Histórias de Vida – Dominique Guioday
Dominique Guioday, candidata a vereadora em Mesquita/RJ
Dominique nunca vira um episódio da série infanto-juvenil japonesa Changeman. Provavelmente nem conseguiria pronunciar o nome. Seus pais então… teriam dificuldade de apontar o Japão num mapa. Mas isso não impediu que o som do nome de um dos monstros mais icônicos da série grudasse na cabeça do pai ao ponto de ser sua sugestão de nome para a filha.
Numa negociação tensa, a mãe conseguiu empurrar o nome para a frente, depois de um incomum, mas muito mais tolerável Dominique. Curiosamente, mesmo com o escrivão confuso sobre como escrever o nome, que no original é Gyodai, a letra y acabou aparecendo, mesmo que na posição errada. Segundo o pai, era uma letra chique.
Embora a pequena tivesse alguns problemas com crianças entendendo a referência de seu segundo nome durante os anos escolares, a vida se encarregou de diminuir o impacto da curiosa homenagem enquanto o cidadão médio se tornava menos familiarizado com o seriado depois do seu auge entre os anos 80 e 90.
Mas dizem que nomes tem poder. Guioday tornou-se prova disso. Na série originária, Gyodai era um monstro alienígena intelectualmente limitado – afinal, só sabia dizer o próprio nome – que era chamado para reviver e tornar gigantes outros monstros derrotados pelos heróis, o quinteto colorido dos Changeman. Todo episódio tinha seu clímax na aparição de Gyodai, que fazia com que o nível de ameaça crescesse, literalmente.
Dominique Guioday completou com dificuldades o ensino médio, resultado de sua criação humilde, e logo começou a trabalhar para ajudar nas contas de casa. Conseguiu vaga de estoquista numa mercearia do bairro, trabalho puxado, mas honesto. Foi lá, no depósito onde os grãos vendidos para os locais eram armazenados em péssimas condições, que percebeu pela primeira vez um pequeno roedor branco.
Parecia um daqueles ratinhos de laboratório, primeiro visto como um vulto entre as sacas de arroz e feijão. Dominique avisou o chefe, um idoso morbidamente obeso chamado Moacir. Moacir era querido pela comunidade pela sua personalidade descontraída e ar bonachão, mas não prezava pelo esforço. Dizia que chamaria o exterminador semana que vem. E a semana que vem não chegava nunca.
Ela acreditou por algum tempo, mas logo percebeu que estaria sozinha contra o animal invasor. Com seu próprio dinheiro, contado para pagar as contas todos os meses, adquiriu uma ratoeira. Mas nada do animal morder a isca. Tentou pegar o bicho por uns dois meses, sem sucesso. Moacir, quando pressionado, dizia que as sacas eram fortes e não tinha perigo de contaminação. Além disso, ninguém comia arroz nem feijão crus, então qualquer contaminação seria fervida.
A esperteza do rato branco fez com que se tornasse o último vivo de uma infestação. Dominique conseguira eliminar meia dúzia de ratos, mas não o que chamara sua atenção para começo de conversa. Essa resiliência despertou um certo respeito. Ela começara até a se afeiçoar ao animal, e sem perceber, já tinha batizado o bichinho. Bazu. Bazu havia vencido a batalha contra Guioday, e talvez até inconscientemente, ganhado um status protegido no armazém do Seo Moacir. A ratoeira se foi, e Dominique se pegava buscando Bazu no canto do olho toda vez que ia arrumar o estoque de grãos.
Mais de um ano se passara. Moacir continuava uma pessoa positiva, até carinhosa às vezes, mas nada de uma promoção para o balcão. Ela sentia que estava desperdiçando sua vida nos fundos do armazém. Depois de uma cobrança mais assertiva, o chefe disse com todas as letras que não podia pagar mais e se ela quisesse outra coisa, que procurasse fora dali.
E para o crédito de Seo Moacir, ela realmente encontrou outra coisa melhor. Um emprego numa fábrica de remédios na cidade vizinha. Linha de produção, mas com salário melhor e alguns benefícios. Empresa grande. Deu seu aviso prévio para o patrão, e no último dia antes de trocar de emprego, resolveu fazer um mimo para Bazu. Comprou um pedaço de muçarela, que estava os olhos da cara, e deixou como presente de despedida num canto do estoque.
A venda estava fechando naquele dia, Seo Moacir até comprara um bolo para se despedir de Dominique. Depois de uma despedida emocional, voltou ao estoque para pegar suas coisas e se trocar para ir para casa. Foi quando viu Bazu no canto, comendo a muçarela. Ao invés de sair correndo, dessa vez ele ficou parado. Dominique conseguiu prestar atenção no bicho pela primeira vez. Bazu estava maior. Se não fosse a pelagem branca, seria confundido com uma daquelas ratazanas gigantes de esgoto.
