeiros estão previstos em lei, o terceiro foi fruto de uma decisão do STF (se você permite desligar os aparelhos de quem teve morte encefálica, admite que não há vida viável com cérebro morto, portanto, não há vida em quem nem cérebro tem).

A Constituição brasileira faz uma divisão clara de poderes e competências, que já explicamos com muita calma em outro texto, razão pela qual vamos falar de forma superficial: o Legislativo (congresso e cia) basicamente cria as leis que todos vocês devem seguir, o Executivo (Presidente da República e cia) executa estas leis e o Judiciário (tribunais e cia) faz cumprir as leis, avaliando quais delas são compatíveis com o ordenamento jurídico existente e quais não são.

O Código Penal brasileiro é de 1940, portanto, é de se esperar que, com o decurso do tempo e as mudanças que acontecem na sociedade, algumas de suas normas fiquem desatualizadas, desnecessárias ou até injustas. Além disso, existe uma hierarquia no sistema legal brasileiro: em primeiro lugar está a Constituição e, abaixo dela, as leis como o Código Penal. E a Constituição é de 1988, posterior ao Código Penal.

Isso quer dizer que, se, em qualquer momento o Código Penal atritar com a Constituição, as regras da Constituição devem prevalecer (e as regras que atritarem com ela perderão validade, pois serão consideradas inconstitucionais).

E isso, meus amigos, é pau para toda obra no Brasil. Quando qualquer pessoa de qualquer ideologia não gosta de uma lei, basta sentar e procurar brechas na Constituição Federal para dizer que essa lei a contraria. É uma forma indireta de retirar a validade de qualquer lei. Como a Constituição é extensa e cheio de conceitos abertos (o que é dignidade?), basicamente quase tudo pode ser contestado alegando inconstitucionalidade.

O problema é: quando convém, as pessoas aplaudem uma norma ser declarada inconstitucional, quando não convém, é uma gritaria. E é justamente o que estamos vendo agora: aplauso e gritaria, sem nem ao menos entender bem o que está acontecendo.

No Brasil, aborto é proibido por lei e é crime há mais de 80 anos. Caso se desejasse mudar a lei, o caminho tecnicamente correto seria que aqueles que tem a atribuição de criar leis (o Legislativo) o façam. Seria desejável que seja assim. Seria saudável.

E de fato existem muitos projetos de lei vindos do Legislativo que pretendem alterar a situação do aborto no Brasil, são quase 200 no total: poucos para legalizá-lo, a maioria dos projetos é sobre tornar a lei ainda mais rigorosa, ou seja, não permitir aborto em nenhuma situação ou punir a mulher que faz aborto com uma pena mais rigorosa.

O STF, como parte do Judiciário, jamais poderia apresentar um projeto de lei ou tentar alterar uma lei, pois sua função não é legislar, é julgar. Não é isso o que está acontecendo. O STF não está “criando lei”.

Então, o que está acontecendo?

O que o STF está fazendo é julgar uma ação que foi apresentada pelo Psol e o Instituto de Bioética (Anis), onde se alega que em alguns casos, criminalizar o aborto conflita com a Constituição Federal, pois viola diversos princípios assegurados pela Constituição, como dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, não discriminação.

“Mas Sally, e o direito à vida, a Constituição não garante?”. Garante, mas o direito à vida é um direito relativo, não absoluto, isto é, em situações excepcionais, ele pode ser violado. O exemplo mais comum é a pensa de morte para o caso de crimes de guerra, mas existem muitos outros.

Por exemplo, no caso de gêmeas siamesas que precisam ser separadas para ter uma chance de sobreviver: é possível que, pela anatomia, na hora da separação apenas uma delas sobreviva e os médicos tenham que, conscientemente, escolher uma para viver e uma para morrer, sem que sejam acusados de homicídio por isso.

Existem muitos outros exemplos que, em direito, costumam ser chamados de “escolhas trágicas”, aquela escolha que pode acarretar na morte de um ser humano, porém, apesar disso, é considerada a “menos pior”. O tempo todo a lei tenta balancear, criar a melhor proporcionalidade possível, escolher qual será o mal menor. Nem sempre consegue, mas tenta.

Voltando… com esta ação judicial o que se diz é: “Olá STF, eu vi aqui que a Constituição garante dignidade e liberdade e é indigno que uma mulher tenha um filho sem que ela queira. Sabemos que não existe método contraceptivo 100% eficaz e o Brasil é um país arrombado que não faz laqueadura em quem pede, então, obrigar uma gestante a levar uma gestação indesejada a até o fim é obrigar uma pessoa a ter sua dignidade violada e cerceamento de sua liberdade”

“Mas e o bebê? Ele não tem direitos?”. Vou me ater ao que diz a lei, se você, sua religião ou sua ideologia concordam ou não, é outra história. O país é regido pela lei. Não me odeie, não fui eu a fazer a lei, eu teria feito bem melhor.

A discussão desta ação judicial é para aborto até 12 semanas de gestação, então, “bebê” não é o termo correto segundo a lei, e sim “feto”. E, concorde você ou não, segundo a ciência e lei brasileira, antes das 12 semanas o feto não tem um sistema nervoso desenvolvido o bastante para ser considerado um ser humano com cérebro formado, apto para viver.

