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Profissão hipervalorizada.

Profissão hipervalorizada.

| Desfavor | | 20 comentários em Profissão hipervalorizada.

O Brasil é um país com mão de obra pouco qualificada, por uma série de motivos históricos e sociais sobre os quais falamos quase todos os dias. Sally e Somir concordam com essa parte, mas não com quais profissões se beneficiam dessa desqualificação de forma desproporcional. Os impopulares dão chilique.

Tema de hoje: qual é a profissão mais hipervalorizada no Brasil?

SOMIR

Médico. Não que médicos não sejam importantes, ao contrário: são tão importantes que é aberrante termos tantas barreiras para formação deles e para o acesso da população ao serviço. A hipervalorização que eu menciono aqui tem relação direta com o custo dos serviços deles para a povão.

No estado de SP, um médico razoável cobra um terço de um salário-mínimo por uma consulta de meia hora. Um plano de saúde com alguma cobertura custa dois terços. E o SUS custa um salário-mínimo inteiro: se você precisar dos serviços dele, vai esperar tanto que é provável que morra ou fique inválido antes de ser atendido. Em outras regiões os preços podem ser menos agressivos, mas também em média as pessoas recebem menos.

Tem algo fundamentalmente errado nos custos da medicina. É tudo hiperinflacionado, desde o acesso ao médico até os remédios e serviços prestados por hospitais. Só gente rica (ou disposta a gastar tudo o que tem) pode tentar acesso à rede particular para todas suas necessidades.

E não é papo comunista, é análise de custo-benefício sobre o dinheiro que você paga de impostos. O SUS não é de graça, você gasta uma porcentagem de todos os seus ganhos com ele toda vez que paga impostos. Já é absurdo que a classe média tenha que comprometer uma boa parte da sua renda com planos de saúde, imagine só quem nem isso pode fazer?

E isso vai além de corrupção e incompetência do poder público: médicos são hipervalorizados do ponto de vista financeiro. As prioridades de uma sociedade estão tortas quando tentar salvar sua vida tem custo proibitivo para a imensa maioria das pessoas. Por que é tudo tão caro na medicina? Hipervalorização e reserva de mercado.

O fato de uma profissão ser importante não tem que desembocar diretamente no número de profissionais ser limitado. Médicos não são semideuses, são pessoas treinadas em uma profissão. Poderíamos ter o dobro de médicos e diluir os ganhos deles para que continuassem capazes de levar uma vida de classe média alta numa boa. Poderíamos ter o triplo ou o quádruplo se fosse só mais uma profissão sem a expectativa de enriquecimento.

E existe uma retroalimentação no sistema: como os valores são superlativos e os médicos não querem concorrência, existe uma barreira artificial na seleção de candidatos para os cursos de medicina. Nos cursos públicos a barreira de entrada é insana com a dificuldade do vestibular, nos particulares com o custo inflacionado das mensalidades.

Médicos não precisa tirar nota 1000 na redação ou gabaritar matemática para exercer sua profissão. Não temos exigências malucas dessas em outras profissões, não faz sentido que existam na medicina. Estamos apenas selecionando pessoas com alta capacidade de memorização ou famílias abastadas. E por mais que você possa argumentar que memorização é importante em medicina, não estamos mais no século XIX: toda a informação está replicada na ponta dos dedos de qualquer um.

Para exercer a profissão a pessoa precisa entender medicina e as relações entre sintomas e doenças, não decorar listas. Até porque um computador faz isso muito melhor que qualquer pessoa. A barreira de entrada da dificuldade do vestibular é artificial e ineficiente para selecionar médicos de qualidade. Tanto que muita gente formada está aí prescrevendo homeopatia ou fazendo experimentos com cloroquina em pacientes com doenças respiratórias.

O número de falhas médicas atual demonstra que a seleção não está fazendo tanta diferença assim. O ideal seria aumentar a concorrência imensamente para eliminar os elos mais fracos. E é claro, derrubar os preços para que mais gente tenha acesso. O que por sua vez diminuiria a pressão sobre o sistema público, gerando resultados positivos para todas as classes sociais.