Mesmo com algum receio, ela começou a se aproximar lentamente. Bazu vacilou por alguns instantes, mas acabou se mantendo parado ali. Dominique, até hoje sem entender por que, apontou o dedo na direção de sua cabeça e começou a fazer um carinho. Bazu aceitou, docilmente. Ficaram ali por alguns minutos, começando uma amizade. O animal voltou a se deleitar com o queijo, e Dominique se divertia com a docilidade repentina. Era como se Bazu soubesse que era um presente para ele.
Ao se preparar para sair, ela percebe que Bazu não queria mais se separar. O rato se aproxima e começa a seguir Dominique. Ela chacoalha as mãos para afastar seu perseguidor, sem sucesso. Num arroubo de afeto inexplicável, toma Bazu nas mãos e o coloca dentro da bolsa. O animal não protesta. Ela sai do armazém, despede-se de Seo Moacir e volta para casa.
No final de semana, Dominique mantém Bazu escondido no seu quarto, fortalecendo laços de afeto com o animal. Não é uma tarefa fácil, Bazu é pelo menos umas três vezes maior que um rato de laboratório branco comum. Mas o bicho era esperto: quando tinha algum estranho por perto, ele corria para se esconder debaixo da cama.
Na semana seguinte, começa a trabalhar na empresa química, empacotando remédios. A chefia é estrita com higiene, mas faz vistas grossas na hora de revistar os funcionários na saída. Dominique aproveita para levar para casa uma série de remédios com defeitos estéticos, embalagens estragadas e tudo mais que deveria jogar fora. Economiza um bom dinheiro em genéricos, e ainda por cima consegue fazer uma renda extra vendendo remédios para dor de cabeça, cólicas e outras agruras menores para os vizinhos.
Bazu continua em seu quarto, cada vez maior. O animal come de tudo, com uma fome insaciável. Carinhoso com ela, age feito um animal de estimação qualquer, feliz quando ela chega do trabalho e sempre buscando passar um tempo junto. Não protesta nem quando recebe banhos na pia do tanque, o que só pode ser feito quando não tem mais ninguém em casa.
Pouco mais de seis meses depois de começar o novo emprego, Dominique percebe o tamanho de Bazu. Vê-lo diariamente não chamava atenção até que um gato do vizinho entrou pela janela e deu de cara com o rato. Os dois tinham o mesmo tamanho. Bazu era de longe o maior rato que ela tinha visto na vida. O gato? Bastou uma olhada no gigante para disparar em pânico dali.
Dominique sentia que não dava mais para compartilhar a casa com os pais e os irmãos. Até porque a mulher do irmão mais novo estava grávida e provavelmente o luxo de ter um quarto só seu acabaria em breve. Ela consegue alugar uma casinha longe dali para morar sozinha. Isso é, ela e Bazu. O bicho estava no limite para caber dentro de uma caixa e não despertar muitas suspeitas dos amigos que vieram ajudar na mudança.
O animal continuava comendo sem parar, e já passava a maior parte do tempo no diminuto quintal da casa. Por sorte os muros eram altos e os vizinhos não tinham ideia. Se alguém visse de relance, poderia até achar que era um cachorro gordo. Bazu era amoroso e fiel como um. Mas o segredo corroía Dominique. Como trazer um namorado para casa? Amigas então, nem pensar. Mas a cada olhada nos cada vez maiores olhos avermelhados de Bazu, seu coração derretia. Ratos não podem viver tantos anos assim, pensava.
Cinco anos se passam. Bazu, uma aberração digna de livros de recordes, estava do tamanho de uma capivara adulta. E com dentes equivalentes. Roía tudo, desde madeira até mesmo concreto. O quintal terminava numa viela, cujo buraco para passar água parecia cada vez maior a cada vez que ela via. Guioday não entendia como um rato poderia ficar desse tamanho. Não fazia sentido.
Foi quando escutou o som de algo quebrando de noite que percebeu: embaixo de uma telha de amianto velha jogada no quintal, havia deixado caixas de produtos descartados que nunca conseguira vender: uma linha descontinuada de vitaminas mastigáveis infantis que não faziam sucesso com o paladar infantil. Aquelas caixas estavam lá há anos. Ela se prometia que ia jogar fora, mas nunca o fazia. Bazu, por sua vez, era o público-alvo do produto. Depois de roer as caixas pela parte de trás, começou a devorar as vitaminas, muitas vezes com embalagem e tudo.