“Mas Sally, a lei não garante direitos ao nascituro?”. Sim, a lei garante direitos ao nascituro, ou seja, ao ser humano que está em formação durante a gestação. Inclusive seu direito à vida. Se um nascituro precisar de tratamento médico e o Estado não quiser dar, a lei está aí para obrigar que todos os cuidados sejam prestados.

Mas isso não quer dizer que o direito à vida do nascituro se sobreponha a qualquer outro, tanto é que quando a vida da mãe corre risco, o procedimento considerado correto tanto pela lei como pela medicina é sacrificar a criança e salvar a mãe.

Como dissemos, eventualmente em direito existem as “escolhas trágicas” e é justamente isso que está sendo julgado: para assegurar os direitos ao nascituro vale violar direitos primordiais da mãe como dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, não discriminação?

“Mas Sally, quem disse que engravidar e ter um filho viola a dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade e a não discriminação?” Os autores da ação. E o STF está julgando se isso procede ou não. E não interessa o que você acha ou o que eu acho, nosso achismo não é fundamento para decisões legais. Os critérios que serão levados em conta são outros. E não estou dizendo que seja justo ou injusto, estou dizendo que é assim que as coisas são.

Outro argumento é: “se você, STF, permite sem qualquer problema aborto de quem não tem cérebro (anencefalia), não teria qualquer problema permitir aborto de quem ainda não tem cérebro formado”. Novamente, não me interessa o que você acha e pensa, estamos falando de critérios objetivos aqui. Não tenho a arrogância de afirmar quando a vida começa e, na real, acho que ninguém pode fazê-lo, mas é preciso estabelecer um critério, um limite legal.

A lei, apesar de assegurar os direitos do nascituro, diz que a vida começa quando um bebê nasce e respira. Se não respirar, nunca viveu. Existe inclusive um exame do pulmão do bebê específico para isso, que determina se houve respiração ou não. Esta é a razão pela qual o direito tende a tomar sempre o lado da mãe quando os interesses do nascituro colidem com os dela: uma vida já existente, já formada, já viável costuma prevalecer. Entendo quem não concorda, mas essa é a lei.

Então, se, para aquela gestação existir, se violam direitos fundamentais da mãe, como dignidade, liberdade, saúde, igualdade e não discriminação, a tendência é que esses direitos se sobreponham aos direitos do nascituro. Por favor, não venha palestrar nos comentários. Repito: eu não fiz a lei, eu teria feito muito melhor do que isso.

Outro argumento da ação é: “Olha, STF, na real, já existe aborto no Brasil e ele é amplamente praticado por quem tem dinheiro, então, essa proibição do Código Penal caiu em desuso, aborto é uma realidade, a proibição não cumpre sua função, que é coibir o crime e ela só afeta quem não tem dinheiro, gerando uma desigualdade e discriminação. Mulher que pode pagar um aborto, aborta. Mulher que não pode pagar, é obrigada a ter filho ou fazer um aborto de forma caseira, colocando em risco a sua vida”.

Tem outros argumentos, mas é uma ação muito extensa, acho que com esses vocês podem ter uma noção mínima do que está sendo discutido.

Agora vem o mais importante: a ação não está pedindo a legalização do aborto, isto é, que o aborto deixe de ser crime no Brasil. Não estão pedindo que se diga “Ok, tá liberado, a partir de agora quem quiser abortar, pode abortar”.

É quase isso. Mas não é isso. O que estão pedindo é “Tá bom, aborto não pode, nós entendemos, mas quando for com menos de 12 semanas de gestação, será que tem como pelo menos não punir a mulher criminalmente? Ninguém ganha nada colocando mulher que fez aborto em prisão, não é assim que se resolve”.

Então, não é abrir a porteira, como fizeram muitos países, é pedir apenas que a mulher que faz isso, aborto com menos de 12 semanas, não responda por um crime, que na real, nem responderia, pois a pena é muito pequena, ela teria direito a uma série de benefícios e cumprimento de uma pena alternativa, ou seja, pura perda de tempo.

“Mas Sally, é a mesma coisa!”. Não, não é. Uma coisa é remover o aborto do rol de crimes e obrigar o SUS a fazer a torto e a direito, pois, se não está proibido, é obrigação do Estado arcar com o procedimento. Outra coisa é apenas não punir criminalmente quem o faz.

Por exemplo, uma mulher que faz um aborto sem o consentimento do pai do filho pode responder civilmente, isto é, pode ser obrigada a indenizar a pessoa. Mas sem cadeia. É o fator cadeia o que se quer eliminar, que na verdade nem cadeia é, é processo criminal com pena alternativa.

“Mas Sally, se a mulher não vai ser presa precisa mesmo ficar brigando para não ser crime?”. Precisa, pois responder a um processo criminal, ainda que não acabe em cadeia, gera muito transtorno para a vida da pessoa. Além de correr o risco de ver algo privado se tornar público, a pessoa pode perder seu réu primário e ser impedida, por exemplo, de fazer concurso. Além disso, multas ou penas alternativas podem implicar em uma despesa que a pessoa não tem como arcar.