Quer ficar rico? Cuidar da saúde das pessoas não deveria ser uma profissão compatível. Ganância não tem lugar na medicina, é incompatível com a missão do trabalho. Médicos não poderiam ter a chance de marcar consultas de 15 minutos para aumentar a renda através de planos de saúde, e com certeza não fariam isso se tivessem concorrência maior.

Mas isso não diluiria a qualidade dos médicos? Eu argumento que não por causa da demanda represada pelo vestibular e pelos custos proibitivos das universidades particulares. Tem muita gente querendo ser médica que é extremamente capaz, mas não tem família rica nem chance de decorar respostas no nível necessário atualmente. É uma barreira artificial que visa manter altos os rendimentos dos médicos. Espero que arrumemos isso antes da IA virar a médica de 90% da humanidade.

Tem algo errado na lógica toda da medicina em países como o Brasil: não é serviço premium, medicina é básico do básico. Deveríamos ter gente formada em medicina em cada quarteirão, isso aumentaria a qualidade de vida do ser humano imensamente. O serviço tinha que ser muito barato, o conhecimento já existe e precisa ser universalizado. Médicos não se tornariam menos importantes, eles se tornariam parte integrante da vida de todo mundo. Se ainda não perceberam, esses são os trabalhos do futuro: cuidar de gente.

E eu estudei em escola pública a vida toda, eu sei que a escolha da Sally está correta do ponto de vista da qualidade do trabalho oferecido, mas os salários são tão baixos e a estrutura tão precária que eu não consigo isolar uma variável de capacitação. Não sei quem é o ovo e quem é a galinha nessa questão. Já na medicina, fica claro que existe hipervalorização sustentada por uma mentalidade de cartel que coloca lucro acima da suposta função do trabalho.

Bônus: eu quase escolhi juízes por motivos parecidos. Mas pelo menos tem curso de direito em cada esquina, basta ter um batimento cardíaco para entrar e se formar.

Para dizer que é médico e ganha pouco (em comparação com médicos ricos ou com o trabalhador médio?), para dizer que o nível não pode ficar mais baixo, ou mesmo para dizer que médico de pobre é o Google: comente.

SALLY

Qual é o profissional mais hipervalorizada do Brasil?

Hoje é dia de levar porrada! Vamos lá: professores da rede pública.

Salvo honrosas exceções, o professor da rede pública é uma pessoa paga para fingir que ensina, é uma pessoa que já desistiu de ensinar faz tempo por uma série de motivos, mas não quer largar a remuneração que recebe, é uma profissional que não se atualiza, que não se esforça e que deixa que as muitas adversidades que se interpõe entre ele e seu trabalho vençam.

“Mas Sally, não dá para ensinar nessas condições!”. Eu concordo com você, não tem como ensinar para uma criança que está com fome, que está sendo brutalizada em casa, que está com inúmeros problemas de saúde. Não dá para ensinar sem o básico do básico, sem cadeiras, sem quadro, sem um mínimo de conforto térmico. Meu ponto não é esse: se não dá para ensinar, sai fora em vez de ficar recebendo dinheiro do Estado e fingindo que ensina.

Continuar recebendo e fingir que ensina é tão perverso quanto o Estado fingir que se preocupa com a educação. É ser uma engrenagem nessa máquina canalha. É fazer parte do problema. Se quiserem ficar e ser parte do problema, tá joinha, sagrado direito seu, só não veste a capa de herói da sociedade, de mártir, de abnegado, pois não são. São parte do problema, são pessoas acomodadas que topam encenar esse teatrinho chamado “educação pública”.

Médicos podem ser escrotinhos, deslumbrados e arrogantes, mas médicos efetivamente salvam vidas. Faz as contas de quantas pessoas que entram em pronto-socorro e saem vivas e depois faz a contas de quantos alunos da rede pública saem alfabetizados e aptos para compreender um texto e você vai entender o meu ponto. Não é sobre quem é mais escroto, mais babaca ou mais arrogante, e sobre o profissional mais hipervalorizado.