Depois de tanto tempo consumindo o estoque, as caixas finalmente cederam, derrubando a telha e chamando sua atenção. Bazu, tal qual um cão que sabia que tinha feito coisa errada, se escondeu num canto. Dominique ligou os pontos. Bazu era um rato grande, mas começou a ficar imenso justamente depois que ela começou a trabalhar na fábrica de remédios e trouxe para casa aquela enormidade de vitaminas mastigáveis.
Ela deu um jeito de jogar fora os restos, até porque estavam vencidas há muitos anos e poderiam ser um risco à saúde de seu amigo peludo. Ela ensacou tudo o que restava e ainda de madrugada deixou para o lixeiro do outro lado do quarteirão, ainda meio receosa sobre a legalidade de levar para casa produtos descartados no seu emprego.
Na manhã seguinte, acordou para trabalhar e foi deixar uns pães velhos para Bazu. Ele adorava roer. Nada. Ela chamou pelo bicho, sem resposta. Ao olhar para o muro que dava para a viela, a realização: Bazu tinha escapado pelo buraco quebrando uma boa parte do muro. Ela corre para a rua, ainda vestida como dormira. Dá a volta no quarteirão e começa a ouvir uma comoção. Várias pessoas estavam tentando atacar um bicho.
O coração de Dominique para por um segundo. Bazu estava no meio de uma roda de populares ensandecidos. Ela pergunta para uma mulher próxima o que estava acontecendo. Ela responde que acharam um chupacabra e que ele atacou uma criança. Ao se desvencilhar um pouco e conseguir ver a cena direito, ela percebe que Bazu está com os dentes cravados na camiseta de um garoto pequeno, que chora desesperadamente.
Os populares rodeiam, num misto de cautela pelo menino e provavelmente medo de alguma propriedade mágica do que estavam chamando de chupacabra. Alguns até apontam cruzes para o animal, falando em línguas. Dominique pode perceber que na verdade o dente do seu bicho está preso na roupa, Bazu não era agressivo. O animal tenta se soltar, a criança se debate e a coisa não se resolve.
Ela toma a iniciativa e se aproxima, mesmo com avisos do populacho. Bazu percebe a amiga e começa a se acalmar. Nesse momento, o moleque finalmente consegue se soltar da camiseta e correr para longe. Ela se aproxima de Bazu, ainda sem saber o que fazer para explicar o acontecido. Só sente um puxão no ombro e vê um homem sem camisa passar na sua frente. Era um dos traficantes do bairro. Três tiros.
Bazu cai imediatamente. Ela grita. O povo se espalha por causa dos tiros, alguns com medo da polícia que chegaria eventualmente. O traficante fala alguns palavrões e manda dois jovens igualmente descamisados colocarem fogo no bicho para não atrair jornalista e problema. Ela fica ali, vendo seu amigo morto no asfalto. Bazu era grande demais para esse mundo.
Os dias seguintes de são de tristeza profunda. Mal sai de casa, relembrando Bazu e a forma como fora tirado dela. Quando já estava quase terminando de processar o luto, bate à sua porta a família do menino preso nos dentes de Bazu. A mulher dá um longo abraço em Dominique e agradece por ela ter sido a única com coragem de enfrentar o chupacabra para salvar o filho. O pai disse que se não fosse por ela, os traficantes teriam atirado no bicho com a criança enroscada ainda. O menino, do alto dos seus 6 ou 7 anos de idade, vacila um pouco, mas é empurrado pelos pais para um abraço agradecido. Dominique sabe que é melhor não dizer a verdade.
Tanto que não diz. A fama de heroína se espalha pelo bairro, a mulher que enfrentou um monstro alienígena ou demoníaco, dependendo da versão, para salvar uma criança. Nada podia trazer Bazu de volta, mas era um alento ser reconhecida e valorizada pela comunidade.
Por isso resolveu se candidatar a vereadora. Promete que se for eleita, vai criar um abrigo especial para animais de rua, e já até sabe o nome que vai usar para batizar o local.
Para dizer que eu comi muita vitamina mastigável estragada, para dizer que foi só um cisco que caiu nos seus dois olhos, ou mesmo para dizer que todo mundo é horrível: comente.
Etiquetas: contos, piores nomes de candidatos
Mauro
Sou leitor do Desfavor desde 2010, já até encontrei a Sally pessoalmente e outros leitores. Posso provar se quiserem, minha irmã se chama Dominique e nós crescemos me Mesquita/RJ ( quando ainda era um bairro de Nova Iguaçu) até os 11 anos!
Sally
Mas ela é a candidata???
Mauro
Não mesmo, hj ela mora em Niteroi.
Ana
Sim, o mundo é um lugar horrível. Mas estou feliz que pelo menos ninguém jantou o rato.
UABO
Ainda bem…
GILCO COLHOS
Ainda bem mesmo…