“Mas Sally, os Ministros do STF não têm formação técnica nem conhecimento científico para tomar essa decisão”. Justamente por isso a questão passou por audiência pública de instituições e especialistas no tema. Foram ouvidas instituições sérias, como por exemplo, a Fiocruz, que se posicionou dizendo que desconsiderar o desejo de interrupção da gravidez de forma segura é equivalente a “condenar muitas mulheres a piores condições de saúde, que são desproporcionalmente mais elevadas entre aquelas em baixas condições socioeconômicas”.

Esta ação não é de agora, ela foi ajuizada em 2017, ou seja, há mais de cinco anos. E como essa, tem muitas outras, então, cedo ou tarde, essa questão teria que ser abordada. No momento, o julgamento está paralisado e sem data para ser retomado. Não parece provável que a questão seja decidida com muita rapidez.

“Mas Sally, o povo deveria ser ouvido, o STF não pode decidir contra os interesses do povo”. Depende de como você encare a questão. Se ela for tratada como uma questão de saúde pública, o povo não tem que ser ouvido, pois o povo não tem o conhecimento técnico para escolher nada em matéria de saúde pública. Ninguém consulta o povo para saber qual é o melhor procedimento cirúrgico ou o melhor remédio.

Porém, se você entender que não se trata de uma questão de saúde pública, aí sim poderia ser pertinente escutar o povo. Os legisladores já estão se movimentando para tentar aprovar um plebiscito sobre a questão, para que o povo decida e, se de fato acontecer, podem ter certeza de que o aborto continuará sendo crime no Brasil.

O Senado já conseguiu o número de assinaturas necessárias para dar início ao procedimento. Agora, a proposta de plebiscito deve ser analisada pelo plenário da Câmara de Deputados e do Senado e deve conseguir maioria absoluta em ambos para que a coisa avance.

Se de fato isso for adiante, os brasileiros podem ser convocados para votar se querem ou não a descriminalização do aborto, no mesmo esquema de qualquer eleição comum, só que agora não se vota em pessoas, se vota em “sim” ou “não”.

“Mas Sally, qual é a sua posição?”. Já fiz muito texto com trocentos argumentos e ponderações sobre o assunto, em uma época em que eu ainda me importava e ainda me dava ao trabalho. Devem estar aqui, em algum lugar destes 15 anos de Desfavor. Hoje, meu posicionamento é mais simples e prático. Desconsidero todo o resto e apenas me atenho a uma frase: a favor, por motivos de quanto menos brasileiro no mundo, melhor. Sei que existem argumentos melhores, mas eu simplesmente não me importo mais.

Porém o objetivo do texto não é dar a minha opinião que, francamente, é bem irrelevante. O objetivo do texto vem agora, nestes últimos parágrafos.

Você tem mastigadinho tudo que está acontecendo, tem todos os elementos para se posicionar e decidir e eu posso respeitar quem é a favor e quem é contra, desde que exista coerência. Infelizmente, coerência parece estar em falta no país.

“Direito à vida é sagrado, uma pessoa não pode decidir quem vai viver”. Beleza, entendo e respeito. Mas aí não pode ficar repetindo que “bandido bom é bandido morto”, não pode aplaudir quando lincham e matam uma pessoa por furto de um celular, não podem tentar matar o vizinho por ele ter votado em político que você não gosta. Comporte-se, em todos os momentos da sua vida, de acordo com o que você prega de forma tão convicta.

“Não gosta de aborto? Não faça, mas permita que quem quer faça”. Beleza, entendo e respeito. Mas aí a premissa tem que valer para tudo. Não gosta do Leo Lins? Não vá ao show. Não gosta de armas? Não compre armas. Não gosta de algo? Não imponha limitações a esse algo, apenas não consuma. Comporte-se, em todos os momentos da sua vida, de acordo com o que você prega de forma tão convicta.

Só isso que a gente pede: coerência. Cada um pense como quiser, mas se mantenha coerente com isso.

Não vai acontecer, pois o brasileiro médio é, antes de tudo, um arrogante que quer impor sua vontade e suas opiniões ao resto. Por mais que ninguém goste de admitir, o Brasil é um país de cultura autoritária, no qual as pessoas tratam quem pensa diferente como inimigo, no qual todo mundo quer benefícios para si e ferrar o outro, no qual poder nunca é para o bem coletivo e sim para benefícios pessoais.

Então, esperem muita discussão baixo nível, muita incoerência e muita hostilidade. Mantenham-se na sanidade. Mantenham-se acima disso. Por favor, vamos passar por esse debate, que promete ser longo e acalorado, com um mínimo de graça, dignidade e coerência.

Para dizer que se for a plebiscito não vai poder fazer aborto nem em caso de estupro, para dizer que deveria ter bolsa-aborto que pague um salário-mínimo por cada aborto realizado ou ainda para apontar simplificações didáticas propositadamente aplicadas como se fossem erros jurídicos: sally@desfavor.com

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