Repito: não é sobre quem você gosta menos, para se dizer que alguém é hipervalorizado não se leva em conta personalidade repulsiva e sim o que a pessoa faz X o reconhecimento que recebe.

Médicos podem ser tratados como quase-divindades, mas estudam para um caralho, dão plantões, ficam dias sem dormir e tem uma responsabilidade do caralho (experimenta matar um paciente para você ver). Professor não faz 15 anos de faculdade e especialização, tem uma carga horária bem menor que a média e se ensinar algo errado, absolutamente nada acontece. E, como eu disse, é muito mais comum ver um médico salvar vidas do que um professor da rede pública entregar um aluno nutrido de conhecimento para a sociedade.

“Mas todo médico só chegou a ser médico por causa de um professor”. Sim, todos nós só chegamos aonde chegamos por causa dos professores. Agora olhe à sua volta e me diga quantas pessoas que saibam falar e escrever corretamente o português, interpretar um texto, que tenham compreensão de matemática e lógica, que conheçam o básico de história e geografia você conhece. São a maioria? Não, são a minoria. Quando você qualifica apenas uma minoria, você falhou como professor. E quando você topa fazer parte de um sistema que não presta, você falhou como ser humano mesmo.

Mas no Brasil parece que dá uma cota extra de “heroísmo” o sujeito trabalhar em condições insalubres. Heróis, meus queridos, são aqueles que mesmo em condições insalubres conseguem transmitir e fixar conhecimento em seus alunos. E estes, são a minoria da minoria, a maioria continua fingindo que trabalha e usufruindo do status do heroísmo alheio.

A mera existência de condições insalubres não te torna herói, podem se ofender o quanto quiserem. O que torna herói é conseguir desempenhar seu papel mesmo com as condições insalubres. Mas no Brasil, professor é herói só por trabalhar em condições insalubres, ainda que não cumpra seu papel (como bem mostra PISA). Francamente, se você está em condições insalubres e não consegue executar bem seu trabalho, você não é herói, é masoquista mesmo.

Mas não no Brasil, no Brasil toda uma classe que não cumpre seu papel se apropriara desse heroísmo, e o que é pior: no grito. Convencionou-se que professor de rede pública é esse ser de luz, essa criatura altruísta, magnânima, abnegada e heroica que ensina apesar de todas as dificuldades. E ai de quem discordar, você será fascista, nazista, machista, bolsonarista ou qualquer outro “ista” que o grupo ache ofensivo.

Professor é herói simplesmente por trabalhar em condições adversas, mesmo que não ensine aos alunos de forma eficiente. E quem questionar será esculachado. Se isso não é o que existe de mais severo em termos de hipervalorização, eu não sei o que é.

Vão trabalhar uma semana em loja de shopping, passar 12 horas de pé, subindo e descendo escada de estoque e levando um puta esporro cada vez que não fizerem algo direito, recebendo apenas comissão sobre o que vender, para vocês verem o que são condições adversas. O ofício do professor é muito nobre apenas quando ele atinge seu objetivo, quando não atinge, é uma bela perda de tempo.

Continua a ser professor quem quer. A pessoa sabe dos obstáculos, continua quem quer. E se quiser continuar, faça seu trabalho direito apesar dos obstáculos e ensine seus alunos. Seja criativo, seja proativo, encontre uma forma, em vez de decretar que por existirem muitos obstáculos não pode realizar seu trabalho. E, se de fato achar que os obstáculos são um impedimento, sai fora, vai fazer outra coisa.

“Mas Sally, se eu sair vou fazer o quê?”. Qualquer outra coisa. E se topar fingir que trabalha para ganhar dinheiro e soltar aluno semianalfabeto pelo mundo, não posa de herói da sociedade.

Para pegar a pipoca e assistir aos xingamentos que eu vou tomar, para me chamar de bolsonarista (não sou) ou ainda para dizer que o fato de uma argentina escrever melhor do que a maior parte dos brasileiros já prova um ponto: comente.


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